ARTIGOS ORIGINAIS

 

O cuidar sociopoético com os sujeitos de pesquisa - na memória fica o que significa  


Vera Sobral2 , Fátima Silveira1, Claudia Tavares 2 , Iraci dos Santos2,  Ademilda Garcia1

1Universidade Estadual da Paraíba
2Universidade Federal Fluminense

 


RESUMO
É possível acolher os sujeitos da pesquisa durante a própria pesquisa? Defendemos que a memória tem uma dimensão política consubstanciada na possibilidade de dar voz às pessoas que viveram o cotidiano dos fatos e acontecimentos possibilitando soldar o coletivo. Portanto, discutimos a visibilidade da memória coletiva do grupo pesquisador como estratégia do cuidar em pesquisa, através do mural da memória. A  sociopoética foi desenvolvida com enfermeiras da Paraíba, em 2000. Os resultados mostram a pertinência do método  facilitando o cuidar em pesquisa, no mural da memória como resposta  do incentivo á auto- estima das enfermeiras e no entendimento da construção coletiva do conhecimento. Concluiu-se que  as oficinas de sensibilidade, criatividade e expressividade são dispositivos que  proporcionam o acolhimento e  a livre  expressão do grupo quanto à: percepções, sentimentos, experiências, encontro com colegas, desafios propostos e  necessidade de reproduzir o vivido no cotidiano.
Descritores: Cuidar em pesquisa; Sociopoética; Memória coletiva.  



INTRODUÇÃO

Descrevemos a “estória” da implementação de  oficinas de sensibilidade, criatividade e expressividade  como técnica de pesquisa, desenvolvida para participantes de Curso de Extensão, mostrando sua performance na  construção da identidade de um grupo pesquisador. Nos  alicerçamos na  crença teórica: O conceito de memória tem uma dimensão política consubstanciada na possibilidade de dar voz às pessoas que viveram o cotidiano dos fatos e  acontecimentos possibilitando soldar o coletivo construindo a memória do grupo. Assim, partindo do desconforto ético provocado pelos usos unilaterais com os sujeitos de pesquisa, questionamos:- Que contribuição recebe um sujeito de pesquisa? É possível cuidar dos  sujeitos das nossas pesquisas?

Experiências em discutir temas, trabalhar situações com grupos e/ou produzir conhecimento demonstram que o método do grupo pesquisador tornou-se uma pedagogia democrática de múltiplos usos e finalidades, inclusive, o  cuidar dos sujeitos da pesquisa através da construção e visibilidade da memória coletiva. Este método é a alma da abordagem sociopoética construída nos últimos oito anos, em  enfermagem e educação por Gauthier; Santos, 1994, 95, 96, 98. 99, ao idealizarem o pesquisar como exercício coletivo e democrático que promove o encontro da arte com a ciência.  Eles acreditam que a liberdade é premissa de vida, a cultura é o dote plural a ser preservado e socializado prospectivamente e que o sonho é para ser sonhado e perseguido. A sociopoética com seu tropismo por práticas sociais e profissionais nos ensina a pesquisar coletivamente buscando entender o cotidiano das relações e que ao compartilhar a pesquisa com os sujeitos desta, construímos coletivamente o conhecimento.

Segundo Gauthier,1999, o grupo pesquisador pratica uma elaboração cooperativa “com a participação ativa e dialógica de todos os participantes da pesquisa, co-pesquisadores, a crítica, não apenas do concebido, mas também do percebido e do vivido – o que não se pode fazer sem mobilizar afetos”. É o grupo pesquisador quem atribui significados aos dados que ele mesmo produziu (Santos et al., 2002). Na sociopoética consideramos o grupo pesquisador como um coletivo inteligente (Pierre,1999) que expressa sem perceber uma filosofia complexa, que tem memória e faz história.

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual e coletiva. Memória é a própria preservação da identidade coletiva e, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de poder. Toda memória é, num momento subseqüente, história. Sua temporalidade rompe com o tempo linear para alcançar o tempo social - a lembrança é a recordação do vivido. É também um tempo revivido que tem seu momento fundamental na consciência do singular. Não é um fenômeno que se esgota no indivíduo ou que tem lugar no vazio social. A lembrança surge num contexto preciso, na relativa estabilidade de uma situação que desenvolve a vida do sujeito. A memória é seletiva, opera com o passado olhando para o futuro, dota a sociedade (incluindo aqui os grupos sociais) de coesão, conferindo-lhe sentido e deve ter visibilidade pública - os "lugares de memória" (Le Goff, 1998).

A memória é vida, sempre experimentada por grupos vivos, evolui permanentemente, aberta à lembrança e à amnésia, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável ás utilizações e manipulações, suscetível a longas latências e a revitalizações repentinas. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido com o presente eterno. É afetiva e mágica e se acomoda por detalhes que a confortam; nutre-se de lembranças fluidas, que se interpenetram, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas.  A memória é sensível ás transferências, filtros, censuras ou projeções.

Instala a lembrança no sagrado e surge de um coletivo que ela mesma solda, significando o haver tantas memórias quanto grupos; o ser, por natureza múltipla e multiplicada, coletiva, plural e individualizada. Ela se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto e, por isso, a memória é absoluta, enquanto a história é relativa (Le Goff, 1998). Portanto, nosso objetivo neste trabalho é discutir a visibilidade da memória coletiva do grupo pesquisador como uma estratégia do cuidar em pesquisa.


METODOLOGIA

Para a produção dos dados utilizou-se a sociopoética, o método do grupo pesquisador e a técnica de oficinas de sensibilidade, em seus conceitos de atitude de pesquisar, educar e cuidar,  abertura ao inesperado, amplo caminho para se realizar o sonho da construção coletiva do conhecimento (Gauthier, 1999).  A investigação se insere na crença de que os saberes populares atuam na prática do cotidiano, sendo a própria prática que gera os sujeitos e os objetos de saber, e constrói a realidade (Santos; Gauthier, 1999). Foram sujeitos, 13 enfermeiras entre as quais, três facilitadoras de pesquisa ( pesquisadoras oficiais), que prestam assistência a mulheres em Campina Grande -Pb, em abril de 2000. Atendendo á Resolução 196/96, o grupo pesquisador foi convidado e aceitou espontaneamente participar das atividades da oficina que foi planejada e desenvolvida com estratégia de Curso de Extensão com 20 h,  num ambiente de acolhimento e prazer (Silveira; Sobral, 2000 e Santos, 2003 ).

Foram variáveis do estudo: acondicionamento do campo de pesquisa com a disposição de  colchonetes cobertos, ventiladores, flores, alimentos (frutas, doces, salgados) e bebidas (água, chá, sucos, café) para degustação coletiva; música ambiental apropriada ás dinâmicas de apresentação do grupo e de relaxamento e intervalos; ressalte-se que os relaxamentos na sociopoética  conduzem á integração dos participantes através do aconchego e acolhimento de si e  facilita a evocação de imagens subconscientes (Gauthier, 1999). Para produção da memória utilizou-se o diário de campo e a fotografia que subsidiaram a construção do mural da memória.  Aqui analisaremos  a produção escrita desde a performance do grupo pesquisador  e a interpretaremos a luz do pensamento de (Ricouer,1988), buscando a transversalidade contida nas relações entre memória coletiva e relato poético na configuração da identidade coletiva.


RESULTADOS

A história  alerta para nossa necessidade de reconstruir o passado, buscar nossa própria constituição, reencontrar origens, perceber a criação dos mitos como uma particular condensação da identidade, daí porque os celebramos com festas e discursos. Nesta pesquisa a possibilidade de celebração como forma de acolhida e cuidado foi a criação do mural da memória, dispositivo que funcionou como espaço marcante no ambiente do grupo pesquisador, onde ficaram registrados discurso, fotos ou  fragmentos do composto e construído pelo grupo num momento/dia anterior os quais foram por nós  recolhidos. A palavra é material privilegiado da comunicação, porque tem a capacidade de transformar o mundo em algo interessante e ao poder expressá-lo também é o limite do mundo. A palavra produz efeitos, particularmente,  subjetivos, o que desemboca na idéia de ação e transforma a linguagem, que é pública, em representação. Da produção do grupo descrevemos as categorias temáticas: No pesquisar um lugar de encontro, Tempo útil para um cuidado sensível e Criando coletivamente.

 No pesquisar, um LUGAR DE ENCONTRO 
“Pesquisar... um momento de se encontrar... Colegas! Há quanto  tempo... um  medo de aqui entrar...  Medo passado  ao sentir que somos apenas...Mulheres cuidando de mulheres”.

A compreensão da oficina/Curso como um lugar de encontro onde todas são iguais dá ao grupo a dimensão da acolhida. São singularidades e gestos nos quais se concretiza a negociação da parceira da pesquisa, sujeito de um espaço privilegiado onde o pensamento da subjetivação se faz presente. Ao usar a palavra percebe-se seu significado, pois  o uso cauciona o sentido da linguagem; ela é performática, capaz de alterar coisas ou estado de coisas. Podem existir outros mundos  não  traduzidos pela linguagem, porém eles são desinteressantes e triviais. Linguagem é ação e tem força performativa. Sua força está no contexto no qual é dito. A palavra como lugar de memória traz a marca de identidade de um grupo social. Ela é um lugar de memória. Há sob ela um sistema de instituições que a legitima através do uso que faz da técnica, da disciplina, do registro e do ensino e que tem na Universidade pois, aí  a palavra se faz ciência e objeto de saber.

 

TEMPO ÚTIL PARA UM CUIDADO SENSÍVEL
“Um viver dos pacientes que não entendemos...premidos pelo tempo de tudo entender ao mesmo tempo...Nos entender e ao cliente... precisa um tempo...Que nunca temos?.... Tempo de prazer de se atrasar ao menos....15 minutos dos quais.... precisamos de tempo.... minutos de auto-reflexão, de devaneio...Talvez para melhor pensar e intuir  uma forma.....um meio... um como fazer  para do cliente cuidar”. Grupo pesquisador.

A naturalização que determinados procedimentos disciplinares temporais assumiram na sociedade atual está presente em relação à valorização do tempo útil, da produção, do futuro como horizonte de expectativa do progresso linear e cumulativo.  Aliada a tais representações, muitos sujeitos de pesquisas convivem com poucas oportunidades de reflexões para a compreensão histórica de sua realidade. A pesquisa pode superar a subjugação normativa temporal, através da busca coletiva, do tempo da experiência, do tempo subjetivo, vivo e criativo, superando as restrições e tornando o espaço da pesquisa naquele que se coloca para um tempo de troca.

O mural da memória costura essa possibilidade dando vida ao que está sendo vivido em grupo, por cada um de nós. Ele revitaliza a performance do “inda agora” permitindo ao grupo re-ver o dito e o não-dito presente na memória visível facilitando a integração e possibilitando a polêmica desencadeada por compreensões/visões de mundo diferentes: o que foi dito/vivido “inda agora” (ou ontem) reaparece no mural e pode ajudar a instruir a dinâmica do dia. E ainda o mural da memória como via de mão dupla onde o grupo pesquisador traz mensagens onde expressa o significado daquela atividade para seus membros. O encontro de acolhimento e cuidado despertou a sensibilidade para se CRIAR COLETIVAMENTE:

“Criando e escrevendo a muitas mãos, neste tempo presente...Sentindo o cheiro de flores...aqui ficando, ... bebendo suco de frutas e flores... coletivamente criando... acolhida de outras possibilidades de compreender a vida... Uma experiência que só pode ser vivida  com sensibilidade, imaginação criativa, cuidando de gente, cuidando para a vida”

O estudo sociopoético revela histórias impregnadas de cultura, religiosidade, sexualidade, sentimentos e formas/estratégias de se interagir/agir com o mundo. Histórias que revelam o nosso passado e que compõem, como uma colcha de retalhos, o nosso presente. Histórias de vidas e de relações. Histórias singulares de injustiças e sofrimentos, mas também de desejos e de busca de felicidade.

Histórias de um povo solidário, de enfermeiras que cuidam, mas também querem ser cuidadas. Histórias da nossa identidade cultural. Para nós, mulheres brasileiras, trabalhadoras, filhas, mães, amantes - e apaixonadas pela vida - esse olhar sócio-poético é fundamental. Porque permite reescrever papéis femininos numa linguagem distante do preconceito e do estereótipo, pegando a trilha da singularidade onde a igualdade faz parceria com aquilo que é diferente conforme se expressou o grupo pesquisador:  “O que hoje apreendi aqui quero recriar ali”.

Feita de lembrança e esquecimento a memória é afetiva e comporta perfumes, cores, sons, sabores, luzes, lugares, paisagens, pessoas, movimentos...Quando evocada por uma experiência sensível e criativa numa proposta plural e compartilhada ela flui e se fixa afetivamente naquilo que tem significado para o grupo. E parece ter gosto de “quero mais...”


CONCLUSÃO

A repercussão do trabalho no grupo superou as expectativas mais otimistas.
O mural da memória é impactante porque primeiro traz a surpresa e depois cria a expectativa no grupo sobre o que virá amanhã?
Os sujeitos da pesquisa sentem-se acolhidos e estimulados a participar de forma mais  profícua e produtiva da pesquisa.   

No mural da memória  o grupo se vê refletido, se sente agraciado quando encontra sua foto e/ou suas palavras, se diverte com o que vê/lê e cada membro vai percebendo, a identidade coletiva que ele vai ajudando a formar. Ele é uma resposta do trabalho realizado  e da alta auto - estima grupal, ajudando na compreensão da construção coletiva do conhecimento. Junto com as oficinas de sensibilidade, criatividade e expressividade ele é um dispositivo de acolhimento e cuidado sensível em pesquisa, como quer Santos et al.(2003), e  que também proporcionou a oportunidade do grupo expressar-se livremente como percebia/sentia a experiência compartilhada. O mural da memória explicita a frase de LeGoff, (1998) quando diz que na memória fica o que significa.

 

REFERÊNCIAS

1. Gauthier, Jacques. Uma pesquisa sociopoética: o índio, o negro e o branco no imaginário de pesquisadores da área da educação. Florianópolis, UFSC/NUP/CED, 2001. 120p.

2. Gauthier, Jacques; Iraci dos. A Sócio – Poética: fundamentos teóricos, técnicas diferenciadas de pesquisa, vivências. Rio de Janeiro: Departamento de Extensão, UERJ, 1996.

3. LeGoff, J. A história nova. S.P.: Martins Fontes, 1998, 216p..

4. Levy, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. S.P.:Loyola, 1998.

5. Riccouer, P. O discurso da ação. Lisboa: Edições 70, 1988.

6. SANTOS, I. dos; FIGUEIREDO, N.; SOBRAL, V.; TAVARES, C. Caring: building na new history of sensibility.Online Brazilian Journal of Nursing (OBJN-ISSN 1676-4285), v.1, n.3, 2002 [ Online ]. Available from:www.uff.br/nepae/objn103santosietal.htm.

7. Santos, Iraci dos e Gauthier, Jacques. Enfermagem: análise institucional e sociopoética. Rio de Janeiro: EEAN/UFJRJ, 1999. 210p.

8. Silveira FA, Sobral VRS, Gualda D. The Dance of Discoveries. Available from: www.ualberta.ca/~ijqm, agosto, 2002.

 


Recebido:   19/05/2003
Aprovado:20/07/2003