ARTIGOS ORIGINAIS

 

Do mundo-do-mais-ou-menos ao universo da precisão: refletindo o cuidar em enfermagem na ótica heideggeriana


Sonia Mara Faria Simões1

1Universidade Federal Fluminense

 


RESUMO
Introdução:
A pesquisa de natureza descritiva teve como objetivos descrever a influência do pensamento científico na fragmentação do cuidar em saúde e refletir o cuidar holístico em enfermagem na ótica heideggeriana. 

Desenvolvimento: O homem sempre teve como característica questionar a origem do universo. Buscou explicar estas questões através do pensamento mitológico e posteriormente pelo pensamento científico-tecnológico. Com isso no séc. XV surge à ciência que vai se impondo ao mundo pela sua certeza, evidência e universalidade, favorecendo a generalização e fragmentação do cuidar em saúde. Por não atender a complexidade dos fenômenos humanos  surgem atualmente, novas visões de ciência e de mundo. Como a tendência atual da enfermagem é de reconsiderar o homem de modo holístico, acredito que o cuidar/cura na ótica heideggeriana promove um agir profissional diferenciado, pois se caracteriza em ajudar o cliente a tornar-se transparente para si mesmo e livre para um ex-sistir em possibilidades.
Conclusões: Retomando o cuidar  como uma prática holística, o enfermeiro poderá contribuir para a qualidade de vida da população, para o exercício da cidadania e nos faremos enquanto profissionais de enfermagem, pre-sentes na sociedade.
Descritores: Holismo, Saúde, Enfermagem.



DO MUNDO-DO-MAIS-OU-MENOS AO UNIVERSO-DA-PRECISÃO
O homem sempre teve como característica própria questionar o mundo, as coisas, a natureza. Buscar explicações sobre a origem do universo, da terra e da vida, levou-o a descobrir facetas do mundo em que vive e perceber o caráter fenomênico da natureza. São questões filosóficas  feitas por todas as pessoas em todas as épocas e que se espalharam pelo mundo ao longo de milênios sob a forma diversificada de explicações mitológicas.

Segundo Gaarder (1996, p.35-39), foram os filosófos gregos, por volta dos 600 anos a.C., que tentaram provar que as tais explicações não eram confiáveis, porque os deuses representados, tinham muita semelhante com os homens. Os mitos poderiam ser apenas frutos da imaginação do homem.

Portanto, o objetivo dos primeiros filósofos, chamados filósofos da natureza, (Gaarder, 1996,p.40) era o de encontrar “explicações naturais”para os processos da natureza evoluindo então, de um pensar mitológico para um pensamento construído sobre a experiência e a razão, através da observação da natureza. Com isso, deram os primeiros passos na direção de uma forma científica de pensar.

Com a ciência médica fundada por Hipócrates (em torno de 460 anos), surgiam explicações naturais para a saúde e a doença. Para ele, a saúde seria o estado natural do homem e a doença, um desequilíbrio corporal anímico, e assim, o caminho para a saúde do homem estão na moderação, na harmonia e na “mente sã em corpo são”.  Gaarder (1996, p.68) refere que naquele tempo, existia no cuidar da saúde uma visão holística.

Por volta dos 450 a.C. o centro de interesses se desloca da natureza para o homem e para sua posição na sociedade. O homem passa a desenvolver uma tecnologia prática que lhe permite ter à mão, utensílios, ou seja, algo que prolonga e reforça a ação dos nossos membros e de nossos órgãos dos sentidos. Como cita Koyré (1997, p.280), no mundo do mais-ou-menos, a vida cotidiana permitia um desfrutar do tempo vivido.

Porém, as necessidades do homem mudaram e como refere Koyré (1997, p.280), buscaram a partir de Galileu, alcançar aquilo que não é alcançado por nossos sentidos para ver o que ninguém via. Esta necessidade puramente teórica levou Galileu a construir seus instrumentos, o telescópio e depois o microscópio.

Isto produziu resultados decisivos para o nascimento da técnica moderna, da técnica da precisão, pois para fazer os aparelhos óticos, é necessário não apenas melhorar a qualidade dos vidros que neles se emprega e determinar (medir, calcular) seus ângulos de refração, mas é preciso ainda melhorar o seu corte, ou seja, dar-lhes uma forma precisa, uma forma geométrica exatamente definida.

Para fazer isso, é necessário construir máquinas cada vez mais precisas, máquinas matemáticas que, tanto quanto os próprios instrumentos, pressuponham a substituição no espírito de seus inventores, do universo do-mais-ou-menos pelo universo da precisão. (Koyré, 1997, p. 280).

Neste sentido, os utensílios que tinham uso prático, se transformam em instrumentos, em uma criação do pensamento científico e contribui para a realização consciente de uma teoria. Assim, o homem vai teorizando, inventando e construindo ele mesmo, os aparelhos, os dispositivos imaginados e com isso, solidificam o pensamento tecnológico, segundo Koyré (1997, p.287).


A GENERALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO   DA SAÚDE
Surge uma nova concepção de natureza construída pela nova ciência do séc. XV até nossos dias, que Casini (1995, p.77) afirma ser uma imagem finalmente metodológica, objetiva e científica, que vai se impondo pela sua certeza, evidência, universalidade e necessidade, à uma comunidade sempre crescente de investigadores. Esta precisão aplicada à natureza estende-se segundo Capra (1997, p. 56) também à natureza humana, que é concebida como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas. Desperta cada vez mais interesse pela observação comprovada, pelo conhecer a exterioridade dos corpos e o reducionismo acaba se impondo.

No início do séc. XVIII, a física torna-se a base de todo as as ciências, a precisão se afirma sobre a fisiologia, a química, a geologia, a medicina e mesmo as ciências humanas, como a psicologia, a gnoseologia e a política estão destinadas a reorganização. Para Casini (1995, p.103), foi um fenômeno ideológico e cultural de vastas dimensões, pois a inteligibilidade do mundo, a cientificidade das ciências é dada pela possibilidade de  comprovação, pela utilização do método científico.

A influência do paradigma cartesiano sobre o pensamento médico, segundo Capra (1997, p.116), resultou no chamado modelo biomédico, no qual o corpo é considerado uma máquina, a doença é vista como mau funcionamento dos mecanismos biológicos e o papel do médico é intervir, física ou quimicamente para consertar o defeito no funcionamento de um especifico mecanismo enguiçado.

O desenvolvimento técnico-científico na área da saúde, contribui cada vez mais para especialidades, para uma visão em partes cada vez menores do corpo, perdendo assim de vista, o cliente como ser humano em sua totalidade e singularidade e gerando um cuidar fragmentado.

Como afirma Capra (1997, p.116-117), a saúde não pode ser vista em termos reducionistas, pois envolve uma complexidade de aspectos físicos, psicológicos, sociais, ambientais da condição humana. Ainda considera que a saúde tem significados diferentes conforme a época, são construções culturais e que necessitam de uma nova visão, mais abrangente, que revele a natureza holística da saúde, como a da OMS: “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou enfermidades”.

O cuidar da saúde das pessoas, foi ao longo dos tempos praticado por curandeiros populares, guiados pela sabedoria tradicional, que concebia a doença como um distúrbio da pessoa como um todo, corpo e mente, ambiente físico e social, sua relação com o cosmo e as divindades, (Capra, 1997, p.117).

Hoje, os profissionais da saúde, demonstram em suas atividades, a influência da visão mecanicista no ato de cuidar dos clientes, concentrando suas atenções na máquina corporal e passando a negligenciar os aspectos psicológicos, sociais, ambientais, enfim, existenciais da doença.


O CUIDAR EM ENFERMAGEM  NA ÓTICA  HEIDEGGERIANA
Neste momento considero oportuno trazer a hermenêutica de Heidegger para a enfermagem, já que enquanto uma profissão da área da saúde, é constituÍda por profissionais, seres-aí que lidam  com os demais profissionais e também com os clientes. O cuidar do sujeito-ser-aí, quaisquer que sejam as nuanças, é sua essência.

Assim, se procedermos à reflexão da nossa prática assistencial, emergirá a compreensão da singularidade dita por Heidegger, de cada ser humano. Como isto pode ser percebido? Podemos lembrar  que a doença pode ser a mesma para um grupo de clientes, a terapêutica também, mas as respostas apresentadas por cada um são diferenciadas, e consequentemente, o nosso agir se singulariza. A cientificidade do cuidar mostra-se intrinsicamente articulada com o humano, mas não compreendemos isto no dia-a-dia hospitalar.

A enfermagem, enquanto profissão considerada essencialmente prática, técnica e cada vez também mais especializada, ao con-viver às 24 horas com os clientes, tem a possibilidade de perceber esta singularidade, pois não há como cuidar de partes do corpo, a pre-sença do humano existe, se mostra em suas atitudes, comportamentos, expressões, por mais que queiramos ser indiferentes à isto. No mundo-do-cuidar-da-saúde os dados patológicos falam sobre o clientemas não do cliente e temos que apreender esta diferença para promover uma assistência singular, humanizada.

Assim, parece oportuno que nós profissionais da saúde caminhemos na busca deste cuidar holístico, pois o estar-junto-de pode favorecer o encontro sujeito-profissional/sujeito-cliente, os seja, no qual  surge uma relação de compreensão do modo próprio de ser do outro, que se revela nos seus pensamentos, seus comportamentos, e não na sua doença. Ser-estar-doente é uma possibilidade do ser humano, mas não a única.

Esta compreensão do outro em seus sentidos e direções próprias, proporciona o cuidar propriamente dito, a preocupação com o outro,  que segundo Heidegger (1989, p.174), é aquele que ajuda o outro a tornar-se transparente a si mesmo, à compreender a si mesmo, e alcançar a sua liberdade no mundo. Este cuidar ele chama de cura e é a essência de todo ser humano. Como trazer este cuidar para a assistência à saúde dos  clientes?

Simplesmente temos que aprender a considerar o cliente não como um objeto que precisa ser consertado, mas como um ser em possibilidades de existência, que além de ser um ente-doente, também é ente-mãe, ente-trabalhadora, ente-mulher, e não podemos esquecer as outras facetas de ser do cliente, ao atendê-lo. Ele traz uma bagagem de experiências e vivências que devemos levar em consideração, e não acreditar que apenas nós,  profissionais com tantos anos estudos, sabemos o que é melhor para ele. Precisamos valorizar a opinião do cliente sobre seu tratamento, ele deve decidir-junto-com, pois desta forma, percebendo o cliente como pre-sença, estaremos também sendo pre-senças e desenvolvendo um cuidar holístico.

Como refere Capalbo (1994, p.75), a tendência atual da enfermagem é a de reconsiderar o homem em seu todo, de modo holístico, e desta forma, assistência à saúde volta-se para pessoas conscientes e livres e não para pacientes anônimos sob os quais se irá atuar.

Neste sentido, apesar de toda influência mecanicista, a enfermagem vem percebendo que este paradigma não atende a complexidade e pluralidade dos fenômenos sociais existentes, e conseqüentemente  como cita Erdmann & Silva (1997, p.126), novas visões de ciência e de mundo vêm emergindo na profissão e devemos ampliar cada vez mais as discussões, pois não há como trabalhar com generalizações na saúde, uma vez que o ser humano é sujeito de nossas ações e não objeto.

A adoção de um conceito holístico e ecológico de saúde, tanto na teoria como na prática, exigirá não só, uma mudança radical conceitual na ciência biomédica, mas também uma reeducação maciça do público, (Capra, 1997, p.155).

Portanto, somente retomando o fenômeno “cuidar da saúde”como uma prática holística, ou seja,  um cuidar-ajuda  que percebe o outro  em seu modo de ser mais próprio, em suas possibilidades de ex-sistir,  poderemos contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população, para o exercício da cidadania e nos faremos, enquanto profissionais, pre-sentes na sociedade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Capalbo C. Abordando a enfermagem a partir da fenomenologia. R. Enferm. UERJ. 1994 mai  2(1):70-76.

2. Capra F.O ponto de mutação. 22a. ed. São Paulo: Cultrix. 1997.

3. Casini P. As filosogias da natureza.Editora Presença. 1995.

4. Erdmann AL, Silva AL. Desmistificação da Pesquisa em Enfermagem. Anais do 9º SENPE, Vitória. 1997, p. 126-129.

5. Gaarder J. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.

6. Heidegger M. Ser e Tempo. Parte I. 3.ed. Petrópolis: Vozes; 1989.

7. Koyre A. Estudos de História do Pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Florence Universitária; 1997.

 

 

Received:10/14/2002
Accepted: 11/19/2002