ARTIGOS ORIGINAIS

O cuidado do idoso em tratamento pré-dialítico: estudo descritivo


Caren da Silva Jacobi1, Margrid Beuter1, Nara Marilene Oliveira Girardon-Perlini1, Arlete Maria Brentanno Timm1, Jamile Laís Bruinsma1, Claudelí Mistura2
1Universidade Federal de Santa Maria
2Universidade de Cruz Alta

RESUMO

Objetivo: descrever as percepções da família sobre o cuidado prestado ao idoso em tratamento pré-dialítico. Método: pesquisa qualitativa e descritiva com oito famílias de idosos acompanhados em um ambulatório de uremia. A coleta ocorreu de março a julho de 2013 nos domicílios, através de genograma e entrevista com questões circulares. Utilizou-se a análise de conteúdo temática da proposta operativa. Resultados: além das demandas do envelhecimento, as famílias necessitam inserir nos cuidados o tratamento pré-dialítico. A cogitação da diálise leva os familiares a modificarem suas atribuições e buscarem possíveis soluções para a doença. Discussão: as famílias buscam alternativas no saber popular e na espiritualidade, a fim de atender às demandas advindas do adoecimento do idoso. Conclusões: o cuidado da família prestado ao idoso é fundamental no tratamento da doença renal e o diálogo com os profissionais da saúde pode potencializar o desempenho do cuidado.

Descritores: Família; Terapêutica; Insuficiência Renal Crônica; Idoso.


INTRODUÇÃO

As famílias vêm se modificando, e a definição que pode ser considerada adequada para o trabalho dos enfermeiros é de que a família é quem seus membros dizem que são, independentemente da existência ou não de laços consanguíneos(1). A unidade familiar passa por mudanças sociais tanto em seu conceito quanto em sua estrutura. Essas transformações, muitas vezes, repercutem no núcleo da família, tornando-o mais frágil e vulnerável. Com isso, a família deve estar incluída no contexto das políticas públicas sociais e de saúde, necessitando de ações que visem à qualidade de vida dos seus membros, pois, independente da maneira como se organizam, estes pertencem a um determinado grupo social-familiar(2). Dentre as mudanças estruturais, está o envelhecimento dos membros da família e a redução das taxas de fecundidade, assim o núcleo familiar tende a ficar menor.

O processo de envelhecimento provoca modificações que aumentam a possibilidade da família vivenciar doenças crônicas de seus entes idosos. A mudança no estado de saúde de um integrante pode levar a unidade familiar a modificar positivamente seus comportamentos, auxiliando no controle da doença, na melhoria da sobrevida e no enfrentamento de adversidades(4).

Dentre as alterações provocadas pelo envelhecimento, está a redução do tamanho dos rins, a perda no número de néfrons e a diminuição do suprimento sanguíneo, que leva à atenuação da taxa de filtração glomerular(5). Essas transformações, quando associadas a doenças como a hipertensão arterial e/ou o diabetes mellitus descontrolados, propiciam o desenvolvimento da doença renal crônica (DRC). A DRC caracteriza-se pela lesão renal e perda progressiva da função endócrina, tubular e glomerular dos rins de forma assintomática. Com a progressão da doença, ocorrem a diminuição da função renal e a evolução para a insuficiência renal crônica (IRC)(6). A IRC pode causar modificações no cotidiano das famílias, pois, a depender das condições clínicas do idoso, estas necessitam alterar os papéis no ambiente familiar para conciliar o cuidado do membro doente com as tarefas do dia a dia.

O controle da IRC, em sua fase inicial, pode ocorrer por meio do tratamento pré-dialítico ou conservador, o qual visa retardar a progressão da doença e preparar o paciente e sua família para a diálise, quando necessária. A terapia pré-dialítica abrange o tratamento medicamentoso e dietético no controle da hipertensão arterial ou da diabetes mellitus, na correção da anemia e no controle rigoroso de cálcio e fósforo(5). Envolve também o manejo da dislipidemia, da ingesta proteica, além do combate ao tabagismo e da realização de consultas e exames laboratoriais frequentes(6).

Ao tratamento pré-dialítico, acrescentam-se a alta prevalência das comorbidades que acometem frequentemente a população idosa e as fragilidades próprias da velhice, físicas e psicológicas. Diante dessas alterações, a família necessita participar ativamente no processo de cuidado do idoso. A presença de um membro que necessita de cuidados afeta, direta ou indiretamente, os componentes da unidade familiar(1).

O cuidado decorre da condição de fragilidade do ser humano, tanto no aspecto corporal quanto no afetivo, social e espiritual. Assim, cuidar de alguém é participar de seu estado de saúde, buscando o seu restabelecimento por meio de recursos técnicos e humanos. O cuidado é uma ação de responsabilidade para ajudar a suportar o sofrimento e responder às necessidades do outro(7).

Os profissionais da saúde, em especial os da enfermagem, necessitam conhecer o contexto do cuidado familiar dos idosos, para que, assim, possam oferecer subsídios às famílias que não se sentem preparadas para cuidar do idoso em tratamento pré-dialítico. Em razão disso, ressalta-se a importância de estudos que retratam essa realidade. Ademais, a busca na literatura sobre a temática do idoso em tratamento pré-dialítico evidenciou uma lacuna no conhecimento referente ao assunto(8).

A partir dessas considerações, tem-se como questão de pesquisa: como a família percebe a sua participação no cuidado do idoso em tratamento pré-dialítico? E como objetivo: descrever as percepções da família sobre o cuidado prestado ao idoso em tratamento pré-dialítico.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, realizada com oito famílias de idosos em tratamento pré-dialítico, acompanhadas em um ambulatório de uremia de um hospital público de ensino da Região Sul do Brasil, totalizando 21 participantes. A coleta de dados ocorreu de março a julho de 2013, por meio da construção do genograma e entrevistas realizadas na residência das famílias pela pesquisadora principal.

O genograma possibilita conhecer a estrutura e contextos de padrões geracionais da família, por meio de uma representação gráfica(9). Neste estudo, o genograma foi utilizado para aproximar a pesquisadora dos participantes, possibilitando iniciar um diálogo prévio à entrevista. Para a entrevista, visando ao aprofundamento das questões abordadas, lançou-se mão de perguntas circulares(1), sendo que as questões iniciais abordaram tópicos como: mudanças, envolvimento e organização para cuidar do idoso, dificuldades no tratamento, convivência com o idoso que possui IRC e perspectivas sobre o cuidado prestado. Baseadas nas respostas das perguntas iniciais, desenvolvem-se outras questões circulares, que incluem o ciclo de questionamentos e respostas entre os familiares participantes(1). Ainda, para a coleta de dados, utilizou-se um roteiro previamente elaborado, que continha dados de caracterização da famílias, como: local de moradia em relação à residência do idoso, renda mensal, idade, escolaridade, grau de parentesco e tempo de cuidado ao idoso. As entrevistas tiveram duração média de uma hora e cessaram pelo critério de saturação de dados, que consiste na repetição das falas(10).

A captação dos participantes ocorreu por meio da verificação da agenda de consultas do ambulatório durante o período de coleta de dados. Após a seleção dos idosos, foram realizadas ligações telefônicas para as famílias, a fim de convidá-las para participar da pesquisa. Quando o contato telefônico estava desatualizado ou ausente no prontuário do paciente, o familiar era convidado no dia em que acompanhava o idoso na consulta ambulatorial. O critério de inclusão das famílias foi: ser membro de família de idoso em tratamento pré-dialítico, sendo que cada família deveria ser composta, para a entrevista, por, no mínimo, dois membros. A escolha dos familiares a serem entrevistados ocorreu pela conversa com o idoso e com o acompanhante da consulta, na qual eles identificavam quais eram os membros envolvidos no cuidado. Após a identificação dos possíveis participantes, duas famílias recusaram o convite da pesquisadora. O número de familiares na entrevista variou de dois a três membros. Destaca-se que o idoso não contava como membro, pois não seria entrevistado naquele momento.

Os dados obtidos foram analisados por meio da análise de conteúdo temática da proposta operativa de Minayo, a qual possui dois níveis de interpretação. O primeiro nível busca as determinações, ou seja, a compreensão do contexto sócio-histórico e político dos participantes. Essas determinantes foram entendidas durante a confecção dos genogramas e a visualização dos contextos nas entrevistas no domicílio. O segundo procura a significação específica, a qual é operacionalizada pela ordenação e classificação dos dados. Na ordenação, acontece a transcrição das entrevistas e organização dos dados empíricos em corpus da pesquisa. A classificação dos dados envolve a leitura horizontal e exaustiva dos textos, a leitura transversal, a análise final e a elaboração do relatório(10).

A fim de manter o anonimato dos participantes, utilizou-se nos depoimentos a codificação pelo vínculo que possuíam com o idoso e a sequência da realização das entrevistas. Este estudo faz parte de uma pesquisa de dissertação de mestrado, que obteve parecer favorável pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, sob o número de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 09996912.5.0000.5346 e parecer nº 145.565, em novembro de 2012, respeitando os preceitos éticos da Resolução nº 196/96 durante todas as suas etapas(11).

RESULTADOS

Quanto à caracterização das famílias, três moravam em bairros próximos ou no mesmo bairro dos idosos, sendo que, desses, dois residiam com seus cônjuges e um, sozinho; quatro famílias moravam no mesmo terreno da casa do idoso; e uma das famílias residia com o idoso. A idade dos participantes variou de 14 a 83 anos. O grau de parentesco com os idosos foi: oito filhos (as), três sobrinhas, três esposos (as), duas netas, dois (duas) cunhados (as), um genro, uma nora e uma companheira. Em relação à renda, esta oscilou de um a sete salários-mínimos e a escolaridade, do ensino fundamental incompleto ao ensino superior completo. O tempo de cuidado do idoso em tratamento pré-dialítico foi, em média, de 5,6 anos.

Neste estudo, o envelhecimento do idoso foi percebido pela família por meio das alterações fisiológicas comuns nesse processo. Essas modificações podem ser potencializadas quando a pessoa idosa é acometida por uma doença crônico-degenerativa. Desse modo, os familiares se defrontam com a necessidade de lidar com o adoecimento, que pode ocorrer por diversas causas e pode ser cumulativo.

A gente sabe que, conforme passam os anos, vão aparecendo algumas doenças. Ele está tomando remédio para a “tremedeira”. Ele foi mexer numa lâmpada e pisou fora da cadeira. E então foi tirar as cataratas. Eu sei que ele está deprimido, esse negócio do rim mexeu bastante com ele. A gente não espera, mas acaba se acostumando. Um dia eu disse para ele dar uma caminhada e ele caiu e se machucou. Desde que deu esse negócio no rim ele nunca mais fez nada sozinho. (Esposa 3)

Ela trata o coração, o rim, vai ao psiquiatra e agora, talvez, a hemodiálise, então tudo vai acumulando [...]. (Esposo 8)

Ele é esquecido, para ir ao médico ele esquece. O ultrassom era dia dois, ele chegou aqui em casa dia 10 e queria fazer o ultrassom. (Sobrinha 7)

Com relação às doenças no idoso, nota-se que a presença de múltiplas patologias pode levar a limitações funcionais e cognitivas e, consequentemente, a uma maior dependência dos familiares para realizar as atividades da vida diária e auxiliar no controle das comorbidades. No caso da IRC, esta condição acresce demandas à família, que, além de lidar com as alterações do envelhecimento, terá que enfrentar a doença renal do familiar. Após identificar que as necessidades de cuidado do idoso são cumulativas, a família comenta sobre o receio da possibilidade de dependência total do idoso.

Antes ele ia [para zona rural] e cortava a grama, ia para o mato, caminhava de manhã ao lado do rio. Agora ele faz tudo um pouquinho e já cansa. A mãe o ajudava a tomar banho. Eu penso que, para ele chegar a esse ponto, da filha ter que ajudar, não é bom, pois às vezes ele tem umas coisas que são só com a mãe, pois ele tem pudor. (Filha 3)

A gente se preocupa porque ele sempre foi um cara independente, ele tinha tudo sozinho. Eu tenho medo de um dia ele vir a cair numa cama assim, e sei que ele não vai suportar. (Filho 4)

Acerca das limitações físicas, os participantes revelam que estas sinalizam a necessidade de cuidado. Diante dessa situação, a pessoa carece de auxílio para realizar atividades básicas diárias, como a higiene corporal, e, para atender a essa necessidade, muitas vezes é preciso invadir a privacidade do idoso, podendo gerar desconforto tanto para quem recebe o cuidado quanto para quem o presta. A família ainda relata que a atual condição de saúde do idoso é consequência de uma série de comportamentos adotados ao longo da vida, que podem ser considerados predisponentes ao surgimento de doenças e suas complicações.

A mãe era muito de se automedicar, quando tinha dor ia à farmácia e comprava antibiótico, porque antigamente as receitas não eram exigidas. (Filho 5)

Uma pessoa que amanhecia e anoitecia bebendo deve levar ao sofrimento dessa parte, de rins e fígado, e deve ser também por causa do abuso do fumo. (Cunhado 6)

Não é de agora, ele não se cuidou. A diabetes dele é por causa do excesso. Quando vinha àqueles exames ruins, ele se tratava. Quando fazia o exame e dava bom, churrasco e tudo de novo e até hoje não parou. Toma umas cervejas de vez em quando. Para comer ele é bem teimoso, come o que quer, mas nos dias de semana eu faço a comida. O que eu posso fazer é tirar a fritura e o sal dele. Eu controlo, faço ele comer na marra, eu digo: “Não tem outra coisa, tu vai ter que comer isso aí.” (Companheira 4)

No que refere à causa da IRC, as famílias não aparentam conhecer a origem, mas associam-na às atitudes e hábitos pouco saudáveis adotados durante muitos anos pelos idosos. Os familiares consideram que essas práticas prejudicam paulatinamente o organismo, acarretando na atual situação de saúde. Com isso, a família procura manter vigilância sobre as ações que considera arriscadas, pois estas podem propiciar danos à saúde do idoso.

A possibilidade de diálise é cogitada a partir do acometimento da IRC nos idosos, mesmo que ainda não tenham indicação para iniciar esse tipo de tratamento. A família constrói a sua concepção sobre a diálise a partir do relato de experiências de pessoas que já realizaram essa terapia.

Eu tenho um colega que fez 61 anos e começou a fazer diálise. Eu o vi e puxa vida! A pessoa fica dura, parece que enrijece. Mas como se diz: “É para ele sobreviver”. Eu vejo como é danada a hemodiálise! (Genro 1).

Eu conheço gente que faz hemodiálise. Ele [idoso] também conhece. Tem uma conhecida que fazia e faleceu, ela tinha que ficar tomando pouquinha água, comendo pouquinho e tomando remédio. Tem que se controlar em tudo! (Filha 4)

Eu disse que talvez ela se sinta melhor depois que estiver fazendo hemodiálise. O meu namorado fez diálise uma vez e disse que sentiu mais aliviado. Então, eu acho que talvez ela se sinta melhor, mais disposta. Ele disse isso e ela se sentiu mais aliviada porque as pessoas chegam e falam: “Ah, vai fazer hemodiálise, coitada!” (Neta 8)

A busca da família por experiências positivas ou negativas com a diálise é uma forma de tentar enxergar o futuro do idoso e também o seu, pensando nas necessidades de cuidado que o provável tratamento exigirá.

Sobre o cuidado do idoso, este ocorre por meio da mudança das atribuições dos membros da família devido ao adoecimento do longevo. Os familiares procuram desenvolver a melhor conduta para manter a satisfação e o bem-estar do idoso no decorrer do processo de envelhecer.

Se ela quiser que eu não trabalhe mais, que eu fique em casa, eu fico para que ela vá fazer uma ginástica. Então, outra coisa para ela se sentir bem: não adianta tirar tudo dela, porque se tem que morrer vai morrer. Com minha avó, eu tirava a comida gordurosa do prato dela e ela ficava brava comigo e não adiantou, ela morreu igual, durou a mesma coisa que iria durar [...]. (Filha 5)

Eu fico chateada por ela fumar, por mim ela não fumaria. Por isso que ela pede para os outros comprarem, se esconde de mim. Só que o meu filho, que é médico, diz por que eu estou preocupada com a avó fumar um cigarro se ela está com 85 anos, ela vai morrer. Ele diz: “Tu prefere que ela morra feliz ou infeliz?” (Filha 1)

A família vive um dilema ao cuidar do idoso. Ela sente-se dividida entre o anseio de ter o idoso junto de si, convivendo com todas as limitações que o tratamento pré-dialítico impõe, e o desejo de não o privar de suas vontades, pensando na qualidade de vida, no tempo que há para viver e na inevitabilidade de sua morte.

Embora a IRC seja irreversível, as famílias buscam encontrar alternativas que possam contribuir para a recuperação da função renal do familiar doente. Com isso, acreditam no conhecimento compartilhado por pessoas de suas relações sociais, influenciando culturalmente nas práticas de cuidado com a saúde do idoso.

Tudo que me foi ensinado para diabetes e rim eu fiz. Me ensinavam alguma coisa, eu ia atrás. Uma amiga minha me ensinou que em jejum tem que ser feito um abacaxi com coca batido no liquidificador, ele está tomando. (Esposa 3)

Se tu chegar assim e disser para ele: “Toma essa coisa que tu vai melhorar” ele toma, seja o que for [...]. (Filho 4)

Ele fez o exame e mostrou que o rim estava murchinho e o médico mostrou que precisava tirar o rim. Mas entre o exame e a operação ele fez a cirurgia espírita e não foi preciso operar, sumiu. Eu acho que a gente tem que acreditar, fazer tudo o que ensinam. (Filha 3)

Os familiares demonstram confiança em saberes e práticas que lhes são ensinados, sendo que alguns destes foram considerados eficazes, confirmados nos resultados dos exames laboratoriais do idoso. Outra alternativa utilizada pela família foi a crença espiritual, como forma de acreditar na cura da doença e confirmá-la.

A crença na possibilidade de cura por meio de terapias alternativas ao farmacológico é apresentada como uma opção para buscar a melhora da condição de saúde do idoso em pré-diálise.

DISCUSSÃO

Com o envelhecimento, a capacidade funcional do idoso pode vir a ser prejudicada, as doenças crônicas coexistem, podendo levar à dependência ou perda da autonomia(12).

Idosos com mais de um diagnóstico de doença crônica possuem alta probabilidade de apresentar incapacidade e deficiências com o avanço das patologias(13). Assim, considerando que a IRC é uma das doenças que afetam os idosos, entende-se que ela torna o cuidado mais complexo, pois essa atenção precisa ser complementar e não antagônica ao tratamento de outras doenças existentes.

As multimorbidades crônicas no idoso demandam a organização do sistema de saúde, devido ao alto custo dos tratamentos acumulados e à necessidade de planejar cuidados de longa duração, para minimizar a redução da qualidade de vida e o impacto social(14). Embora se note que a tendência seja manter os idosos sob os cuidados da família, a responsabilidade em oferecer condições de atenção à saúde dos idosos também cabe aos serviços de saúde, que devem apoiar e acompanhar as demandas do idoso e da família. Nessa perspectiva, a educação em saúde pode ser uma estratégia importante para abordar a família que cuida de um idoso com múltiplas comorbidades crônicas(15).

Nos discursos das famílias, percebe-se a preocupação com a privação do idoso de realizar atividades da vida diária, o que sinaliza o temor com a futura dependência física e a redução da autoestima pela condição de saúde. Diante da possibilidade de auxílio na realização de cuidados básicos, como a higiene corporal, o familiar reflete sobre o pudor do idoso em exibir seu corpo, podendo levar ao constrangimento de ambos os envolvidos. Essa exposição revela-se como inevitável diante da perspectiva de dependência total de cuidados. Nesse sentido, pesquisa(16) menciona que, para facilitar a realização desses cuidados, o familiar desenvolve habilidades conforme a necessidade de cuidados do idoso aumenta, criando estratégias para lidar de forma menos desconfortável com tal situação.

A presença de uma doença crônica leva a família a questionar como o idoso desenvolveu a patologia, associando a atual condição de adoecimento com ações não saudáveis realizadas durante a vida, mas que não necessariamente podem ser a causa da doença. Com isso, a família tenta impor alguns cuidados, visando restabelecer o bem-estar do idoso, o que de certa forma atua como fator protetor para a sua saúde.

O diagnóstico da doença renal em idosos é complexo e pode ocorrer de forma tardia, pelo fato do médico considerar normal para a idade a taxa de filtração renal diminuída; ou precoce, pela rotulagem dos idosos como doentes, causando preocupações desnecessárias(17).

O tratamento pré-dialítico abrange o preparo do idoso e da família para iniciar a diálise, quando esta for necessária para a manutenção da vida. Frente a essa possibilidade, a família busca informações com pessoas que já realizaram hemodiálise, pois este é o tratamento pelo qual os doentes mais optam quando necessitam de terapia renal substitutiva. A doença e o tratamento renal modificam alguns hábitos de vida, tais como a ingestão de alimentos e bebidas, as relações sexuais e o trabalho, além de levar ao declínio cognitivo, emocional e funcional do paciente(18). Assim, comumente, a descoberta da IRC e a necessidade de um tratamento dialítico podem ocasionar sofrimento físico e psíquico aos pacientes que o realizam, além de modificações bruscas no seu cotidiano de vida, as quais levam os pacientes a enfrentarem diariamente a hemodiálise e vivenciarem a possibilidade da morte(19).

Frente a isso, a família receia que o idoso necessite iniciar esse tipo de tratamento, pois considera a hemodiálise como agressiva ao corpo e a associa a uma maior mortalidade. A dependência da máquina e dos profissionais de saúde que atuam no serviço renal, somada à grande quantidade de medicamentos, cria um fenótipo de fragilidade dos pacientes em diálise. Esse é um construto multidimensional que contribui para o declínio funcional típico da idade, causando aumento no risco de hospitalizações, invalidez e morte(18). Quando as pessoas que fazem diálise são idosas, essa imagem é ainda mais frágil, levando os outros a sentirem comiseração, o que pode ser um fator desmotivador para que elas continuem na realização do tratamento da IRC.

A família vive um conflito entre auxiliar o idoso no tratamento pré-dialítico, que impõe limitações aos prazeres do idoso, e realizar suas preferências na velhice, representadas neste estudo pela alimentação contraindicada e tabagismo, ambos preconizados como cuidados necessários para a efetivação da pré-diálise(6). Neste caso, cabe à enfermagem dialogar sobre os cuidados e respeitar as decisões da unidade familiar e do idoso.

Os depoimentos das famílias demonstraram a busca por recursos a fim de melhorar a condição de saúde do idoso, como a espiritualidade e receitas populares, que podem ser vistas como uma forma de enfrentar a situação de adoecimento do idoso, mantendo a esperança na melhoria de seu membro. Os recursos utilizados por meio dos ensinamentos do senso comum e as crenças espirituais concomitantes ao tratamento médico indicam que as práticas socioculturais são terapias complementares empregadas. Fica demonstrado que essas práticas não podem ser desconsideradas pelos profissionais da área da saúde(20).

Ressalta-se que esses recursos utilizados com o intuito de melhorar o quadro clínico do idoso ainda não têm sua eficácia comprovada cientificamente. Entretanto, esse movimento em busca de uma solução pode ser entendido como uma mobilização da unidade familiar para enfrentar a doença do idoso, mantendo-a, de alguma forma, ativa e propositiva.

A partir do exposto, torna-se importante considerar as ações alternativas realizadas pela família como potencializadoras do seu relacionamento e como forma de confiar na melhoria e estabilização da doença renal. A fim de respeitar a cultura, o conhecimento das pessoas e o saber técnico-científico, é necessário dialogar com idosos e suas famílias acerca dos cuidados que estão prestando, visando à responsabilidade na aplicação de seus saberes(15).

Cabe aos enfermeiros observar as práticas de cuidado dos familiares e intervir caso estas prejudiquem a saúde do idoso. Assim, a educação em saúde realizada por esses profissionais torna-se uma estratégia relevante para a busca de resultados positivos no processo de cuidado, pela família, do idoso em tratamento pré-dialítico.

CONCLUSÃO

As percepções das famílias sobre o cuidado prestado ao idoso em tratamento pré-dialítico mostraram que este é complexo, pois, além do que é imposto pelo tratamento, a unidade familiar precisa lidar com alterações do envelhecimento e outras comorbidades.

Embora o cuidado exija esforço dos familiares, eles têm uma percepção positiva sobre a atenção que prestam ao idoso, esforçando-se para buscar informações sobre a diálise, para, assim, planejar o modo como enfrentarão essa situação.

Além disso, a família preocupa-se com a felicidade, a qualidade da atenção que o idoso recebe e sua satisfação com a vida durante o tratamento. Após a decisão dos familiares sobre quais desejos o idoso pode realizar, compete à enfermagem respeitar a opinião da família, pois ela é a principal unidade de cuidado do idoso.

Os sentimentos de amor e esperança em ver seu familiar com melhores condições de saúde fazem com que a família busque recursos para o tratamento, utilizando estratégias populares e encontrando na fé o suporte para enfrentar a IRC do idoso. Mesmo que a realização de medidas, consideradas popularmente terapêuticas, não mude a situação de saúde do idoso, compete ao enfermeiro respeitar as práticas socioculturais utilizadas pelas famílias, pois essas práticas representam a união e o movimento que estas empreendem em prol da melhora de saúde do idoso.

Diante do exposto, entende-se a família como elemento primordial a ser considerado pelos profissionais de saúde no decorrer do tratamento pré-dialítico dos idosos. Torna-se necessário oferecer suporte a ela, a fim de qualificar o cuidado prestado ao idoso, para, assim, deter a progressão da IRC e manter a autonomia dos idosos em pré-diálise enquanto for possível.

A realização deste estudo, por meio da abordagem qualitativa, propiciou compreender o subjetivo das famílias que convivem com o idoso com IRC, entretanto, limita a generalização do estudo, uma vez que cada família implementa uma forma própria de cuidar.


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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

Recebido: 20/12/2015 Revisado: 18/09/2016 Aprovado: 20/09/2016