ARTIGOS ORIGINAIS
Amamentação cruzada, da negligência às virtudes morais: estudo descritivo
Cristiane Santos Gomes1, Juliete dos Santos Amaral Fonseca1, Patrícia Lima Pereira Peres1, Benedita Maria Rêgo Deusdará Rodrigues1
1Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
O estudo tem como objetivo compreender a prática da amamentação cruzada realizada por nutrizes residentes em municípios da Baixada Fluminense. Para tanto, optou-se pelo método descritivo com abordagem qualitativa utilizando a entrevista estruturada e análise de conteúdo. Participaram do estudo 15 mulheres com idade superior a 18 anos, que amamentam ou já amamentaram, residentes nos municípios de Belford Roxo e Duque de Caxias no período entre abril e maio de 2014. Os resultados apontam que a prática da amamentação cruzada é motivada por virtudes morais e padrões comportamentais, sendo um tema negligenciado por profissionais de saúde.
Conclusão: para romper com essa prática que leva à contaminação vertical, torna-se necessário redirecionar tais virtudes para o estabelecimento e fortalecimento de uma rede de apoio associada a uma educação em saúde que contempla a amamentação cruzada e é promovida pelos profissionais que as assistem.
Descritores: Aleitamento Materno; HIV; Ética; Enfermagem.
INTRODUÇÃO
O aleitamento materno é amplamente incentivado por ser o alimento mais completo e ideal para crescimento e desenvolvimento infantil, com vantagens para a nutriz, bebê e sociedade/nação. É recomendado exclusivamente até o sexto mês de vida e complementado até dois anos ou mais, com exceção de casos infecciosos como mães portadoras do vírus HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), Vírus linfotrófico humano de células T (HTLV 1 e 2) ou quando a criança apresente algum distúrbio metabólico que o contraindique(1).
Uma importante contraindicação é a infecção pelo HIV, que teve seu advento no final da década de 70 do século passado e desde então tem sido uma doença prevalente em todo o mundo(2,3).
Entre as formas de contaminação pelo HIV está o leite materno, sendo a principal fonte de infecção do vírus em crianças(4). Isso justifica a recomendação de proibir a amamentação cruzada, ou seja, a prática de oferecer o leite materno diretamente da mama ou ordenhado a uma criança que não o seu próprio filho(5) pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e adotada pelo Ministério da Saúde do Brasil.
Em estudo que objetivou avaliar os incidentes notificados entre os anos 2008 e 2012 em um hospital de grande porte da região Sul do Brasil, a amamentação cruzada foi presente em 14 (1,9%) dos casos(5), podendo ocasionar danos para o bebê.
Outro trabalho realizado em uma maternidade do interior de São Paulo mostrou que, das 17 puérperas entrevistadas, 15 concordaram em amamentar outro bebê e 16 concordaram que seu bebê fosse amamentado por outra mulher(6).
Vale destacar que ao desenvolver o manejo da amamentação com mulheres residentes em diferentes municípios da Baixada Fluminense, a amamentação cruzada apareceu como prática frequente entre as mulheres atendidas, o que despertou a necessidade de compreender os motivos desse hábito, que não é recomendado desde a década de 1980.
Além disso, a busca nas bases de dados LILACS, SCIELO e BDENF, sem limite temporal, com os descritores “aleitamento materno” e “HIV” resultou em 32 publicações abordando temas como a impossibilidade de amamentar, prevenção da transmissão vertical e comunicação mãe-filho com HIV/AIDS. Fazendo um refinamento da busca com os descritores “aleitamento materno”, “HIV” e “enfermagem”, nenhuma produção foi encontrada.
Dessa forma, este estudo tem como objetivo geral compreender a prática da amamentação cruzada realizada por nutrizes residentes em municípios da Baixada Fluminense. Como objetivos específicos, identificar o posicionamento das mães frente à amamentação cruzada e sua prática; descrever os motivos referidos pelas mães; identificar se houve orientação de algum profissional de saúde e discutir o papel do enfermeiro na prevenção dessa prática.
Considera-se relevante a realização desse estudo pois a compreensão do conhecimento das mães sobre amamentação cruzada possibilita identificar os fatores que a conduzem a tal atividade e, assim, (re)pensar quais ações podem ser tomadas para evitar sua ocorrência e prevenir danos à saúde da criança.
REFERENCIAL TEMÁTICO
A prática de amas-de-leite (ato de amamentar o filho de outra mulher) é uma questão histórica e cultural. No século XIX passou a existir, no Brasil, a amamentação mercenária, condição na qual as mulheres que não podiam amamentar e tinham recursos eram orientadas a contratar uma ama-de-leite em domicílio por meio de remuneração, estimulando, assim, a permanência das crianças com elas a maior parte do tempo(7).
Nos anúncios de venda ou aluguel dessas amas, o proprietário frisava suas qualidades: sem vícios, moléstias, com bons costumes e gestação recentemente, ou seja, leite novo, saudável(8).
A partir de meados do século XIX, as constantes epidemias de febre amarela e cólera influenciaram os médicos a pressionar para que os bebês de cor branca passassem a ser amamentados por suas próprias mães(8).
No final do século XX, o aleitamento materno cruzado foi oficialmente proibido no Brasil segundo a recomendação da OMS de 1989, quando houve o reconhecimento de que o leite humano é fonte de infecção pelo vírus HIV. A transmissão vertical representa 84% dos casos de AIDS conhecidos em crianças brasileiras, e o aleitamento materno representa risco adicional de transmissão estimado entre 7 e 22%(9).
Estudos revelam que a transmissão vertical do vírus HIV pode acontecer durante a gestação, no parto e no pós-parto. Neste último, o risco é maior nos primeiros meses de amamentação(10,11).
De 2000 a junho de 2013, foi notificado no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) um total de 77.066 casos de infecção pelo HIV em gestantes, sendo 32.136,5 casos (41,7%) na Região Sudeste (12).
Isto implica um problema social e de saúde pública: a transmissão vertical do HIV crescente no país.
Diante do exposto, faz-se necessário o cumprimento adequado de todas as medidas preventivas da transmissão de mãe para filho, atentando para a amamentação cruzada como um risco adicional.
Vale ressaltar que o aleitamento materno é um ato biologicamente determinado, contudo a sua efetividade depende de fatores sociais, culturais, históricos e psicológicos da mãe e do compromisso e conhecimento dos profissionais que a assistem. Cabe ao profissional de saúde identificar e compreender o processo do aleitamento materno em todo seu contexto familiar e sociocultural e, com isso, promover educação em saúde adequada a cada realidade.
MÉTODO
Estudo do tipo descritivo, com abordagem qualitativa. O campo para realização constituiu-se dos municípios de Belford Roxo e Duque de Caxias, ambos no Rio de Janeiro, onde foram realizadas entrevistas com mulheres escolhidas intencionalmente pelas pesquisadoras a partir dos seguintes critérios de inclusão: a participante ser maior de 18 anos e estar ou já ter amamentado; como critérios de exclusão: a participante ser menor de 18 anos, nunca ter amamentado e morar fora dos referidos municípios.
Participaram do estudo 15 mulheres residentes dos municípios de estudo com idade superior a 18 anos e vivências em amamentação.
Cada pesquisadora ficou responsável pela coleta de dados em um município. A primeira entrevistada de cada cidade foi selecionada intencionalmente pelas pesquisadoras, captada no próprio local de moradia por atender aos critérios de inclusão. Dessa forma, foram indicadas as próximas mulheres até atingir a saturação das informações em ambos os municípios. Esse método , conhecido como snowball, “bola de neve” ou “cadeia de informantes”, é uma técnica de amostragem que auxilia na cadeia de referência dos participantes do estudo(13). O cenário ficou diversificado nos municípios em questão, com mulheres de diferentes bairros (por se tratar da Baixada Fluminense, todos têm características socioeconômicas e culturais semelhantes).
A coleta de dados ocorreu no período entre abril e maio de 2014. Deu-se por meio de uma entrevista estruturada com dados de identificação do perfil das entrevistadas e 14 perguntas abordando quantos filhos foram amamentados em seio materno, se a participante ou alguém de sua família praticou amamentação cruzada, se realizou teste de HIV, se permitiu ou permitiria que seu filho recebesse leite materno de outra mulher, se acredita ter alguma contraindicação para a prática e se algum profissional de saúde forneceu orientação sobre o assunto.
Todas as entrevistas foram realizadas individualmente, em horário e local combinados. As participantes foram orientadas quanto aos objetivos e importância da pesquisa, assim como a sua anuência para a gravação da fala após o aceite e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para cumprir os procedimentos previstos na Resolução Nº 466/2014 do CNS/MS, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (COEP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sob o parecer nº 613.220.
A análise dos dados deu-se por meio da metodologia de análise de conteúdo proposta por Minayo(14). Na primeira etapa de preparação dos dados, ou seja, das gravações de áudio das entrevistas, as falas foram transcritas para fornecer um registro do que foi dito. A segunda etapa consistiu na exploração do material, quando os dados foram organizados em categorias. A última etapa constituiu-se no tratamento dos resultados e na interpretação, quando foram realizadas inferências e interpretações, correlacionando-as com o referencial teórico.
A pesquisa seguiu fielmente os passos propostos por Minayo, que são: a) Ordenação dos dados: transcrição das gravações, releitura do material, organização dos relatos;
b) Classificação dos dados: questionamentos sobre as referências com base numa fundamentação teórica.
RESULTADOS
Com base no perfil das participantes, constatou-se que: 10 são casadas; também 10 possuem escolaridade de nível médio; 8 das 15 entrevistadas relataram ter praticado a amamentação cruzada por pelo menos uma vez e as demais alegaram que não a fizeram por falta de oportunidade; 10 mulheres relataram a ocorrência da amamentação cruzada por alguém da família, 3 negaram e duas não souberam informar. Entre elas, 10 acreditam haver alguma contraindicação para a amamentação cruzada, e 5 acham que não existe nada que contraindique a amamentação cruzada.
A partir da leitura geral e compreensiva dos trechos das falas das entrevistadas, da exploração do material e da análise de conteúdo, emergiram três categorias:
1) A prática da amamentação cruzada motivada por virtudes morais: solidariedade, bem e confiança;
2) A prática da amamentação cruzada amparada em padrões comportamentais e culturais;
3) A amamentação cruzada como um tema negligenciado por profissionais de saúde.
A prática da amamentação cruzada motivada por virtudes morais: solidariedade, bem e confiança
Solidariedade
Apesar das entrevistadas reconhecerem possibilidades de contraindicações, a prática com ponto de vista altruísta busca corrigir um mal gerado pelo não aleitamento materno, tido como dano maior.
Para as mulheres, esse ato simboliza solidariedade, uma vez que as mães têm intenção de ajudar às outras que, por razões das mais diversas (trabalho ou estudo, muito tempo longe de suas casas, baixa produção de leite ou ainda problemas na mama que impossibilitem o aleitamento), não podem amamentar seus filhos. Como mostra a fala a seguir, a amamentação cruzada aparece como uma alternativa solidária, corroborando com o estudo que reporta o caso de um bebê de dois meses ser amamentado pela tia paterna: a motivação é a necessidade da mãe de retornar ao trabalho(10).
No hospital que eu fiquei dessa vez agora, eu não tive muito leite, aí minha colega do quarto dava pro meu filho. Então da mesma maneira como os outros faz por mim, eu deveria fazer pelas outras pessoas. (E2)
Bem
O bem é outra virtude moral identificada como norteadora da amamentação cruzada na fala das mulheres. Bem, no sentido aristotélico, é a finalidade do homem; numa escala hierárquica, a felicidade é o bem supremo (15), portanto o bem, enquanto virtude, tem um sentido de valor e não de bem-estar transitório.
Tá fazendo um bem pra mim e para a criança. (E10)
Eu acho um ato bem generoso, até mesmo porque o prazer de você amamentar uma criança é tudo. (E9)
Nota-se que, para a participante, a prática da amamentação cruzada é cercada de satisfação pela perspectiva do bem garantido à criança.
Confiança
A amamentação cruzada foi apontada pelas participantes como uma prática solidária de bem que só se concretiza na vigência da relação de confiança com o outro. Isto ser pode observado nas falas a seguir.
Eu não ligo não. Como é da minha família também eu nem ligo. (E2)
Se a mãe confiasse em mim e deixasse o filho dela mamando em mim ou vice-versa. (E4)
As entrevistadas afirmaram permitir que seus filhos fossem amamentados por outras mulheres, estabelecendo a relação de confiança com a ama como um critério. Contudo, essa regra se sustenta em conceitos dúbios e, em alguns casos, sem nenhuma evidência científica.
A prática da amamentação cruzada amparada em padrões comportamentais e culturais
Essa categoria tem como base o pensamento higienista, que defende que para amamentar outra criança a mulher “ideal” precisa ser limpa, livre de doenças, próxima da família, estar com exames em dia e ser uma pessoa ética. Esse pensamento surgiu nas falas a seguir:
Eu acho que eu faria [...], mas tendo essa consciência de que teria que estar fazendo os exames para poder estar passando uma coisa saudável, mas eu faria com certeza. (E3)
Só se tiver alguma doença, como AIDS, tiver ferimento no corpo ou se não for uma pessoa muito limpa. (E12).
] se for uma pessoa que eu olhar e falar assim: “essa pessoa não é uma pessoa ética, não é uma pessoa que tem uma boa índole, é uma pessoa que não vai olhar para meu filho com mesmo amor e carinho que eu olho”, então seria uma pessoa que eu descartaria. (E7)
A confluência entre os saberes científico e popular está presente nas falas que misturam contraindicações técnica, moral e do senso comum. A cultura exerce uma forte influência na atitude das pessoas, pois por meio dela a experiência da amamentação cruzada é transmitida e incentivada pelo familiar aos seus descendentes, com base em suas vivências cotidianas:
Porque o ser humano tem o hábito de repetir aquilo que ele vê no dia a dia, na convivência, [...], por isso que eu acredito que incentivaria sim. (E4)
Então naquela época que minha mãe amamentava minha sobrinha [...] então ali minha mãe se ofereceu e eu vi aquilo ali como um incentivo pra mim [...].(E7)
A família é, em todos os sentidos, o lócus necessário para a promoção do aleitamento materno numa perspectiva autônoma.
A amamentação cruzada como um tema negligenciado por profissionais de saúde
Todas as entrevistadas relataram não terem sido orientadas em nenhum momento sobre esse assunto.
Quanto à atuação dos profissionais de saúde, todas falaram sobre a importância da orientação sobre essa temática, pois afirmam que a ausência desse conhecimento pode gerar alguma consequência para a criança. Assim, percebe-se que a amamentação cruzada é um tema ainda negligenciado pelos profissionais.
(...) tem muita gente que não tem esse conhecimento, e isso gera consequências depois para a criança, então é importante [...] a orientação de um profissional [...] (E14)
Por desconhecimento da contraindicação da amamentação cruzada, algumas mães a praticaram ainda na maternidade. Ao serem surpreendidas por profissionais de saúde, sentiram-se constrangidas.
Também por falta de nunca no pré-natal, nunca ninguém ter chegado e explicado eu fui e deixei. Ai veio uma enfermeira, no caso, e brigou. (E6)
Pra mim foi tudo normal até que chegou a enfermeira e me chamou atenção, brigou comigo porque eu estava amamentando uma criança que não era minha. (E7)
Nestas falas acima, observa-se claramente a ausência de conhecimento concernente à amamentação cruzada. Na medida em que esta questão não lhes é apresentada e esclarecida, como saber se não é boa? Ao contrário, a oportunidade de fazer o bem ao próximo contribuiu para a prática.
DISCUSSÃO
Para os profissionais de saúde o leite materno é fonte de nutrientes, fatores de proteção e prevenção contra danos à saúde, e seu alcance é efetivado mediante políticas públicas, educação em saúde e boas práticas profissionais(16). Para as mulheres que praticam a amamentação cruzada, neste estudo, as virtudes morais que norteiam as relações humanas foram as principais motivações. Dessa forma, em muitos casos, as virtudes morais são as ferramentas que as nutrizes encontram para garantir a fonte de nutrientes e fatores de proteção tão necessários à criança e acessíveis por meio da solidariedade, do bem e confiança.
Vale lembrar que as virtudes morais são valores norteadores da conduta humana, visam um fim (telos) justo. “Uma virtude constitui, principalmente, o equilíbrio entre o bem para si e o bem para o outro”(17). Em relação à solidariedade como virtude, convém afirmar que “dar ao outro o que lhe falta e não, necessariamente, o que lhe é de direito é o caráter magnânimo da virtude”(17).
As falas convergem para a compreensão de que há um modo coletivo de lidar com as limitações do aleitamento. Sobre esse pensamento e agir coletivo: "no âmbito interno de uma comunidade pode haver uma tradução de pensamento, de costumes e de lealdade que permite construir algum princípio válido para todos os seus membros”(18).
Várias frases de incentivo se propagam horizontalmente por intermédio dos meios de comunicação, entre as próprias mães e mulheres. É certo que o objetivo da política nacional de aleitamento materno é disseminar a cultura da amamentação, entretanto não se pode perder de vista as singularidades. No processo educativo é preciso informar a existência de casos em que haverá a necessidade de substituição do leite humano para proteção da criança, como acontece quando a mãe é soropositiva.
O leite materno confere à criança proteção a diversas patologias e ainda repercute em um bom desenvolvimento emocional e cognitivo(5). Tais propriedades d fazem com que ele seja a primeira escolha feita pela própria mãe, possibilitando que a criança não tenha perdas e consequentemente prejuízos à saúde.
Essa visão do leite materno como uma “vacina”, fortemente disseminada nos serviços e nos meios de comunicação, = nem sempre é compreendida em toda a sua complexidade. Ao se reportar ao aleitamento materno está se reforçando não apenas a importância do aleitamento, mas, sobretudo, do aleitamento materno, ou seja, da própria mãe. Não se trata apenas de oferecer o leite humano, mas que seja da mãe para o seu filho. Apesar disso, deve-se ter atenção às situações excepcionais.
A relação de confiança como um fator necessário para que aconteça a amamentação cruzada é estabelecida pelo fato de que a prática costuma ser feita com alguém que mantém um vínculo, ou seja, alguém próximo, da família, e também que demonstre um bom estado de saúde e que tenha feito todos os exames durante a gestação, entre outras características.
Percebe-se que ainda permanece o pensamento higienista nessas mulheres quando informaram que a amamentação cruzada não aconteceria apenas quando a “ama-de-leite” apresentasse riscos à saúde da criança. Para as participantes do estudo, uma pessoa com bom estado de saúde é a que tem bons hábitos de vida, realiza os exames recomendados na gestação e também possui boa conduta moral e ética.
No século XIX, o pensamento médico era que o leite materno transmitia características morais da nutriz ao bebê, determinando o caráter da criança. Para minimizar os problemas, foi criado um projeto por Moncorvo de Figueiredo, que obrigava as escravas amas-de-leite a passar por um exame rigoroso para ter um “certificado de qualidade”(19).
A ocorrência da amamentação cruzada por alguém da família demonstrou ser um ato transmitido culturalmente, considerando que o aleitamento é uma pratica natural e sofre influência social. A cultura é transmitida em todos os momentos da vida e influencia o modo de ser das pessoas. “[...] os valores morais e éticos da família, desenvolvidos em sua gênese e culturalmente transmitidos, permeiam as suas relações e sustentam as formas de viver da família” (11).
Há uma marca da influência da cultura nas falas das participantes derivada da relação das vivências anteriores e incentivos de seus familiares, que reforçam suas concepções sobre o aleitamento materno cruzado e fortalecem suas atitudes.
O enfermeiro é um profissional que está muito próximo à mulher durante o ciclo gravídico-puerperal. Em todas as etapas, é fundamental exercer seu papel de fornecer informação, orientação, apoio e aconselhamento. Nessa perspectiva do ensinar, oferecer subsídios para que a própria mulher construa o seu saber a partir do conhecimento prévio que já tem e incorpore novos para que se tenha efetividade durante o aconselhamento. O enfermeiro deve compreender que aconselhar e ensinar não significam uma transferência de conhecimento(20). Contudo, por meio deste estudo evidenciou-se uma lacuna na assistência referente à orientação quanto a amamentação cruzada.
O modo como os profissionais de saúde abordam as mães para orientá-las sobre o aleitamento materno também afeta o processo da amamentação. Deve existir uma compreensão acerca dos sentimentos da mulher frente a essa prática, as motivações para amamentar o filho de outra mulher ou para permitir que amamentem o seu. O profissional precisa ter habilidades de comunicação para estar disponível e ajudá-la em suas queixas, medos e preocupações, já que não deve haver imposições e sim contribuição para o conhecimento, a autonomia e a tomada de decisão dessa mulher, aumentando a sua autoconfiança e autoestima.
Como visto nos resultados, algumas mães não receberam orientação quanto ao aleitamento materno cruzado e foram repreendidas quando praticaram esse ato ainda na maternidade. Entretanto, a repreensão não é método para educar - ela encontra-se no oposto da educação, gerando constrangimento ao indivíduo no momento em que acontece. Potencialmente ele retornará a praticar as mesmas condutas, pois somente chamar a atenção não conduz o sujeito à reflexão das suas ações, enquanto orientação e aconselhamento levam a reflexão-ação-reflexão, gerando interlocução e não um monólogo.
Os enfermeiros são educadores e formadores de opinião e devem estimular o pensamento crítico, a reflexão e troca de ideias nas interlocuções com as pessoas de quem cuidam. Cada indivíduo é um ser único, constituído socialmente e historicamente, que aprende por meio da interação de seu meio; mas para isso, a educação deve ser contextualizada com a sua realidade.(20)
Portanto, deve haver a responsabilidade de orientar a mulher de forma integral, sem deixar lacunas que podem ser prejudiciais. Para isso, espera-se uma postura ética dos profissionais para dar o esclarecimento às mulheres e não simplesmente adverti-las quando o ato já foi consumado pela falta de orientação prévia.
CONCLUSÃO
Várias são as estratégias utilizadas pelos profissionais de saúde para a promoção do aleitamento materno, o que indiscutivelmente traz reflexos importantes na mudança de prática de muitas mães brasileiras. Contudo, a massificação acerca da importância do leite materno, bem como da sua superioridade sobre outros substitutos lácteos, dissociada de um processo educativo e de reflexão, pode obscurecer os riscos que o leite humano pode representar quando não é o materno ou proveniente dos bancos de leite humano.
A amamentação cruzada se constitui uma prática culturalmente aceita nos cenários de realização do estudo, justificada por virtudes morais como a solidariedade, o bem e a confiança.
O estudo demonstrou que a amamentação, e, em particular, a amamentação cruzada, é um exemplo claro desse “agir moral” na medida em que as duas primeiras categorias apontam para escolhas que as mulheres, participantes do estudo, realizaram. Para elas, ser solidária à outra e fazer o bem à criança foram motivações legítimas e, embora algumas delas conhecessem as contraindicações, foi a confiança que tornou possível o ato.
A terceira categoria traz luz às duas primeiras, uma vez que a escolha livre e autônoma não é possível se não houver conhecimento suficiente. Desse modo, a imposição sem esclarecimentos acerca dos malefícios da amamentação cruzada (como foi vista nas falas) é um elemento-chave para a continuidade dessa prática.
A amamentação cruzada está longe de ser um tema esgotado, quer seja do ponto de vista da investigação cientifica, quer seja da assistência enquanto prática multiprofissional. Para a enfermagem que busca uma prática libertária, crítica e autônoma para os diferentes sujeitos do seu cuidado, a pesquisa aponta a necessidade de maior aprofundamento na temática, buscando compreender a prática profissional do enfermeiro. Outros estudos sobre a amamentação cruzada poderão contribuir para uma melhor compreensão do fenômeno transmissão vertical da AIDS e o impacto em sua magnitude.
Assim, a pesquisa contribui para um cuidado integral e uma assistência mais adequada, que se pauta no conhecimento das nutrizes para a elaboração de planos de ação que possam intervir no curso da amamentação cruzada. Para os profissionais, serve de evidência para que na abordagem sobre aleitamento materno com as mães seja inserido o tema amamentação cruzada, tantas vezes esquecido.
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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf
Recebido: 05/02/2015
Revisado: 17/08/2015
Aprovado: 18/08/2015