ARTIGOS ORIGINAIS

 

Como uma onda no ar: a música na humanização dos cuidados

Leila Bergold1 , Vera Sobral2

1Hospital Central do Exército
2Universidade Federal Fluminense


RESUMO
O texto fala da música, de seus usos e de suas possibilidades como estratégia importante na humanização do cuidado em saúde na internação hospitalar. Como forma de cuidado, a música estabelece uma delicada relação afetiva, eficaz e agradável, pois traz prazer tanto para quem toca e canta  como para quem a escuta. Como uma onda, a música propaga, estimula e socializa sentimentos e emoções  rompendo hierarquias e quebrando resistências.
Descritores: Cuidado sensível; música; humanização.



Este artigo é uma reflexão sobre a prática de uma das autoras que é enfermeira e musicoterapeuta com formação em terapia de família. Como profissional de saúde que sempre exerceu sua prática em hospitais, a preocupação maior desta profissional tem sido enxergar o cliente mais como sujeito com necessidades e desejos que seu diagnóstico, isto é, mais interessada em potencialidades e possibilidades do que em limitações. Às vezes, o olhar de musicoterapeuta influenciava a enfermeira, em outras, era a visão de enfermeira que suscitava reflexões no cotidiano da prática. Essa convergência de interesses evoluiu para um ponto em comum entre enfermagem e musicoterapia: a interface entre música e cuidados em saúde.

Entendemos que a música pode ser uma tecnologia inovadora do cuidar se for organizada de forma sistemática mas ao mesmo tempo criativa (TAVARES et al., 2002), pois facilita a conscientização de emoções, a comunicação interpessoal e a possibilidade de se focalizar aspectos saudáveis do cliente internado. É assim um importante instrumento na redução da angústia  causada pelo isolamento da internação e na promoção da saúde do cliente, da família e da própria equipe que presta os cuidados.

A música, como o cuidado, não deve ser vista como prerrogativa de uma determinada profissão, mas sim de qualquer profissional  da saúde que, no atendimento ao cliente, esteja preocupado em fazê-lo de forma respeitosa, com conhecimento científico e valorizando a construção de subjetividades inerentes ao afeto e à criatividade.

Devemos, no entanto, fazer uma distinção entre o uso da música como uma forma de cuidado e a musicoterapia. A música como cuidado é encontrada com o nome de  Música Terapêutica (BRUSCIA, 2000), onde é utilizada para dar conforto, para ajudar o manejo da dor, da ansiedade ou do stress. Não é necessariamente uma atividade que envolva o estabelecimento de uma relação terapeuta/cliente para atingir objetivos  que exigiriam o preparo específico de um musicoterapeuta, mas uma atividade que pode ser exercida por outros profissionais  interessados em proporcionar, além dos cuidados baseados no seu próprio conhecimento técnico específico, o acolhimento, o conforto e aconchego ao trazer para o cliente o cuidado em forma de música que lhe proporciona prazer  e segurança contribuindo para o equilíbrio de sua saúde. É a música pela música, pelo prazer de tocar, cantar, escutar ou, simplesmente, sentir o prazer de viver que ela nos traz.

É nesse contexto que entendemos a música e o seu uso como estratégia  importante na humanização dos cuidados durante a internação hospitalar. Nesta situação o cliente sente-se isolado e inseguro por estar num ambiente estranho causador de ruptura na sua rotina diária que ameaça os seus sentidos de forma plural: pessoas e espaços desconhecidos, cheiros estranhos, ruídos desagradáveis, iluminação invasiva, conversas técnicas e incompreensíveis, pessoas doentes, entre outros. A audição musical, além de deslocar os ruídos do foco da atenção, proporciona ao cliente uma sensação de familiaridade. Ele se reconhece no momento musical, percebe seus sentimentos e pode estender esse reconhecimento ao ambiente da internação, sentindo-o menos ameaçador.  Podemos perceber esse reconhecimento no sorriso, no olhar sonhador e nos relatos de pacientes, que sob o efeito da audição musical, “viajam” para outro tempo ou lugar e, se nos permitirmos, controlando o nosso próprio medo de nos envolvermos, nos levam junto partilhando conosco suas experiências, histórias, emoções e sentimentos.

Concordamos com REMEN (1998) quando diz que “a confiança no processo que provém do conhecimento e experiência pessoal é o verdadeiro alicerce da ajuda e conforto que damos uns aos outros. Sem ela, todas as nossas ações são guiadas pelo medo. O medo é o atrito em todos os processos de transição”.

COMO UMA ONDA: MÚSICA E SAÚDE
Como forma de cuidado a música é útil, eficaz e agradável pois traz prazer tanto para quem toca e/ou canta  como para quem a escuta. Como uma onda, a música estimula empatia promovendo sintonia entre os participantes no momento de sua execução tornando e permeável o compartilhamento de emoções, pensamentos e lembranças, desenvolvendo a interação e facilitando o relacionamento entre os atores sociais envolvidos no processo.

E por ser uma onda, a música tem grande penetração não podendo ser ignorada tão facilmente quanto outros estímulos, e assim facilita a auto-expressão pelo ato de cantar, batucar ou se movimentar com o ritmo. Facilita também a percepção e a validação de sentimentos ao criar identificação entre ela e o cliente, mas para isso, o profissional deve ter em mente que é importante descobrir a preferência musical do cliente. Um dos cuidados a se observar é manter uma atitude respeitosa em relação ao gosto musical do cliente (inclusive se ele quer ou não  escutar música), pois só assim ocorrerá a validação dos seus sentimentos e a sensação de estar sendo acolhido. Vale lembrar BRUSCIA (2000): “quando os clientes ouvem música, ocorre uma forma diferente de validação.

Algumas vezes, a forma como o cliente se sente é validade pelo que a música está expressando, quase como se a música dissesse:“É, essa é a forma como você está se sentindo”. Algumas vezes a música valida por tranqüilizar e oferecer apoio. Ela cria e mantém um ambiente envolvente que nos faz sentir em segurança”.

Ao escutarmos música nosso corpo vibra, as emoções surgem e os pensamentos trazem o passado para o presente nos conectando com o mundo. O cliente pode ter experiências de prazer, saúde e vida ao escutar música ou cantar, experimentando uma sensação de tranqüilidade e segurança. “A música, como atividade vibratória organizada, afeta o corpo de duas maneiras: objetivamente, como efeito do som sobre as células e os órgãos; e subjetivamente, agindo sobre as emoções, que por sua vez, influenciam numerosos processos corporais. Temos aí um modelo de retroalimentação, onde o organismo influi nas emoções e as emoções influem no organismo. Estudos comprovam que a atividade muscular, a respiração, a pressão sanguínea, a pulsação cardíaca, o humor e o metabolismo, são afetados pela música e pelo som” (MILLECCO FILHO, BRANDÃO & MILLECCO, 2001). Por diversas vezes recebemos depoimentos de pessoas que sentiram redução de dores, regularização da respiração e bem estar geral, após terem ouvido músicas que as tocaram.

A música é um poderoso estimulante para a imaginação. Podemos “viajar” por situações e lugares agradáveis embalados por ela, assim como podemos reviver emoções e evocar lembranças quando escutamos músicas que estão ligadas à nossa história pessoal e familiar. Ambos os processos podem sugerir situações ligadas a aspectos saudáveis e a possibilidades diferentes mudando o foco da doença para a saúde. Podem fazer o cliente refletir que a doença é somente uma circunstância, um aspecto ou um momento, e não é suficiente para impedi-lo de sentir prazer.

O uso de uma atividade musical no período da internação leva ao relaxamento físico e mental por  reduzir o stress, a tensão e a ansiedade. Estimula também o cliente a despertar a atenção, a estabelecer contato com a realidade ou com o ambiente, a aumentar o nível de energia, a evocar atividade sensório motora, a aumentar as percepções sensoriais e a elevar o humor. Tanto o relaxamento como a estimulação produzem uma melhoria do estado de saúde de duas formas: preventiva - ao reduzir riscos ou aumentar a resistência contra problemas de saúde; e paliativa - ao melhorar a qualidade de vida de quem enfrenta uma condição de doença.

CUIDADO E CONFORTO
Há algumas palavras que podemos relacionar ao cuidado: atenção, consideração, reflexão, observação, escutar, ouvir, ser todo ouvidos. E há palavras que podemos ligar ao descuido: indiferença, desatenção, displicência, fazer-se de surdo. É interessante como o escutar está ligado ao sentido de cuidado e o não escutar está ligado a um “ Des-cuidado ” (SALLES et al.,  2000). A prática de cuidar não envolve somente o tocar com as mãos, mas também com o cheiro, o olhar e o som (FIGUEIREDO et al., 1998) que podem ser agradáveis ou desagradáveis como qualquer toque.

Agradável, quando o que se escuta são palavras de conforto ou música que o remeta a momentos de prazer. Desagradável, quando se restringe a palavras ásperas, indiferentes, ou a ruídos irritantes que vão desde conversas em voz alta até a música ambiente ininterrupta.

O conforto é um cuidado afetivo que permite ao cliente entrar em harmonia consigo, com os outros  e com o ambiente. Por isso a importância de se manter o ambiente confortável, com redução de ruídos (podemos incluir aí a música de fundo) e a utilização consciente e planejada da música. “Ruído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir”. “A música de fundo foi inventada para homens sem ouvidos” (SCHAFER, 1991).

O cliente deve ser a principal prioridade, e não a música, por isso devemos tomar certos cuidados ao colocarmos música ambiente em unidades de internação. Esta pode não fazer parte do universo sonoro  dos clientes e acaba funcionando como mais um fator de stress, mais um “ruído” entre tantos outros contra os quais não há defesa, justamente pela grande penetração dos estímulos auditivos.

Muitas vezes não notamos como o nosso ambiente de trabalho é barulhento. Nos acostumamos a isso por ser o local onde exercemos o nosso labor e não o nosso lazer ou descanso. Para as pessoas internadas, o excesso de ruídos pode ser um verdadeiro suplício, mesmo uma iatrogenia. É comum ouvirmos queixas sobre a dificuldade de dormir à noite por razões plurais: interrupções para remédios, luzes, barulhos de passos, ruídos estranhos e conversas ou risos. Talvez essa necessidade em se manter o barulho esteja ligada, não somente a um comportamento “des-cuidado”, mas a uma necessidade de afastar o silêncio e o medo. “O homem teme a ausência de som como teme a ausência de vida... O último silêncio é a morte”(SCHAFER, 1991).

Com sua vibração o som preenche o silêncio afastando a morte. Mas o que é som para uns pode ser ruído para outros. Testes científicos revelam que até mesmo breves períodos de conversa em voz alta são suficientes para afetar o sistema nervoso, e assim provocar constrições em grande parte do sistema circulatório. Portanto, escolher o som que nos cerca é escolher a maneira de cuidar: ruído ou sons agradáveis, qualquer música de fundo ou música escolhida com respeito ao gosto musical dos clientes. Decidir com quais sons vamos preencher nosso ambiente de trabalho é escolher entre ser cuidadoso ou realizar um “des-cuidado”.

Para Boff (1999), “o grande desafio para o ser humano é combinar trabalho com cuidado. Eles não se opõem, mas se compõem. Limitam-se mutuamente e ao mesmo tempo se complementam. Juntos, constituem a integralidade da experiência humana, por um lado, ligada à materialidade e, por outro, à espiritualidade. O equívoco consiste em opor uma dimensão à outra e não vê-las como modos-de-ser do único e mesmo ser humano” .

Muitas vezes ficamos mais preocupados com aspectos técnicos e organizacionais do que com o cuidado em si. Preocupados em sermos eficientes, nos esquecemos de ser humanos. Empenhados em alcançar objetivos, deixamos de lado aspectos criativos e afetivos que envolvem o processo de cuidar. Embotados pela repetição e cansaço não temos coragem  de ousar, experimentar e crescer. De acordo com a visão de um profissional mais preocupado com o trabalho do que com o cuidado, a música pode ser uma ameaça à organização em vez de  uma ajuda no desenvolvimento da assistência.

Um outro aspecto importante da utilização da música como cuidado é a possibilidade que o cliente tem de participar deste cuidado, não só pela aceitação ou não deste, mas através da escolha da música, do cantar ou cantarolar e batucar junto, e se sentir vontade, até de se movimentar ao som desta. Essa possibilidade do agir simultâneo, que é característica na utilização da música, leva a quem cuida e a quem é cuidado a um momento de intimidade e interação importantes para ambos.  Nesse sentido a música oferece os elementos de conforto encontrados em diversos estudos: liberdade, integração, melhora, cuidado afetuoso, segurança/proteção e comodidade (ARRUDA & NUNES, 1998).

O ato de confortar tem valor para quem cuida e é cuidado e, oferece a ambos oportunidade de crescimento e realização (WALDOW, 2001) mas, para isso, é necessário que ambos participem de forma consciente deste ato. O consentimento do paciente à atividade musical é tão importante como o constante questionamento do profissional de enfermagem quanto ao seu papel como cuidador e a sua forma de ver o cliente. A conscientização de ambos deste processo pode promover novas percepções do ser/estar cuidador ou cuidado que permitirá o desenvolvimento mútuo em direção  a uma condição mais saudável e integrada. (BERGOLD, 2000).

MÚSICA COMO AUTOCUIDADO
Em nossa experiência com o uso da música no contato com o cliente, pudemos sentir como faz bem a nós mesmos esse cuidado. È comum nos sentirmos gratificados e mais relaxados após o contato musical pois o mesmo promove uma troca entre os participantes, seja por tocar, cantar ou escolher a música, ou simplesmente, ouvir e apreciar.

A forma como nos relacionamos com o mundo interfere na forma como cuidamos. Se estivermos bem, temos espaço interno para acolher e cuidar (SALLES et al., 2000). Por isso, é importante refletir sobre a necessidade de autocuidado da equipe de saúde devido às condições inadequadas de trabalho. O autocuidado inclui conforto, relaxamento e prazer de partilhar entre a equipe e o cliente.

Não se pode esquecer que todas as características da música que aumentam o conforto do paciente também produzem efeitos benéficos na equipe  presente no momento da execução musical, seja tocando ou ouvindo. Nesse sentido a música funciona como uma forma de autocuidado que pode auxiliar na prevenção do stress da própria equipe.

“Uma das razões por que muitos médicos se sentem exauridos pelo trabalho é não saberem como criar uma abertura para receber alguma coisa de seus pacientes. Do modo como fomos treinados, receber é considerado não-profissional. Do modo como a maioria de nós foi criada, receber é considerado uma fraqueza”. (REMEN, R., 1998)

O cuidado deve dar prazer a quem toca e a quem é tocado, seja com gestos, palavras ou sons. Tocar para sensibilizar é um cuidado que toca a interioridade dos sujeitos – cliente e enfermeira (o) – toca suas emoções e imaginações, suas inteligências (FIGUEIREDO et al., 1998).

Importa ressaltar que  “...o cuidado de si é imprescindível para o cuidado do outro e do seu meio...  é dimensão integrante do cuidado do outro, pois aquele que cuida de si se sente comprometido com a vida como um todo” (SILVA, 2000). Assim, em uma visão sistêmica, tiramos o foco somente do cliente e o ampliamos para o cuidador, para o ambiente onde ocorre o cuidado e para a relação estabelecida entre eles.

 

CONCLUSÃO

Ainda pouco explorada no processo de  cuidar em enfermagem, a música traz possibilidades plurais de usos com vantagens de interação e participação que ultrapassam a relação mais objetiva e primeira – enfermeiro e cliente.

Como uma onda, o uso da música vai contagiando até onde o seu som alcança, humanizando e democratizando os espaços frios do hospital. Ao ouvi-la, os sujeitos ficam envolvidos pela emoção rompendo com as hierarquias sociais e profissionais, quebrando resistências e sentimentos do presente e do passado. Ela mexe com o nosso corpo, nossa cabeça, nossa imaginação.

Terapeuticamente, a música no cuidado constrói uma relação delicada, afetiva e saudável.


REFERÊNCIAS

1. ARRUDA, E. & NUNES, A. Conforto em enfermagem: uma análise teórico-conceitual. Texto Contexto. v.7, n.2, p.93-110, mai/ago 1998.

2. BERGOLD, L. A co-evolução do sistema terapêutico: uma abordagem sistêmico-construtivista da Musicoterapia. Nova Perspectiva Sistêmica., n.17, pág.47-59, agosto 2000.

3. BOFF, L. Saber cuidar – Ética do humano, Compaixão pela Terra. Petrópolis. Vozes, 1999. 199p.

4. BRUSCIA, K.  Definindo Musicoterapia. Rio de Janeiro. Enelivros, 2000.  312p.

5. FIGUEIREDO, N. et al.  A Dama de Branco transcendendo para a Vida/Morte através do Toque. In: MEYER, D., WALDOW, V.,LOPES, M. (orgs.)  Marcas da  diversidade: saberes e fazeres da enfermagem contemporânea. Porto Alegre. Artmed, 1998. p.137-169

6. MILLECO FILHO,L., BRANDÃO, M. & MILLECO,R. É preciso cantar – Musicoterapia,Canto e canções. Rio de Janeiro. Enelivros, 2001.  120p.

7. REMEN, R.  Histórias que curam. São Paulo. Agora, 1998.  277p.

8. SALLES, R. et al. Um encontro pelo afeto: Sensibilizando a formação do cuidador. Apresentado no Congresso Brasileiro de Enfermagem, Recife, 2000 e no  Congresso D’ALASS, Lyon – França, setembro 2001.

9. SCHAFER, M.  O ouvido pensante. São Paulo. Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. 399p.

10. SILVA, A.  A Dimensão Humana do Cuidado em Enfermagem. In: Acta Paul Enf.,  v.13,  Número   Especial , Parte 1, 2000.

11. TAVARES, C. et al. Atividades Terapêuticas como tecnologias de cuidar em saúde mental. Online Brazilian Journal of Nursing, v.1, n.2, 2002. Disponível em: www.uff.br/nepae/objn102tavaresetal.htm

12. WALDOW, V.  O cuidar humano: reflexões sobre o processo de enfermagem versus processo de cuidar. R. Enferm. UERJ, Rio de Janeiro, v.9, n.3,  p.284-293  set/dez 2001.

 


Received: November 5th, 2003
Revised: November 5th, 2003
Accepted: November 20th, 2003