ARTIGOS ORIGINAIS

 

Cuidado: construindo uma nova história de sensibilidade

 

Iraci dos Santos1, Figueiredo2, Vera Sobral3, Claudia Tavares3

1State University of Rio de Janeiro
2Rio de Janeiro Federal University
3Fluminense Federal University

 


RESUMO
Descrevemos um cuidado de enfermagem em que interfaces se combinam. Tal compreensão  impõe relações interpessoais entre cuidadores e quem é cuidado. É uma história de sensibilidade na qual assumimos ser e viver livre, autônomo e independente. Esse cuidar se utiliza da “terra”- a ecologia humana e  ambiental; o “sopro” – a vida e sua origem; as “pistas” – semiologia para o cuidar. A fundamentação desse conhecimento  encontra-se em: impulsos, emoção, desejo e prazer  do corpo. A práxis revela  a alquimia do cuidado - o modelar do cuidado no corpo por um outro corpo.
Descritores: Enfermagem, Cuidado sensível, Sociopoética



CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A história do cuidado de enfermagem, ao longo dos anos, apresenta diversas versões, principalmente aquelas ligadas à implementação de tecnologias e terapêuticas médicas e, portanto, dependentes do modelo biomédico destinado à cura e ou recuperação de doenças. Mas refletindo sobre o cotidiano do trabalho de enfermagem, observamos que muitas atividades são desenvolvidas tendo como enfoque principal o bem-estar e conforto do cliente. Isso exige um esforço constante dos profissionais no entendimento da complexidade e fragilidade desse ser humano sob sua responsabilidade pois nem sempre o que se  preconiza  tradicionalmente para atendê-lo surte o resultado almejado. É na esfera dessa demanda do cliente que se desenvolve o cuidado específico de enfermagem voltado para as necessidades e desejos de sua clientela. 

Assim, é preciso rever os conceitos de “ saúde e cuidado” aprendidos,  culturalmente e hegemonicamente conservados entre os profissionais de saúde e repassados  para a sociedade, a fim de encontrar sua gênese, espaço de atuação e formas de contribuição para o bem-estar da humanidade. Convidamos os leitores para inserir estes conceitos num espaço de expressão e sensibilidade. Para tanto, vamos deter nosso olhar e reflexões numa abordagem criativa e coletiva; numa ação de solidariedade, liberdade e parceria para construir uma nova história do cuidado que  não é por nós considerado inexoravelmente vinculado á saúde e a ela indispensável, mas sobretudo, algo que, ao longo dos anos vem sendo o objeto do desejo da humanidade.

Nessa história o cuidado nasceu no espaço privado, na família, sendo a mulher a primeira a cuidar do filho, do marido, dos parentes, dos vizinhos e transmitindo essa experiência para as filhas que iam disseminando pelas comunidades o conhecimento de cuidar. Então, ele traz uma marca "genética" - a sensibilidade, a compaixão /compreensão /amor, aconchego; a ajuda /ligação tão comum no comportamento das mulheres. Portanto, esse cuidado não se conforma no paradigma científico cartesiano  adotado na área biomédica e extensivo predominantemente ás demais profissões de saúde.
Nesta abordagem criativa e coletiva voltamos nosso olhar para  outras marcas ligadas ao cuidado, discutidas por Sobral e Figueiredo,1  que são as  histórica e cultural da enfermagem como profissão feminina, cuja utopia fundadora é o conhecimento e o cuidado do ser humano que proporcionou às mulheres que dela fizeram o seu espaço de trabalho uma alternativa particular visando possibilidades além da vida doméstica e familiar. Esta, portanto, é uma profissão construída com valores históricos, econômicos, sociais, culturais e éticos.

Abre-se, então, um espaço de sensibilidade para esta profissão, desde o que afirma Santos2: a enfermagem tem uma especificidade de conhecimento porque o seu objeto privilegiado de investigação é o ser humano. Diz a autora que é necessário às (aos) enfermeiras (os) buscarem métodos próprios para sedimentar e aperfeiçoar o próprio saber pois a validade científica na enfermagem advém não só do seu pensar e fazer profissional como também, da própria busca de caminhos adequados para o estudo do seu objeto de pesquisa.

Aliado a estas marcas recorda-se o conceito relativo ao trabalho de enfermagem anunciado por Horta3, o qual é aceito pelas brasileiras- “enfermagem é gente que cuida de gente”. Esta, talvez, seja uma característica desta profissão difícil de teorização visando alcançar os ideais de cientificidade, preconizados pelo paradigma científico vigente na atualidade; pois a aceitação deste conceito advém de nossas reflexões sobre a enfermeira:

um ser humano único que cuida colocando  seus conhecimentos científico, técnico e tecnológico junto ao seu arsenal emocional (dúvidas, medo, coragem, prazer), inerente à sua humanidade, em favor do outro ( possuidor de um universo de saberes riquíssimo! ) e que precisa ser cuidado. Desse modo, no exercício desta profissão nos parece fundamental reconhecer:

uma aprimorada proposta de solidariedade humana.Algo diferente da caridade relativa ao domínio religioso, mas a solicitude de quem cuida para quem é cuidado que é o respeito e a compreensão da fragilidade e complexidade de um ser humano por outro, conforme afirma Santos2;

a variedade cultural existente no Brasil, pela mistura incrível de raças e culturas nativas e importadas que, acrescentando saberes diversos, enriquece o cuidado de enfermagem neste processo saúde / doença, ou melhor, bem-estar / mal-estar;

o curioso momento  em que o cuidado deixou o espaço do privado e se transformou numa atividade a ser exercida num espaço público, desligada dos aspectos familiares e executada por pessoas estranhas ao sujeito a quem ele se destina. Neste caso falamos daquele cuidado oferecido tradicionalmente como fruto de uma acumulação cultural e tecnológica, desenvolvido pelas mulheres e apropriado pela ideologia religiosa.


CUIDADO E SAÚDE  SOB A ÓTICA  SOCIOPOÉTICA 
Nesta construção de uma história de sensibilidade para o cuidado de enfermagem, nosso olhar analisa o modelo biomédico ocidental, o qual, ao longo dos séculos, foi esmagador sobre o vasto arsenal cultural do processo saúde / doença. Notamos, assim, que se impediu, muitas vezes, pelo bem da ciência (ou "por ordem médica"), ligações entre os indivíduos e suas raízes culturais mais profundas.

Não se trata aqui de colocar em campos opostos o saber médico ( que privilegia a ciência e a conseqüente tecnologia farmacológica, a exemplo de – o antibiótico) e o saber da benzedeira ( que adota os produtos da natureza, ou seja, privilegia - o ecológico). Trata-se, entretanto, de observar que a busca do simbólico foi o fundamental elemento na relação terapêutica em todas as culturas e parece ter sofrido sérias fraturas no modelo de assistência à saúde (ou a doenças?) em nossos dias. Assim, é que a busca desta relação no que se passou a chamar de “práticas alternativas” remete à pergunta:

* o que é tradicional e o que é alternativo - 1000 anos de acupuntura ou 50 de antibióticos? A resposta para tal questão deve  demonstrar o que queremos explorar neste trabalho.

À enfermagem tem cabido uma posição difícil de preparar um corpo humano para a intervenção de saberes e poderes de outros seres humanos. Assim, despe-se os indivíduos de suas culturas e valores por mecanismos bastante duvidosos. Aculturamento do cuidado? Uma nova possibilidade de leitura das influências das questões culturais e subjetivas da produção e reprodução do bem-estar e mal-estar se processa neste final de milênio. Uma perspectiva transcultural, anunciada por Leinninger (1985) , tem repercussões e expressa nosso interesse pelos temas ligados à dinâmica desta curiosa espécie humana, e daqueles que se propõem a dela cuidarem. Acreditamos avançar e encontrar uma "brecha"através da imaginação, da utopia, da realidade, que, inscrita na subjetividade envolve sentidos – sexualidade - sensibilidade e arte, ao seguirmos a abordagem sociopoética de Gauthier e Santos (1996).

Nosso entendimento sobre saúde nos parece atual: quando cuidamos das pessoas não lhes perguntamos sobre suas doenças pois queremos saber é se elas se sentem bem. Portanto, o cuidado de enfermagem possui um sentido debem-estar. Isto encerra uma característica marcante como conceito e prática profissional. Entender bem-estar como saúde e mal-estar como desvio de saúde abre novas frentes de estudos e resolução de problemas envolvendo a enfermagem e seus clientes.

Desse modo, introduzimos novos elementos à noção de causalidade do mal-estardeslocando seu eixo dos agentes patogênicos que desviam a saúde, para uma idéia de multicausas. Isto significa aceitar a interferência de outros fatores como:

a) Ecologia - ambiente, condições materiais de vida, relações sociais de gêneroviver, conviver, trocar experiências e subjetividade humana;
b) Política - possibilidade de conservar os direitos da pessoa que tem desejos, portanto, direitos naturais. Falamos da política baseada na Teoria do Contrato Social de Rousseau in Gouges (1908) que afirmava: “um governo só é legítimo se preservar a liberdade natural dos homens permitindo a cada um participar nos procedimentos decisórios públicos”. Entretanto, observamos constantemente  que o poder regulador da prática, em muitos momentos, cria ações nocivas que podem ser delimitadoras da liberdade e causadoras de mal-estar envolvendo ações governamentais, institucionais e familiares;
c) Espiritualidade - possibilidade de criar, sonhar, brincar, imaginar - liberdade para ser e estar; de crer, acreditar, conhecer e transcender;
d) Economia - as desigualdades sociais, subdesenvolvimento econômico, desemprego e a falta de perspectiva de uma vida melhor, aumentam os desvios de saúde e são fatores indicativos de que o processo de mal-estarpode ser o efeito da ação de microorganismos, sons, emoções, desconhecido, não dito, e de outros fatores provenientes do desenvolvimento tecnológico e das relações que mantemos com o mundo, com o outro e conosco.

O bem-estar como saúde impõe-se no compromisso dos profissionais desejosos em evitar os fatores que desviam o homem do estado de bem viver. Interrogar, com vistas à socialização, o respaldo do poder médico, ainda permanente, e estender este poder para outros grupos é empreender um novo papel pois no mundo todos são responsáveis pela célula do movimento sanitário, ou seja, o cuidado com: filhos, família, planetas, a nossa terra, enfim a natureza ambiental e humana, as instituições, pessoas consideradas diferentes, doentes, moribundos e  as relações que se estabelecem entre elas.

É, ainda, alertar para a subjetividade humana que move, colore e, assim, faz existir a própria vida. É preciso desinstitucionalisar o hospital como lugar de doença, acreditando na assertiva de Clarke (1989) ao dizer: o hospital é um lugar para controle e manutenção da saúde, um espaço para discussão de questões envolvendo etnia, política, reflexão. Ele é, também, um lugar de construção, desconstrução e reconstrução de conhecimentos e de ideologias.

Refletir sobre esta assertiva nos leva a afirmar: queremos um espaço onde os doentes não sejam segregados para não amedrontar a sociedade pela possibilidade de contaminação. Queremos um lugar onde as pessoas tenham direito ao cuidado e conforto visando à  reversão dos processos de mal-estar em bem-estar.

Estas idéias nasceram e se aplicam à nossa prática de cuidar há mais de vinte anos. Elas indicam uma inserção para o que entendemos como qualidade de cuidarConceituamos bem-estar e qualidade como se fossem "degraus" facilitadores da subida para o estado ótimo do bem viver, se situar e conviver no mundo. Degraus  cuja descida será considerada  como o desvio de tal estado, ou seja, - o mal-estar. Subir e descer é uma questão pessoal pois vincula-se às características individuais de cada um. E pode-se assegurar que nem sempre quem desce estará doente, pois  podemos descer na escada do bem viver para fazer ajustes, rever posições e para repensar bem-estar e mal-estar.

A definição oficial de qualidade publicada pela International Standard Organization (ISO),  diz: “qualidade é um  conjunto das propriedades e características de um produto, processo ou  serviço que fornece a capacidade de satisfazer as necessidades explícitas e implícitas dos usuários.” O tema qualidade, no Brasil, destacou-se na década de 80 e início da de 90, principalmente nas áreas industrial e comercial e a partir do final desta última vem sendo pensado com mais seriedade, ou melhor, no nosso olhar, visando ao bem-estar das pessoas. 

Cuidado é, portanto, um produto que ofertamos à clientela. Pensar na sua qualidade envolve fatores condicionantes de  satisfação de quem o recebe e de quem o oferta. EIS A QUESTÃO.

Qualidade em enfermagem com vistas ao bem-estar dos seus clientes envolve uma prática que inclui desenvolvimento de técnicas, habilidades psicomotoras e conhecimento científico para ofertar segurança àquele que necessita de cuidados. Envolve saber se emocionar, criar, sonhar, intuir, imaginar, pesquisar, inclusive, ao cuidar.

Sendo assim, esta é uma profissão onde se pressupõe arte, ética e ciência. Ela tem muito à oferecer e para ser uma ciência sensualPortanto não deve ser desenvolvida pelo paradigma de cientificidade dominante, qual seja, o das ciências naturais.

Nosso projeto para uma teoria - prática de cuidar e pesquisar baseia-se em dimensões envolvendo o próprio corpo que cuida e o corpo que é cuidado, como força e poder indissociável à vida e, portanto, vinculado e direcionado ao bem-estar. Nele, os sentidos, a intuição, a sensualidade, a sensibilidade, a sexualidade e a solidariedade são capazes de criar modos de viver, cuidar, organizar-se, desorganizar-se, reorganizar-se e compreender a complexidade da vida entendida, por Morin (1990), como a incerteza no seio de sistemas ricamente organizados.

Nosso projeto está , portanto, ligado a uma certa mistura de ordem e desordem (pobre e estática); reina no nível das grandes populações e no da ordem (pobre, pura, indeterminada) das unidades elementares. Pensar na enfermagem como o lugar do cuidado às pessoas é: pensar em complexidade; poder trabalhar com o insuficiente e o vago; aceitar a ambigüidade nas relações entre o sujeito cuidador e o sujeito que é cuidado e aceitar a ordem / desordem e a auto / hetero organização.

Isto exige o reconhecimento de fenômenos, tais como liberdade e criatividade, inexplicáveis fora do quadro complexo e único que permite a sua aparição. Portanto, o cuidado de enfermagem é um lugar de inserção para uma nova abordagem do conhecimento do homem como um ser político, ético, moral e social - A Sociopoética. Este é  um  paradigma científico que privilegia as pesquisas nas ciências humanas e sociais, ou seja, aquelas que têm o fenômeno humano como objeto de investigação.

Na Sociopoética, encontra-se um novo caminho no qual a pesquisa em enfermagem pode atender a especificidade e a complexidade de sua prática para teorizar e criar novas concepções adequadas ao que se entende como bem-estar. Para justificar mais ainda a nossa adesão à Sociopoética., pensemos no nosso modo de ser e no dos clientes considerando a "razão de existir', "a utopia fundadora" das Instituições, como momentos dialéticos, conforme defende Lourau(1996), e assim poderemos entender esta proposta de Santos (1997):

“Devemos estudar nas Instituições de ensino e de saúde questões que afetam os clientes, profissionais, disciplinares e interdisciplinares reconhecendo-os como parceiros para a construção do conhecimento, pois eles não são apenas informantes, são, também, co-responsáveis por tudo aquilo que acontece." Assim, encontramos uma outra inserção para falar de cuidado e bem-estar.


O CUIDADO COMO INTERVENÇÃO 

Encontrar um espaço para pesquisar de forma diferente do já existente é detonar, segundo o pensamento de Guattari (1993): É criar um caos para desterritorializar o que está fixado como certo, para refundar uma outra forma de ver, de fazer e de sentir as coisas. É desarrumar o que está arrumado para manter as coisas vivas, em ordem / desordem / ordem.

Neste momento, destacamos uma experiência profissional como exemplo de bem-estar e mal -estar: a fim de a enfermeira  cuidadora sentir na própria pele o que é ser cuidada, resolvendo pesquisar um procedimento de enfermagem denominado banho no leito. Durante a pesquisa, as enfermeiras se colocam como clientes e aceitam ser banhadas. Os resultados desta investigação demonstraram que o banho no leito, para cliente e cuidadores, é uma invasão de privacidade ao mesmo tempo em que é uma ação profissional visando conforto, higiene, prazer e bem-estar.

Esta experiência serviu, naquele momento, para desencadear questões ligadas `a sexualidade e às nossas próprias dificuldades em tocar o corpo nu de alguém tão próximo de nós  espacialmente, cotidianamente, afetivamente e profissionalmente.

Quanto à sexualidade como força de vida e de bem-estar, ela é entendida como a forma de nos colocarmos no mundo enquanto sujeitos e interagirmos com ele. São questões sobre o “não dito” ou envolvendo “falas” para denegar o que deveríamos afirmar. Nossas dificuldades são imputadas ao fato de sermos profissionais autorizados socialmente a tocar em qualquer parte do corpo do outro, inclusive no espaço público.

São questões históricas, políticas e culturais que perpassam situações de gênero, de raça, de etnia e de linguagem. E, assim, descobrimos as dificuldades guardadas em nosso inconsciente e jamais colocadas em discussão.

Acreditamos que os estudos ora desenvolvidos devam criar nas enfermeiras, principalmente naquelas que experimentaram, na pesquisa sobre o banho no leito, essa ação do cuidar do corpo- vivo – quente, reflexão e interesse acerca desta tecnologia de enfermagem. A pesquisa citada desencadeou e, ainda, possivelmente desencadeará reflexões e estudos sobre as práticas profissionais e as respostas destas no corpo do cliente. Desse modo, elas assumirão a dignidade de ações complexas e sensíveis. Verdadeiras terapêuticas de cuidado e conforto proporcionadas pela enfermagem.

Podemos acrescentar que este é um novo espaço – tempo onde podemos teorizar um cuidar em enfermagem que promove o bem-estar das pessoas. Este é um lugar  onde a encenação acontece e desperta o espírito crítico dos indivíduos, propiciando reflexões sobre o objeto representado, pensado e, sobretudo, imaginado.  

É, sem dúvida, um espaço de construção, desconstrução e reconstrução de saberes e modos de pensar diversos para produzir teorias, internalizar e se apropriar de conhecimentos se considerarmos o ambiente onde se processa o cuidado como o laboratório das pesquisas em enfermagem. Defendemos, portanto, que o espaço para teorizar e promover o bem-estar é onde o cuidado acontece desencadeando reflexões e discussões.

Este é o espaço onde exercemos a sensibilidade do corpo para nos comunicar, sonhar, imaginar, criar, concretizar utopias e racionalizar. Nele o movimento é feito através de ação – reflexão – ação, desde os problemas trazidos pelos sujeitos, de suas vivências em casa, no trabalho, na rua. São movimentos corporais produtores de conhecimentos envolvendo dimensões estética, política, social, ambiental, cultural, ecológica e a subjetividade.

Insistimos no cuidado como uma atividade fim no trabalho da enfermagem e um meio de valorização profissional quando é realizado com arte (criatividade, estética) ética (respeito, compreensão) e ciência (conhecimento, pesquisa). O cuidado produz o bem-estar e o bem viver, o bem maior a que tem direito o homem. Assim, a enfermagem tem como clientela todos os seres humanos.

Aqui, encontramos um método de pesquisa, de intervenção, para investigar os fenômenos do cuidado, pois que a pesquisa não se faz sem ação. Trata-se do método do Grupo- Pesquisador,  alma da Sociopoética, a qual considera as pessoas que conosco compartilham a aventura do cotidiano saber viver e conviver (colegas, alunos, clientes) como co-pesquisadoras. Com elas formemos o Grupo - Pesquisador criado por Gauthier e Santos (1996), pois acreditamos na necessidade de incentivar nas pessoas a expressão do seu saber implícito, num sentido crítico a fim de que elas possam criar, produzir conhecimentos. Isto porque a cultura, a civilização, têm contribuído para a repressão de tudo que nos é natural.

É indispensável liberar o imaginário das pessoas a fim de que elas aceitem os componentes de sua humanidade. Esta é uma exigência ética, além dos padrões e razões da tradicional cientificidade. Assim, nada mais apropriado para investigar entre e com as pessoas o que lhes causa mal-estar e bem-estar e quais cuidados lhes parecem mais confortáveis e agradáveis, ou seja, mais promotores de bem estar.

A Sociopoética, ao propiciar um processo de criação / desestabilização nas pessoas, liberando coisas escondidas, esquecidas e recalcadas, atinge suas dimensões física, intelectual e espiritual impedindo que o conhecimento produzido dentro do grupo esteja ligado apenas às questões ideológicas e institucionais.

Pesquisar em enfermagem com a Sociopoética representa uma fidelidade à sua razão de existir, qual seja, fundamentar-se num profundo respeito humano, para lidar com as pessoas. Este é o compromisso desta profissão e sua dimensão ética na pesquisa, pois é preciso reforçar: sendo seu objeto de estudo os fenômenos humanos – não se faz enfermagem sem construção, desconstrução e reconstrução de saberes para o bem-estar dos seres humanos.


CONSIDERAÇÕES  SOBRE  O CUIDADO / AÇÃO 
A ação de cuidar se apoia em bases científicas e se utiliza dos materiais citados por Figueiredo (1997): a terra - a ecologia do cuidado e a saúde ambiental; o sopro – a vida e sua origem; as pistas - semiologia para um diagnóstico de enfermagem. O conhecimento assim fundamentado encontra-se em: - pulsões, emoção, desejo e prazer do corpo. A práxis revela o modelar do cuidado no corpo por um outro corpo. Esta é a alquimia do cuidado.

A lógica para as ações de cuidar depende de uma viagem ao passado (dimensão histórico – existencial), de pensar o presente e projetar o cuidado ( dimensão estrutural – profissional ) e das formas de sentir e dar o cuidado ( dimensão psicoafetiva ). O cuidar nos exige uma atenção para o estado de bem-estar como esperança de nascer, viver e morrer – esperança de viver para criar espaços nas instituições e condições nas quais a natureza exerça sua força para manter o bem-estar ou promover a recuperação após o mal-estar.

Nesta história de sensibilidade, incluem-se estratégias para a prática de cuidar e de ensinar a cuidar: conhecer o sujeito que se encontra no mundo da vida, no seio da família, no espaço social com os outros ou sozinho consigo mesmo; intervir e interagir com ele na perspectiva de melhorar seu bem-estar; construir com ele um espaço de comunicação, transformação e produção de saberes e tecnologias, considerando os aspectos econômicos, culturais, políticos e sociais; encontrar espaço para ensinar crianças, adolescentes e adultos a tornarem-se cidadãos em equilíbrio com sua ecologia, entendendo-o como imaginários ou reais; procurar espaços de encantamentos para reflexão e discussão de modos de viver, de ser e de estar no mundo, numa perspectiva transcultural e transdisciplinar.

É indispensável encontrar nos gestos e nas expressões das pessoas significados que determinem uma comunicação essencial, especial e simbólica para uma ação criativa concretizada no cuidado de enfermagem. Portanto, neste novo paradigma do cuidar, deve-se vislumbrar um horizonte onde no cuidar se associa sonho e ciência, intelectual e  intuição,  razão e sensibilidade, pensamento e emoção, real e virtual, visível e invisível, espírito e conhecimento,  imaginação e criação, cotidiano e subjetividade, individual e coletivo, particularidades e singularidades.

Tudo isto é possível para as enfermeiras pois, conforme afirmam Gauthier e Santos (1996),  a especificidade de sua profissão lhes permite ser invasoras da intimidade do ser humano e conhecer profundamente a “terra” onde trabalham com sua cultura, o ambiente difícil como é o hospital, a instituição de ensino, as empresas onde convivem cotidianamente com as relações de poder institucionais. Para implementar este cuidado sensível, elas devem fluir nos “fluxos” dos caminhos e dos relacionamentos institucionais, se enraizar na “terra” da sua cultura e dos conhecimentos adquiridos na sua formação profissional, refletindo sobre a própria fragilidade de reproduzir o que gostam e/ou não gostam, mas que fazem com que elas vivam o seu “arco - íris” da aliança, do desejo- cotidiano, caminhando entre clientes sadios e doentes, entre camas, calçadas, ruas e lares, e morros. Neste paradigma, portanto, é possível confrontar-se com diferenças sociais e individuais vivendo e trocando experiências.

O cuidar nos obriga a caminhar para encontrar uma indicação, uma direção a fim de mergulhar em nós mesmos; nos estimula a sonhar com os labirintos institucionais e a pensar em alternativas desde o entendimento de que o ser humano é um ser desejante. Ele exige um aprofundamento, como afirma Santos (1997), na vida e no inconsciente para encontrar a responsabilidade profissional, entendendo a cliente no centro das dificuldades, das responsabilidades e das decisões.

Na construção desta nova história, a questão de mudar o conceito de saúde para bem-estar  pensando que este pode ser promovido pelo cuidado de enfermagem é algo instituinte, uma espécie de marco zero na nossa profissão. Certamente que o conceito de bem-estar se constitui no definidor da natureza e do domínio profissional, representando uma dimensão conquistada e desenvolvida historicamente, haja vista refletir a nossa opção ética e humana. 

É no desenvolvimento da enfermagem, afirmam Figueiredo; Santos; Sobral; Silva Jr. (1998) que se encontra o lugar do cuidado com as pessoas, do respeito aos seus direitos e do reconhecimento de sua dignidade e humanidade. Fazer enfermagem é dispor-se a sonhar, imaginar, criar e compartilhar com outros de belezas, misérias, forças, humildade, saberes e utopias, conforme evidenciou Tavares (1999).

O que ainda não está claro nesta questão, segundo alertam Leopardi; Santos; Sena, (2000) é o engajamento real das enfermeiras e da sociedade a ser beneficiada por esta proposta, pois  o cuidado sensível voltado para o bem-estar das pessoas não existe senão numa perspectiva de reciprocidade, de interação perfeita entre seus interessados. E, nesta perspectiva, ele é algo que não se poderá reverter. Será sempre instituinte, novo. Algo que só será institucionalizado, na dependência da sensibilidade e criatividade das pessoas que nele acreditam.  

REFERÊNCIAS

1. Clark A. Um dia no século 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1989.

2. Figueiredo N. A mais bela das artes. [ dissertação ]. Rio de Janeiro: UNIRIO-EEAP, 1997.

3. Figueiredo N, Santos I, Sobral V, Silva Jr,Osnir C.O cuidado lugar da invenção de um novo paradigma científico. Anais do 6 ENFTEC. São Paulo; 1998. CDRON, p.606-610.

4. Gauthier J, Santos I. A Sociopoética. Rio de Janeiro: Gráfica da UERJ; 1996.

5. Gouges O.Declaratión des detroits de la femme.Paris; 1908.

6. Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: 34°ed. 1993.

7. Horta WA. O Processo de Enfermagem. São Paulo: EDUSP, 1996.

8. Leininger M. Teoria do cuidado transcultural.Anais do I Seminário

9. Brasileiro Teorias de Enfermagem. Florianópolis, UFSC, 20-24 maio; 1985.

10. Leopardi MT, Santos I, Sena RR. Tendências de enfermagem no Brasil: Tecnologias do cuidado e valor da vida. ANAIS do 51O  Congresso Brasileiro de Enfermagem e 10OCongreso Panamericano de Enfermería. Florianópolis – SC. 2000. p. 147-163.

11. Lourau R. Análise Institucional. 2. ed. Petrópolis-RJ: Vozes. 1996.

12. Morin E. Introdução ao pensamento complexo, Epistemologia e Sociedade. 2 ed. São Paulo: Instituto Piaget; 1990.

13. Santos l. A Instituição da Cíentificidade: Análise institucional e sociopoética das relações entre orientadores e orientandos de pesquisa em enfermagem. ( Doutorado ) Rio de Janeiro: UFRJ, EEAN;1997.

14. Sobral V, Figueiredo N. Os caminhos do trabalho feminino na enfermagem. Programa – Resumos do 1 EMBRACCE. Itapema – SC; 1996.

15. Tavares C. A poética do cuidar. Rio de Janeiro: SENAI; 1999.

 

 

Received: 10/01/2002
Accepted: 11/11/2002