ARTIGOS ORIGINAIS
Utilização do processo de enfermagem em centros de terapia intensiva no Rio de Janeiro como subsídio à implantação de prontuário eletrônico
Patricia dos Santos Claro Fuly1, Sergio Miranda Freire2, Rosimary Terezinha Almeida1
1Universidade Federal do Rio de Janeiro
2Universidade Estadual do Rio de Janeiro
RESUMO
Esse estudo teve por objetivo avaliar a utilização do processo de enfermagem em centros de terapia intensiva na região metropolitana do Rio de Janeiro, de modo a identificar as condições potenciais para a informatização dessas unidades. Foram realizadas entrevistas com 27 enfermeiras líderes de equipe, no período de janeiro a julho de 2003. As entrevistas revelaram que: o processo de enfermagem não era utilizado na íntegra, sistematicamente não incluindo o diagnóstico de enfermagem; 13 centros possuíam formulários de prescrição de enfermagem, mas apenas 11 cederam seus formulários; e 5 centros possuíam algum tipo de sistema informatizado. Dos formulários obtidos, foram identificadas 128 diferentes ações de enfermagem com alta variabilidade de uso e inexistência de padrões para o registro da informação. Diante deste quadro, conclui-se que as condições para a informatização do processo de enfermagem nestes centros não são adequadas.
Descritores: processo de enfermagem; prontuário eletrônico; centro de terapia intensiva.
INTRODUÇÃO
O processo de enfermagem é um método para a organização e prestação da assistência, composto por cinco etapas (avaliação inicial, diagnóstico de enfermagem, planejamento, implementação e avaliação) que busca identificar as necessidades assistenciais do paciente, estabelecendo um plano de tratamento e implementando ações para a satisfação dessas necessidades assistenciais. O conceito de processo de enfermagem surgiu em 1955 e começou a ser mais amplamente usado nos anos 70 (POTTER, 1998). A aplicabilidade desse modelo vem sendo discutida, porém, o processo de enfermagem apresenta suas variações e até hoje sofre algumas revisões para melhor adaptação à realidade de alguns países.
A documentação das atividades de enfermagem constitui um pré-requisito para um cuidado com qualidade, sendo necessário que durante a documentação, o registro da informação se apresente de forma organizada, pautada em uma metodologia (AMMENWERTH, 2001). É nesse momento que o processo de enfermagem constitui um método importantíssimo para o desenvolvimento da prática do enfermeiro, à medida que sistematiza o processo de cuidado aos pacientes. Assim o processo de enfermagem contribui para a autonomia do enfermeiro e para uma enfermagem pautada em bases científicas, fornecendo subsídios para a implantação de sistemas de informação englobando as ações de enfermagem (VAZ, 2002).
A necessidade de implantação desses sistemas é hoje amplamente reconhecida, haja vista que eles possibilitam uma melhor qualidade na atenção ao paciente, a avaliação da qualidade de serviços e o intercâmbio de informações intra e interinstitucional (ANDERSON, 2000). Cabe destacar ainda que a enfermagem encontra-se à margem do processo de informatização hospitalar, que geralmente enfatiza as informações referentes à prática médica (AMMENWERTH, 2001). Desta forma é de fundamental importância a busca de meios para se incluir esse profissional no desenvolvimento de sistemas informatizados voltados à prestação de cuidados ao paciente.
Diante da necessidade de se conhecer a aplicação do processo de enfermagem, foi realizada uma pesquisa em centros de terapia intensiva na região metropolitana do Rio de Janeiro.
METODOLOGIA
Para a realização do estudo, foram realizadas entrevistas com enfermeiros líderes de equipe em 27 Centros de Terapia Intensiva na região metropolitana do Rio de Janeiro. A opção por realizar o estudo em Centros de Terapia Intensiva se deu pelo fato de que essas unidades exigem um controle maior das condições do paciente e documentação das atividades (KIMURA, 1994). Além disso, essas unidades, demandam uma metodologia sistematizada de trabalho, onde o processo de enfermagem pode ser útil. Entre os Centros de Terapia Intensiva selecionados, 17 pertenciam a instituições privadas e 10 a instituições públicas. Entre as unidades públicas, encontravam-se: três municipais, três estaduais e quatro federais. A pesquisa de campo foi realizada no período de janeiro a julho de 2003.
Em todos os 27 Centros, foi possível realizar uma entrevista semi-estruturada com perguntas abertas e duração de aproximadamente 10 minutos. As questões abordadas na entrevista se referiam a: utilização do processo de enfermagem, uso do diagnóstico de enfermagem, existência de formulários para a prescrição de um plano de cuidados de enfermagem e existência de um sistema de informação para registro do plano de cuidados. A entrevista foi realizada após o consentimento das instituições e dos entrevistados.
RESULTADOS
Todos os entrevistados afirmaram que não utilizavam o processo de enfermagem na íntegra e nem o diagnóstico de enfermagem. Dos 27 Centros investigados, 13 possuíam formulários para a prescrição de cuidados, sendo que apenas 11 cederam seus formulários para a pesquisa e os outros alegaram que seus formulários estavam em fase de reformulação.
Nos formulários obtidos, foram encontradas 135 ações de enfermagem que, reclassificadas, resultaram em 128 diferentes ações. Tais ações foram agrupadas em nove grupos de cuidados de enfermagem seguindo a classificação apresentada por Carpenito (1998). A Tabela 1 apresenta,para cada grupo de cuidados, número total de ações, o número de ações com baixa citação (< 4 Centos de Terapia Intensiva) e alta citação (> 7 Centros de Terapia Intensiva). A descrição das ações que compõem cada grupo de cuidado e o número de vezes que foram citadas pelas unidades encontram-se em anexo.
Tabela 1 – Freqüência de ações citadas nos formulários de prescrição de enfermagem. |
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Nessa tabela,observa-se que 74 ações, representando 57,8% do total das ações, não estavam presentes nos formulários da maioria dos Centros. Um exemplo dessa baixa citação é o Padrão eliminatório, no qual todas as ações foram citadas por menos de quatro unidades. Por outro lado sete ações, representando 5,5% do total, estavam presentes na maioria dos Centros.
Na análise dos formulários, foi possível observar que nenhum tipo de taxonomia foi utilizado para a descrição das ações, tendo em vista que houve a necessidade de reagrupar as 135 ações inicialmente encontradas. Também não havia um padrão para agrupar as ações, utilizando assim, diferentes padrões em cada formulário. O registro dos dados da enfermagem variava de acordo com o Centro de Terapia Intensiva, ou seja, em algumas unidades havia um formulário com a prescrição de enfermagem fechada. Nas demais unidades havia um formulário com um grupo mínimo de ações com espaço para preenchimento de outras ações.
Quanto ao uso de sistemas computacionais, apenas 4 unidades possuíam sistemas, porém, uma delas não o utilizava em sua plenitude.
DISCUSSÃO
O primeiro ponto a considerar é a baixa citação das ações pelas unidades, o que impossibilitou a obtenção de um conjunto mínimo de prescrição de cuidados de enfermagem, dado que apenas 5,5% das ações foram citadas pela maioria dos Centros. Tal fato é contraditório, uma vez que em Centros de Terapia Intensiva praticamente todos os doentes se encontram com algum tipo de sonda (vesical, naso-gástrica ou naso-entérica), os cuidados específicos do padrão eliminatório deveriam ter sido citados pela maioria dos hospitais. Isso demonstra que não houve um critério para inclusão dos dados na prescrição.
Outro aspecto a ser considerado é a inexistência de um padrão de classificação para as ações. Por essa razão, foi necessária uma reclassificação das ações para eliminar redundâncias e agrupá-los por grupos de cuidados. Existem algumas terminologias para a documentação do processo de enfermagem, dentre as quais destacamos: a North American Nursing Diagnosis Association (NANDA) para diagnósticos de enfermagem, a Nursing Interventions Classification (NIC) para o planejamento de enfermagem, a Omaha System, a Home Health Care Classification para a assistência domiciliar, Nursing Outcomes Classification (NOC) para os resultados dos cuidados de enfermagem e Classificação Internacional da Prática de Enfermagem (CIPE) (WARREN, 1998). Contudo nenhuma delas ou quaisquer outros vocabulários foram utilizados para estruturação dos formulários avaliados, mesmo sendo de vital importância à organização da informação quanto a assistência de enfermagem. Foi evidenciado que, em todas as unidades participantes, o processo de enfermagem não era implementado na íntegra, tendo em vista que a etapa de diagnóstico de enfermagem não era realizada em nenhum dos Centros de Terapia Intensiva. A ausência do diagnóstico de enfermagem, ou seja, da etapa de conclusão da análise de dados coletados, tem se mostrado freqüente e vem sendo apontada em alguns estudos (VAZ, 2002). Essa ausência pode ser atribuída à necessidade de tempo para a documentação dos cuidados aos pacientes (AMMENWERTH, 2001). Como, no Centro de Terapia Intensiva, a complexidade do paciente demanda tempo, o enfermeiro vive um conflito entre documentar e cuidar. Santos (2003) também descreve em seu estudo que os enfermeiros sentem-se inseguros quanto ao emprego do mesmo, pois apresentam dificuldades em sistematizar a assistência. Isso porque é recente o emprego de tal etapa do processo de enfermagem na assistência aos pacientes. É possível observar que o diagnóstico de enfermagem, por vezes, pode estar sendo identificado pelos enfermeiros sob a forma de problemas de enfermagem (CRUZ, 1990).
O emprego do processo de enfermagem perpassa questões de cunho cultural, acadêmico e até mesmo de crença na efetividade do emprego de tal metodologia. Isso porque o trabalho do enfermeiro é o cuidado e como nos Centros de Terapia Intensiva do Rio de Janeiro não existem indicadores de qualidade dos cuidados de enfermagem, não existem evidências sobre os resultados da prática de enfermagem para o paciente assistido (MARIN, 2003).
A sobrecarga de trabalho devido ao número reduzido de profissionais, o desconhecimento acerca do processo de enfermagem, bem como sua conseqüente desvalorização, além de outros problemas que interferem direta ou indiretamente na qualidade da assistência prestada ao cliente, são fatores que também influenciam no uso do processo de enfermagem (ARAÚJO, 1996).
Björvell (2003) descreve, em seu estudo sobre documentação de enfermagem em prontuário, que um dos argumentos para a não utilização do processo de enfermagem é que ele é um modelo baseado numa relação de um para um, ou seja, um paciente para um enfermeiro; porém, na realidade brasileira, isso não ocorre, o que efetivamente dificulta sua execução. Segundo a Lei nº 7.498/86, que regulamenta o exercício da profissão, a média de tempo de assistência de enfermagem em terapia intensiva é 3 vezes superior a uma enfermaria. Além disso a fórmula que calcula o tempo de enfermagem não leva em consideração as rotinas burocráticas, na qual incluímos a documentação (KURGANT, 1991).
Além de todos os fatores acima citados, alguns aspectos metodológicos têm contribuído para a não aplicação do processo de enfermagem, tais como: não existência de um vocabulário único (MARIN, 2001) e a ausência de taxonomias próprias para todas as etapas do processo, ocorrendo uma apropriação da linguagem médica (CRUZ, 1993). O exame físico é um exemplo clássico deste último problema, visto que as informações do exame físico são delineadas de acordo com o modelo médico, sem uma especificidade que facilite a tomada de decisão para os cuidados de enfermagem (FRIEDLANDER,1993).
A não utilização do processo de enfermagem é um fator que dificulta a implantação de um prontuário eletrônico nos centros de terapia intensiva (AMMENWERTH, 2001). Além disso, a falta de utilização de padrões para descrever as informações das diversas etapas do processo limita os potenciais benefícios da utilização de um prontuário eletrônico para o intercâmbio de informações ou a padronização de indicadores da qualidade da atenção
CONCLUSÃO
Diante deste quadro, conclui-se que as condições para a informatização do processo de enfermagem nos centros estudados não são adequadas. Isso porque o processo de enfermagem não é utilizado na íntegra, em função da ausência de: diagnóstico de enfermagem; padronização dos formulários de prescrição de enfermagem; mensuração dos resultados da assistência prestada.
REFERÊNCIAS
1. AMMENWERTH, E. et al. Nursing process documentation systems in clinical routine – prerequisites and experiences. International Journal of Medical Informatics, v. 64, n. 2-3, p.187-200, dez., 2001.
2. ANDERSON, J. G. Security of distributed eletronic patient record: a case-based approach to identifying policy issues. International Journal of Medical Informatics, v. 60, n. 2-1, p.111-118, nov. 2000.
3. ARAÚJO, I.E.M. et al. Sistematização da assistência de enfermagem em uma unidade de internação: desenvolvimento e implementação de roteiro direcionador – Relato de experiência. Acta Paulista de Enfermagem. v.9, n.1, jan-abr. 1996.
4. BJÖRVELL, C., WREDELING, R., THORELL-EKSTRAND, I. Prerequisites and consequences of nursing documentation in patient records as perceived by a group of Registred Nurses. Journal of Clinical Nursing. v12, p 206-214, 2003.
5. CARPENITO,L.J. Manual de diagnóstico de enfermagem. 6ª Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
6. CRUZ, I.C.F. Diagnósticos de Enfermagem: estratégia para sua formulação e validação. São Paulo, 1993. 157p. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
7. ____ Diagnósticos de Enfermagem e sua aplicação: revisão de literatura. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v24, n1, p 149-162, abril, 1990.
8. FRIEDLANDER, M.R. et al. Características específicas do exame físico realizado pelo enfermeiro. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v27, n1, p. 95-99, abril, 1993.
9. KIMURA, M. et al. O exame físico e o enfermeiro de UTI. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v.28, n.2, p. 156-70, ago., 1994.
10. KURGANT, P. et al. Administração em Enfermagem. São Paulo : EPU, 1991.
11. MARIN, H.F. Componentes do prontuário eletrônico do paciente. In: O prontuário eletrônico do paciente na assistência, informação e conhecimento médico., H. de F. Marin, São Paulo, 2003, p.73-83.
12. ____ O prontuário eletrônico do paciente. Revista Paulista de Enfermagem. V. 20, n.1, jan/abr 2001.
13. POTTER, P.A, PERRY, A.G. Grande tratado de enfermagem prática: clínica e prática hospitalar. 3.ed. São Paulo: Livraria Santos, 1998.
14. SANTOS, S.R., PAULA, A.F.A., LIMA, J.P. O enfermeiro e sua percepção sobre o sistema manual de registro no prontuário. Revista Latino-americana de Enfermagem, v.11, n.1., jan/fev, 2003.
15. VAZ, A. F. et al. Implementação do processo de enfermagem em uma unidade de radioterapia: elaboração de instrumento para registro. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v10, n3, p 288-97, maio/jun., 2002.
16. WARREN, J.J., COENEN, A. International Classification for Nursing Practice (ICNP): most-frequently asked questions. Journal of the American Informatics Association, v.5, n.1, jul-aug, 1998.
ANEXO
Em letras maiores são apresentados os grupos de ações e os totais de ações encontradas nos 11 formulários. Para cada grupo, são apresentadas suas respectivas ações e o número de formulários, dos Centros de Terapia Intensiva, que citaram cada uma dessas ações:
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Recebido:07/11/2003
Revisado: 20/11/2003
Aprovado: 08/12/2003