ARTIGOS ORIGINAIS

 

Exposições ocupacionais aos fluidos biológicos, repensando estratégias de intervenção: estudo qualitativo

 

Carolina Luiza Bernardes1, Patricia Campos Pavan Baptista1

1Universidade de São Paulo

 


RESUMO
Objetivo: Desvelar o fenômeno a experiência do acidente com fluido biológico segundo os trabalhadores de enfermagem, com vistas à reorganização do processo de trabalho.
Método: estudo qualitativo com abordagem da fenomenologia existencial. Oito trabalhadores de enfermagem que se acidentaram com fluido biológico responderam a questão norteadora: “Como foi para você ter se acidentado com fluido biológico?”. Os discursos foram analisados segundo o referencial da filosofia existencial de Martin Heidegger.
Resultados: A análise evidenciou duas categorias: “’Ser-no-mundo’ vivenciando o acidente com fluido biológico” e “A transcendência por meio da reorganização do trabalho”, que descrevem a vivência dos trabalhadores de enfermagem que se acidentaram com fluido biológico, além do contexto em que os acidentes ocorrem, marcado pela sobrecarga de trabalho.
Conclusão: Os resultados apontam estratégias de intervenção para a reorganização do processo de trabalho, fundamental para a redução dos acidentes com fluidos biológicos.
Descritores: Enfermagem; Exposição ocupacional; Agentes biológicos; Pesquisa qualitativa.


 

INTRODUÇÃO

O avanço tecnológico e científico na área da saúde é indiscutível e vem ocorrendo de forma progressiva. Entretanto, a melhoria das condições laborais para os trabalhadores de enfermagem não têm ocorrido na mesma velocidade, evidenciando um quadro preocupante quanto aos acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.

Os acidentes de trabalho são formas de expressão do desgaste do trabalhador. Ao sofrer um acidente ocupacional, o trabalhador é exposto a cargas biológicas, devido ao contato direto com fluidos biológicos (por meio de respingos, perfuração da pele ou contato com mucosas); a cargas mecânicas, devido aos cortes e rompimento da solução de continuidade da pele, nos casos de acidentes com perfurocortantes; e a cargas psíquicas, muitas vezes subjugadas pelos próprios profissionais e relacionada aos sentimentos vivenciados durante e após o acidente(1).

Só no ano de 2013, foram registrados com Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) 559.081 acidentes laborais no Brasil. As ocorrências sem CAT registradas foram 158.830, totalizando 717.911 acidentes. No mesmo período, foram excluídos do mercado do trabalho por acidente do trabalho ou doença ocupacional em média 48 trabalhadores por dia no país(2).

Em relação às características dos acidentes ocorridos entre trabalhadores de instituições de saúde vinculadas a um Centro de Referência Regional de Saúde do Trabalhador, as pesquisas mostram que foram registrados 52 acidentes de trabalho; desses, 76% envolveram o sangue. Em relação ao tipo de exposição, a percutânea foi responsável por 78,8%. Quanto às circunstâncias causadoras dos acidentes, 17,4% ocorreram durante a administração de medicamentos; 17,3% devido à manipulação da caixa com material perfurocortante e 9,6% pelo descarte de perfurocortantes em saco de lixo comum(3).

Um estudo realizado no Irã identificou 171 exposições e apontou que 32 (19%) dos acidentes ocorreram pelo contato da mucosa do trabalhador acidentado com fluidos potencialmente infecciosos(4).

Pesquisa que buscou analisar 17 acidentes de trabalhos com fluidos biológicos verificou que as situações vivenciadas que favoreceram a ocorrência das exposições foram em maior proporção devido a pacientes agitados no momento do acidente (35,2%); falta de atenção e cuidado do profissional (23,5%); descarte inadequado do perfurocortante (23,5%) e sobrecarga de serviço 17,6%(5). As literaturas internacionais apontam que as mãos são as partes do corpo mais envolvidas nos acidentes(6).

A análise que investigou os acidentes com material biológico entre 100 estudantes de medicina estagiando em um pronto-socorro de trauma verificou que 32 deles se acidentaram com materiais biológicos. As atividades de maior risco foram anestesia local (39,47%), sutura (18,42%) e reencape da agulha (15,79%). As principais vias de exposição ao material biológico foram contato com olho ou mucosa (34%), que ocorreu por meio de seringa com agulha em 45% dos casos. Entretanto, após a contaminação, apenas 52% notificaram o acidente ao setor responsável(7).

Nesse sentido, a notificação das exposições por meio do registro das informações acerca dos acidentes é fundamental para a identificação dos fatores de risco e o desenvolvimento das estratégias de prevenção.  Uma pesquisa realizada em um centro cirúrgico de um hospital de grande porte no interior de São Paulo identificou que, de um total de 261 exposições a material biológico, 147 foram subnotificadas. Sendo assim, as autoras verificaram que a taxa de subnotificação foi de 55,1%. Entre os motivos referidos para a não notificação dos acidentes, o paciente era fonte HIV negativo e o julgamento de que o acidente era de baixo risco(8,9). Dessa forma, embora a Vigilância em Saúde do Trabalhador esteja pautada na investigação, análise e intervenção nos processos com vistas à promoção da saúde e a prevenção de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, percebe-se um distanciamento entre o conhecimento teórico, sua apreensão e a aplicação voltada para a prevenção dessas exposições(10).

Embora muitas pesquisas estejam sendo realizadas, nota-se que a situação ainda é muito problemática e requer um novo olhar sobre o ambiente laboral, identificando o contexto desses acidentes e propondo estratégias eficazes de prevenção no ambiente de trabalho.

 

OBJETIVOS

Desvelar o fenômeno a experiência do acidente com fluido biológico segundo os trabalhadores de enfermagem, com vistas à reorganização do processo de trabalho.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa fenomenológica, com abordagem da fenomenologia existencial de Martin Heidegger. A fenomenologia é um método filosófico que busca, por meio da compreensão de um fenômeno, desvelar o seu sentido para, assim, chegar àquilo que a coisa é(11).

Os sujeitos da pesquisa foram oito trabalhadores de enfermagem que sofreram acidente de trabalho com fluido biológico. O único critério de inclusão para a seleção dos sujeitos foi ter sofrido acidente de trabalho com fluido biológico notificado conforme legislação vigente no Brasil até o período máximo de seis meses, respeitando o período de atendimento ao trabalhador, preconizado no protocolo de atendimento ao acidente com fluido biológico. Primeiramente, o Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho forneceu a listagem dos trabalhadores da equipe de enfermagem que sofreram acidente com fluido biológico nos últimos seis meses. Na listagem fornecida estavam relacionados 70 nomes de trabalhadores, mas apenas 29 tinham informações, como contato telefônico e setor de trabalho.

Inicialmente, foram realizados contatos telefônicos com os trabalhadores presentes na listagem de forma sequencial. Em seguida, partindo-se do aceite do trabalhador, um encontro foi agendado de acordo com sua disponibilidade de data e local. Os dados foram coletados individualmente entre os meses de janeiro e fevereiro de 2014, até o momento em que todas as inquietações foram respondidas. Preservou-se a identidade dos trabalhadores por meio de nomes fictícios para a identificação de cada um dos discursos. As entrevistas foram gravadas em aparelho de MP3 mediante sua autorização prévia a partir da seguinte questão norteadora e uma questão auxiliar: “Como foi para você ter se acidentado com fluido biológico?”.

O projeto foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Parecer nº 464.028, de acordo com a resolução 466/2012, que regulamenta pesquisas em seres humanos no Brasil.

Apresentou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para cada entrevistado. Esse documento fornece explicações sobre a pesquisa e assegura o sigilo das informações fornecidas.

Foi resguardado ao entrevistado o direito de interromper a participação no projeto quando lhe fosse conveniente.

Os discursos foram analisados por meio da transcrição das entrevistas, leitura e releitura para apreensão e identificação das unidades de significado, considerando os pressupostos do referencial filosófico de Martin Heidegger. Assim, constituíram-se as categorias que desvelaram o fenômeno a experiência do acidente com fluido biológico segundo os trabalhadores de enfermagem.

 

RESULTADOS

A análise dos discursos segundo o referencial de Martin Heidegger permitiu a constituição de duas categorias: “Ser-no-mundo vivenciando o acidente com fluido biológico” e “A transcendência por meio da reorganização do trabalho”, as quais desvelaram o fenômeno a experiência do acidente com fluido biológico segundo os trabalhadores de enfermagem, com vistas à formulação de estratégias de intervenção para redução dos acidentes.

A seguir são apresentados os trechos que possibilitaram a composição das categorias:

Categoria 1 - “Ser-no-mundo vivenciando o acidente com fluido biológico”
Esta categoria aborda a vivência dos trabalhadores de enfermagem que se acidentaram com fluido biológico, trazendo à tona a angústia, o medo da morte, a necessidade de cuidado, as dúvidas em relação ao tratamento e a possibilidade de ter sido contaminada.

Após o momento do acidente, os trabalhadores passam a repensar suas vidas, manifestando inquietude profunda, desespero e ansiedade que os oprime. Sentem medo da morte e fragilidade diante da magnitude daquele acontecimento. A angústia, caracterizada por uma mistura de sentimentos, é evidenciada a seguir:
Fiquei muito desesperada na hora... o paciente estava internado... fiquei desesperadíssima, três dias aquilo não saía da minha cabeça um minuto... um minuto... (Camila)

Encostei na pia, deu vontade de chorar... minha vontade era chorar... agora não sei que tipo de vírus ela tem e agora meu mundo acabou... depois de doze horas de plantão... ai foi horrível...(Renata)

A preocupação com as pessoas, a responsabilidade e o vínculo afetivo com filhos, esposos e irmãos geram um sentimento muito desesperador para os trabalhadores, principalmente quanto à possibilidade de contaminação. Os discursos evidenciam que, muitas vezes, eles proporcionam o sustento da casa e o acidente significa o fim do trabalho, a perda da vitalidade:
Eu fiquei pensando: “Poxa eu...aqui estou arriscando muito a minha vida...nossa”... ai sei lá... e também pensei no meu filho... eu falei: “Largar o meu filho em casa pra tá aqui arriscando minha vida”...(Bruna)

E como eu tenho uma irmã que é doente e depende muito de mim... ela tem esquizofrenia... e ela depende muito de mim...(Bianca)

Essa experiência é permeada de dúvidas em relação à contaminação, incerteza quanto aos resultados dos exames, a possibilidade do tratamento com antirretrovirais e até mesmo a não efetividade dos medicamentos após o acidente geram uma sensação de fraqueza, insegurança e fragilidade, que está presente nas descrições a seguir:
Começa aos pouquinhos... vai baixando a adrenalina da hora... e do momento... você fica pensando: “Ah...será que estava contaminado? Será que vai dar positivo? Será que eu vou ter que tomar aquele monte de medicação? ...ai será que...ai será que...” . É muito difícil...(Marli)

A exposição ocupacional manifesta um repensar sobre sua própria vida e a possibilidade de adoecer devido à probabilidade de contaminação pelos vírus HIV, Hepatite C ou B, traz a tona uma série de sentimentos relacionados à possibilidade da morte. Embora não pronunciado, esse sentimento está implícito nos trechos seguintes:
Eu fiquei muito nervosa... porque ela era HIV... estava fazendo tratamento colhendo lícor todo dia... estava com meningite... tinha tido uma meningite e já tratava há dois anos de HIV...aí fiquei muito... me deu uma depressão danada...(Bianca)

Minha vida passou na minha frente no momento do acidente. Pensei: “Agora pode mudar minha vida ser portadora de um vírus C, de uma Aids”... (Renata)

Os trabalhadores descrevem a necessidade de cuidado, como o apoio institucional, emocional e suporte para todas as ações que irão vivenciar. Portanto, ter alguém para conversar, amparo e o resgate da sensação de segurança e estabilidade que há pouco perdera é muito importante. Os relatos abaixo evidenciam a importância desse cuidado:
Eu precisava de alguém do meu lado naquele momento, então a Júlia*, enfermeira, me pegou aqui fora, me colocou na outra sala e falou: “Calma...”. Eu falei: “Calma, calma como?”. Então ela conversou comigo, ficou do meu lado, me apoiando, sabe? Fez muita diferença para mim naquele momento ter alguém pra conversar... (Renata)

Por outro lado, durante essa experiência alguns trabalhadores vivenciaram a falta de cuidado e a impessoalidade manifesta pelos outros membros da equipe em relação ao colega acidentado, à atribuição da culpa pelo acidente e o ser mal visto pelos membros da equipe:
Naquele momento eu me senti abandonada, abandonada... Ah, sei lá, porque a enfermeira estava ocupada com os outros pacientes e tinha muitos pacientes graves, um paciente entubado... Aí chegou outro desacordado... E os dois médicos discutindo o caso em vez deles me darem um apoio... Ficaram discutindo o caso um virado pro outro... E aí olha pra sua cara e tipo assim: “Se vire”... (Cibele)

Só que... Sempre as pessoas quando veem assim sempre acham que você se contaminou porque você quis... (Joana)

Assim, esta categoria é permeada pelo desgaste emocional vivenciado pelos trabalhadores após o acidente, a importância do apoio e cuidado de outrem para a segurança e o enfrentamento do problema. Demonstra, também, o preconceito e a indiferença dos colegas de trabalho para com o trabalhadoracidentado.

Categoria 2- “A transcendência por meio da reorganização do trabalho”
Na presente categoria, os trechos revelam a ocasião em que os acidentes ocorreram, evidenciando as diferentes falhas no cotidiano de trabalho que sinalizam para a formulação de estratégias com vistas à redução dos acidentes.

A falta de conhecimento, as dificuldades para manusear novos materiais, o uso inadequado da caixa de perfurocortante e as falhas no processo de educação permanente dos trabalhadores de enfermagem são destacados como fatores importantes na gênese dos acidentes, conforme os trechos abaixo demonstram:
Eu já tinha puncionado, mas não sabia como que usava o jelco, era um jelco novo... até tiveram treinamento só que no dia eu não estava, então acabei não participando... então acabou acontecendo isso, mais por falta de conhecimento.(Bruna)

Que nem a caixinha ... a tampa eu acho que estava mal colocada, um negócio assim... na hora que eu joguei o escalpe lá dentro, voltou e furou meu dedo... (Joana)

Há algum tempo atrás eu estava puncionando um paciente... estava colhendo sangue dele... e quando eu fui jogar o escalpe no perfuro, ele virou pra cima e picou o meu dedo...(Camila)

Conforme se pode observar nos trechos, o descarte inadequado dos materiais perfurocortantes, especialmente associados com o preenchimento da caixa coletora além do limite recomendado, ainda é um importante responsável pela ocorrência de acidentes.

Outro aspecto relatado é a utilização de materiais e instrumentos inadequados para a realização dos procedimentos, muitas vezes pela escassez de material adequado, contribuindo para a exposição dos trabalhadores. O trecho a seguir refere-se a um trabalhador que estava utilizando uma agulha ao invés de uma lanceta para a realização do teste de glicemia capilar:
Porque como não tinha lanceta, eu estava furando com a agulha de insulina, aí ela (paciente) bateu, levantou a mão e a agulha voltou no meu dedo... (Bianca)

Também foi evidenciado a não utilização dos equipamentos de proteção individual pelos trabalhadores durante a execução de procedimentos invasivos, favorecendo a exposição do trabalhador aos fluidos biológicos:
Então ele estava passando um cateter central. Quando ele foi tirar o sangue da seringa no campo, ele apertou com muita força o êmbolo da seringa, então o sangue bateu no campo e subiu em mim. Ele colocou muita força no êmbolo da seringa... e eu sou pequenina... numa emergência, querendo salvar a vida do paciente, muitas vezes a gente acaba deixando de usar os EPIs..(Renata)

Da vez que eu me contaminei com líquido né?... fui desprezar uma sonda e aquele líquido... a sonda caiu da minha mão... a sonda não, o recipiente; e voltou, eu me molhei toda com aquela secreção nojenta... ai, foi horrível... (Joana)

Outro fator identificado como causador das exposições ao fluido biológico é a sobrecarga de trabalho vivenciada pelos trabalhadores de enfermagem nas instituições de saúde. Devido ao alto fluxo de pacientes e a alta demanda de serviços, a rapidez na execução nas atividades acarreta a diminuição da atenção no momento da realização dos procedimentos. Além disso, a desatenção da equipe como um todo também foi um fator apontado pelos sujeitos:
Então, esse último acidente que eu sofri tinha uma paciente que estava na sala de agitação, era uma paciente psiquiátrica então eu falei: “olh,a vou dar uma picadinha no seu dedo pra fazer o dextro” Tá bom... aí o médico chegou, entrou na sala e foi conversar com ela, a paciente levantou a mão e furou meu dedo...(Bianca)

E na hora que ele chegou... Eu estava puncionando o paciente, então o médico pegou e encostou na maca, então a maca andou e o jelco entrou na minha mão... poxa, a maca não é lugar pra apoiar e cruzar a perna. Eu acho que a obrigação dele era ter me ajudado, já que ele viu que o paciente estava ruim...(Joana)

Porque na verdade eu coloquei o jelco na bandeja e, quando eu fui pegar o esparadrapo para fixar o acesso, eu não vi o jelco, estava embaixo do esparadrapo, aí espetou a ponta do meu dedo. (Bruna)

Por meio desta categoria percebe-se que, durante o processo de trabalho da equipe de enfermagem, na execução das atividades e dos procedimentos, os trabalhadores estão sob a influência de inúmeros fatores que podem contribuir para a ocorrência dos acidentes de trabalho com fluidos biológicos. A sobrecarga, a escassez de pessoal, o não cumprimento de procedimentos de biossegurança, além das falhas na educação permanente, são fatores importantes destacados pelos trabalhadores.

 

DISCUSSÃO

Por meio da primeira categoria identificada “Ser-no-mundo vivenciando o acidente com fluido biológico”, pode-se compreender a vivência dos trabalhadores de enfermagem que se acidentaram com fluido biológico, marcada pela angústia, pelo medo da contaminação, incertezas acerca do tratamento e a necessidade de cuidado.

Partindo da perspectiva heideggeriana, o próprio homem é denominado de ser-aí (Dasein), um ente que só existe neste mundo a partir das relações que estabelece com outros entes. Os discursos evidenciam o medo da finitude, caraterizado pela angústia dos trabalhadores de enfermagem. Segundo Heidegger(11), a angústia pode ser definida como um modo de ser no mundo. É a angústia que provê o caminho mais fácil para a autenticidade; é um tipo de náusea ontológica que se apodera do ser-aí sempre que se chega perto de compreender a instabilidade inerente da existência humana.

Neste mundo, em contato com outros seres, após a ocorrência do acidente, os trabalhadores relataram como necessidade de cuidado o suporte da chefia e o apoio emocional dos colegas de trabalho. Define-se como “mundo” aquilo a que se dedica o cuidado, e o “ser” como aquilo que dedica cuidado ao mundo. Não se pode aproximar da autenticidade tentando se ausentar do mundo, pois o cuidado revela a existência como sempre(11).

Ao mesmo tempo, alguns trabalhadores relataram o desamparo e o preconceito durante a vivência do acidente, evidenciando a falta de cuidado. As dificuldades enfrentadas por eles refletem o cuidado inautêntico ou descuidado após a exposição ocupacional. O descuidado se relaciona a modos deficientes de solicitude e ocorre quando não é permitido ao outro se manifestar; este é deslocado de sua posição, tornando-se dependente e dominado - mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado(11).

Dessa maneira, o preconceito da equipe de trabalho e a representação social que o profissional e o hospital possuem é a de que o trabalhador é sempre o culpado pelos acidentes. Essa crença provém de uma realidade previamente construída, ancorada em princípios conformistas(12).

Em relação à segunda categoria, identificada como “A transcendência por meio da reorganização do trabalho”, é possível perceber que os acidentes ocorrem em um contexto marcado pela sobrecarga de trabalho, desatenção com o outro, mau uso dos equipamentos de proteção individual.

Entretanto, também se evidenciou que fatores como a falta de conhecimento, uso inadequado dos instrumentos de trabalho e não utilização dos equipamentos de proteção individual são responsáveis por grande parte dos acidentes(13).

Tratando-se da falta de conhecimento, esta pode estar relacionada não apenas à má formação dos profissionais, como também às falhas no processo de educação permanente durante a vida de trabalho.

Dessa maneira, a formação dos profissionais de enfermagem surge de um contexto histórico inserido em uma realidade socioeconômica pautada na necessidade de mão de obra barata e pouco reflexiva acerca de suas práticas. Diante da necessidade de rápida inserção no mercado de trabalho, é voltada para um ensino superficial, muitas vezes distante da realidade que os mesmos enfrentarão em suas atividades profissionais. Ao mesmo tempo, as dificuldades enfrentadas pelos estudantes durante o processo de ensino (pela necessidade de trabalhar e estudar para suprir o custo de vida) prejudicam a criação de uma formação sólida e reflexiva(14).

A educação permanente é uma importante estratégia para a redução dos acidentes com fluidos biológicos. Por meio da abordagem educativa, torna-se uma ferramenta capaz de fornecer subsídios para a transformação da realidade por meio da problematização das situações de acidentes vivenciadas no cotidiano de trabalho. Sendo assim, a discussão dos fatores relacionados à sua ocorrência contribui para a conscientização do risco, levando os trabalhadores a identificarem os desafios pessoais e de gerenciamento do serviço e assistência, com vistas ao desenvolvimento de um ambiente de trabalho mais seguro(15).

Frequentemente, observa-se que os trabalhadores de enfermagem subjugam os riscos aos quais estão expostos ao desenvolverem suas rotinas de trabalho, como a não utilização de luvas para a realização de punção venosa e a ausência do uso de máscara e óculos de proteção durante a execução de procedimentos como sondagem vesical e aspiração endotraqueal, práticas corriqueiras nas instituições de saúde. Cercados por uma rotina desgastante , a segurança proporcionada pelos anos de ocupação torna os trabalhadores pouco reflexivos em relação à importância da utilização dos equipamentos de proteção individual para a sua saúde. 

Uma pesquisa revelou a distribuição dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico entre trabalhadores de um hospital-escola e identificou que, do total de 55 acidentes registrados as causas estavam relacionadas em ordem decrescente à falta de atenção do colega de trabalho em 8 casos (14,3%);  pressa e não utilização do EPI em 7 ocorrências(12,5%), falta de atenção em 6 (10,7%); material inadequado em 5 (8,9%); movimento do paciente em 4 (7,1%) e recipiente de descarte cheio em 2 (3,6%)(16).

A conscientização dos trabalhadores quanto ao uso dos equipamentos de proteção individual pode ser desenvolvida por meio de práticas educacionais em oficinas onde o trabalhador possa manipular os equipamentos, solucionar dúvidas em relação ao uso correto e os riscos aos quais está exposto caso não utilize os equipamentos de proteção de forma correta.

Em relação ao descarte inadequado dos materiais, um estudo realizado em 50 municípios do sul de Minas Gerais identificou a ocorrência de 460 acidentes no período de 2007 a 2011 e verificou que a metade deles ocorreu entre auxiliares e técnicos de enfermagem e o descarte inadequado de material perfurocortante em sacos de lixo, bancadas, camas, entre outros, correspondendo a 29,7% do total de acidentes. A ruptura da integridade da pele durante a administração de medicação endovenosa correspondeu a 8% dos casos(17).

É importante ressaltar que aspectos relacionados ao descarte de materiais perfurocortantes, como o preenchimento das caixas coletoras acima do recomendado pelo fabricante e a prática de depositar materiais contaminados com sangue em caixas já preenchidas, por meio de manobras como empurrar os materiais com as mãos, aumentam o risco de perfuração. Soma-se a esses fatores o hábito de reencapar agulhas, que ainda se faz presente e interfere negativamente na prevenção dos acidentes.

Partindo da perspectiva heideggeriana, o próprio homem é um ente que só existe neste mundo a partir das relações que estabelece com outros entes. Nesta perspectiva, a relação de cuidado consigo mesmo e com o mundo caracteriza todas as realizações da vida. A partir dessa projeção, o homem passa a estar com o outro em seu cotidiano e não mais solitário. Por meio da possibilidade de estar com o outro, o ser-aí sente despertar um sentimento de solicitude, um preocupar-se com o outro(11).

A solicitude é estar com o outro demonstrando cuidado e preocupação. É por meio do “preocupar-se” que o cuidado se manifesta, transformando o homem para um existir além do que lhe foi posto.

Essa é a manifestação mais autêntica da existência humana; é transcender sua própria existência. Portanto, o cuidado é a totalidade das estruturas ontológicas do ser-aí no mundo, compreende todas as formas de estar-aí no mundo disponível, a todas as possibilidades junto aos outros. O cuidado pertence de forma essencial ao ser-no-mundo, o ser-aí neste mundo é primordialmente preocupar-se com(11).

Dessa forma, torna-se evidente a importância do diálogo com os trabalhadores de enfermagem e o estar-com para diagnosticar as causas do descarte inadequado de material perfurocortante paralelo a um avanço tecnológico e científico em meio a uma realidade permeada de informações ainda pouco explorada pela enfermagem.

Pesquisa realizada na Holanda aponta para a existência de 13 a 15 mil acidentes de trabalho ao ano no país e refere à importância da prevenção e do manejo adequado dos acidentes. Para os autores, a prevenção das exposições ocupacionais se dá por meio da educação permanente, organização do trabalho e uso de equipamentos mais seguros. O desenvolvimento de ações visando à diminuição da ansiedade e incerteza por parte dos trabalhadores é apontado pelos autores como uma ação importante(18).

Nesse aspecto, o papel do trabalhador e sua conscientização relacionada à real necessidade da utilização de equipamentos de proteção e atenção focada durante a realização dos procedimentos são fundamentais para a redução do número de acidentes de trabalho. Portanto, o planejamento das atividades assistenciais requer, além do conhecimento técnico científico, a capacidade para identificar a complexidade da assistência prestada e as situações de risco(19).

Outra questão relevante é a necessidade de um novo olhar para os espaços físicos do trabalho, muitas vezes superlotados, o que dificulta a circulação dos trabalhadores em espaços reduzidos e propicia a ocorrência de acidentes. Percebe-se que as condições são ruins, partindo de uma estrutura física inadequada em relação à ergonomia e ao mobiliário. Ressalta-se a importância do desenvolvimento de condições adequadas de trabalho por meio de discussões e conversas entre os trabalhadores e os gestores das instituições de saúde, visando à melhoria da saúde do trabalhador e, como consequência, uma assistência de enfermagem livre de erros(20).

 

CONCLUSÃO

O presente estudo buscou desvelar o fenômeno a experiência do acidente com fluido biológico segundo os trabalhadores de enfermagem, visando repensar estratégias para a reorganização do processo de trabalho. A partir dos discursos, foi possível compreender uma vivencia sofrida, caracterizada por insegurança, angústia, medo de contaminação, medo da morte e falhas nas redes de apoio. Os discursos também revelam que o contexto atual dos acidentes de trabalho com fluidos biológicos no Brasil é permeado por uma prática que favorece a ocorrência desses acidentes, colocando em risco a vida do ser-aí em sua existência. Questões como a sobrecarga de trabalho, escassez de recursos humanos e materiais, inadequação física, falhas na formação dos profissionais e no processo de educação permanente constituem o cotidiano dos trabalhadores de enfermagem. Nesse sentido, o estudo aponta para a reorganização do processo de trabalho vislumbrando os seguintes aspectos: a criação de grupos entre os trabalhadores como forma de identificar as dificuldades na execução de suas atividades políticas institucionais direcionadas à prevenção dos acidentes, com o foco nos sujeitos, partindo do apelo do ser pelo cuidado autêntico baseado na solicitude e na compreensão; reformulação da estrutura física e mobiliário; fortalecimento da educação permanente nas instituições hospitalares.

 

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19. Gusmão GS, Oliveira AC, Gama CS. Acidente de trabalho com material biológico: análise da ocorrência e do registro. Cogitare Enferm. 2013; 18(3):558-64.

20. Gallas SR, Fontana RT. Biossegurança e a enfermagem nos cuidados clínicos: contribuições para a saúde do trabalhador. Rev.Bras.Enf. 2010; 63(5): 786-92.

 

 

Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido:11/02/2015
Revisado: 20/8/2015
Aprovado: 25/8/2015