ARTIGOS ORIGINAIS
As pesquisas em enfermagem: aspectos teóricos e metodológicos da categoria raça/cor/etnia
Isabel C.F. da Cruz1
1Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Situação-problema: desconhecimento sobre as condições sobre bem-estar e mal-estar, saúde e doença da população brasileira, segundo um recorte étnico e cultural e sobre as pesquisas existentes nesta temática e seus aspectos teóricos e metodológicos. Objetivo: identificar a produção científica brasileira de enfermagem que aborda a categoria raça/cor/etnia. Metodologia: pesquisa exploratória no Banco de Dados de Enfermagem (BDENF). Resultados: a busca computadorizada evidenciou o seguinte número de referências bibliográficas: cor (15), raça (03), raças (01), racial (01), racismo (17), racista (01), pretos (11), pardos (01), índio (01), índios sul-americanos (01), brancos (04), etnias (01), negro (07), negros (07), étnicas (02), étnico (02), étnicos (01) e etnoenfermagem (01). Verificou-se a inexistência das categorias amarelo (asiático) e indígena como palavras-chave. Conclusão: a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, exerceu uma influência positiva quanto à inclusão, nas pesquisas, do dado demográfico raça/cor/etnia. Recomendação: um estudo posterior que analise de forma sistematizada os textos identificados de modo a evidenciar o potencial quanto a novos significados que propiciem uma interpretação da realidade diversa da sociedade brasileira e, principalmente, o combate à desigualdade na atenção à saúde.
Descritores: raça – pesquisa de enfermagem - etnias
INTRODUÇÃO
A III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada pelo Sistema das Nações Unidas em Durban/África do Sul, em agosto de 2001, produziu um ambiente favorável para a superação da desigualdade gerada pelo racismo no Brasil. Entretanto, a incorporação da temática racial às pesquisas em saúde e de enfermagem, em particular, ainda está longe de ser comum aos estudos brasileiros em que pese as instituições governamentais serem signatárias de documentos, tais como o Plano de Ação da Conferência Regional das Américas Contra o Racismo. Neste Plano, no parágrafo 111, os governos da região requerem que a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) “promova ações para o reconhecimento da raça/grupo étnico/gênero como variável significante em matéria de saúde e que desenvolva projetos específicos para a prevenção, diagnóstico e tratamento de pessoas de descendência africana.”
Ainda que vários grupos étnicos componham as populações nas Américas, a OPAS, em Washington, D.C, propôs um Plano de Ação para reduzir as iniqüidades em saúde que atingem a população afrodescendente. Como desdobramento desta iniciativa, em dezembro de 2001, foi realizado o Workshop Interagencial Saúde da População Negra, no qual especialistas na temática, a convite das Nações Unidas no Brasil, reuniram-se para propor subsídios para a formulação de uma política nacional de saúde da população negra.
Espera-se a sensibilização das autoridades sanitárias, universidades, centros de pesquisa, movimentos sociais, conselhos e associações profissionais de saúde para o estabelecimento da equidade em saúde no Brasil e que a dimensão racial/étnica seja parte integral não só dos registros da área da saúde, mas também de uma agenda política nacional, orientada para a não-discriminação e o respeito à diversidade da sociedade brasileira.
Diante do exposto, entendo que além de desconhecermos as condições sobre bem-estar e mal-estar, saúde e doença da população brasileira, segundo um recorte étnico e cultural, desconhecemos também as pesquisas existentes nesta temática e seus aspectos teóricos e metodológicos. Assim, pretendo neste estudo identificar na literatura científica brasileira de enfermagem os estudos que abordam a categoria raça/cor/etnia e suas implicações para a pesquisa em enfermagem, buscando o estabelecimento de novos significados que propiciem uma interpretação da realidade diversa da sociedade brasileira e o combate à desigualdade na atenção à saúde.
DESENVOLVIMENTO
Raça, cor ou etnia?
Em que pese haver uma única raça no mundo: a raça humana, as classificações das pessoas por raça existem pelo simples fato de raça ser um constructo social. A raça é uma forma de identidade baseada em uma idéia biológica errônea, mas socialmente eficaz para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios. Igualmente o termo “cor” também está associado à posição social, às características físicas (tipo de cabelo, formato de nariz e lábios, etc) e culturais (vestimenta, modo de falar, etc) (LIMA FILHO, 2000). Considera-se que etnia é um conceito chave para pensar e idealizar uma sociedade plural porque contrapões imagens positivas aos estereótipos dominantes.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa exploratória no Banco de Dados de Enfermagem (BDENF), da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), utilizando as seguintes palavras-chave: cor, raça, raças, racial, racismo, racista, pretos, pardos, amarelo (s), indígena, índio, índios sul-americanos, brancos, etnia, etnias, negro, negros, étnicas, étnico, etnoenfermagem e etnografia.
Resultados
A busca computadorizada no BDENF produziu o seguinte resultado quanto ao número de referências bibliográficas (artigos, teses ou dissertações): cor (15), raça (03), raças (01), racial (01), racismo (17), racista (01), pretos (11), pardos (01), índio (01), índios sul-americanos (01), brancos (04), etnias (01), negro (07), negros (07), étnicas (02), étnico (02), étnicos (01) e etnoenfermagem (01).Cabe ressaltar a ausência das categorias amarelo e indígena como palavras-chave. Além disso, tentei buscar informação sobre pessoas de origem asiática utilizando as palavras-chave oriental, asiático, chinês e japonês. A palavra oriental tem 03 referências relacionadas às terapias alternativas. Encontrei um único texto sobre pessoas de origem japonesa. A palavra asiático inexiste enquanto palavra-chave.
É importante observar ainda que muitas referências que estão arroladas nas categorias acima não possuem relação com grupos étnicos populacionais como, por exemplo, a categoria cor onde há trabalhos sobre as cores do ambiente e do uniforme da enfermeira. Outras referências aparecem em mais de uma categoria.
A categoria raça/etnia como variável
É necessário que se reconheça que a sociedade brasileira é multi-cultural e multi-racial para que se possa dar maior visibilidade às relações raciais que em decorrência da história deste país são caracterizadas pela negação, pela invisibilidade e pela segregação (LIMA FILHO, 2000).
Uma primeira análise dos resumos obtidos me leva a considerar que a presença de estudos onde se encontra a categoria cor deve-se, principalmente, à força da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre a pesquisa com seres humanos. Esta resolução exige que o pesquisador descreva as características da população a ser estudada por: tamanho, faixa etária, sexo, cor (classificação do IBGE¹),estado geral de saúde, classes e grupos sociais, etc.
No início da década de 90, verifiquei, em observações não-sistematizadas, que vários modelos de histórico de enfermagem e prontuários não possuíam na parte referente a identificação do cliente o item etnia/cor. A ausência do item cor/etnia nos registros da área de saúde parecia se refletir no número escasso de trabalhos publicados sobre o processo saúde/doença entre pessoas de etnia negra (CRUZ, 1990; 1993). Porém, observo que a Resolução 196/96 (NESEN, 1999) começa a ser observada pelos pesquisadores pois, dos textos agora identificados, a maioria é posterior ao ano de 1996.
Contudo, a persistência de escassos e irregulares dados sobre a morbi-mortalidade de pessoas de etnia negra, asiática e indígena, no Brasil, dificulta a realização de uma análise objetiva sobre os indicadores das condições de vida e saúde destes grupos étnicos em comparação a outros. Consequentemente, esta sistemática (e, no meu entender, proposital) escassez de dados impossibilita o estabelecimento de uma política de saúde, voltada para as especificidades das etnias da nossa população.
Infelizmente, alguns progressistas e conservadores unidos dão continuidade à ideologia assimilacionista do branqueamento e desconsideram completamente a variável etnia/raça quando se discute qualquer questão social relevante. Por outro lado, as pessoas de etnias não-hegemônicas, tal como a etnia negra, não estão imunes a esta ideologia. A título de exemplo, vemos que, embora os negros constituam uma parcela significativa da população brasileira (+40%) e tenham influenciado com sua ciência e sua cultura as bases desta nação, ainda precisam lutar contra a contaminação pelo racismo, afirmar cotidianamente o seu papel social e reivindicar com a devida firmeza a parcela de poder político a que têm direito.
CONCLUSÃO
Em síntese, a pesquisa exploratória me propiciou identificar na literatura científica brasileira de enfermagem mais de duas dezenas de textos que contemplam, de alguma forma, a categoria raça/cor/etnia, assim como a categoria racismo. Quanto às implicações para a pesquisa em enfermagem, observei que a Resolução 196/96, do CNS, exerceu uma influência positiva no sentido de orientar o pesquisador a considerar em suas pesquisas a variável raça/cor/etnia o que pode ser notado ao aumento do número de textos contemplando cor/raça a partir de 1996. Entretanto, não foi possível, ao tempo da produção deste relatório, analisar de forma sistematizada os textos identificados de modo a evidenciar o potencial deles em revelar novos significados que propiciem uma interpretação da realidade diversa da sociedade brasileira e, principalmente, o combate à desigualdade na atenção à saúde.
Porém, à medida que aumenta o número de estudos que contemplam a variável raça/cor/etnia, vejo reforçada a minha compreensão de que a questão étnica não é secundária, uma vez que em nosso trabalho cotidiano em saúde, utilizamos como referenciais as teorias transcultural e de autocuidado, entre outras. Assim, a ciência dos grupos étnicos, seus comportamentos, crenças e valores relativos à saúde e à doença constituem um importante balizamento para o exercício de qualquer profissão ou atividade na área de saúde.
Interessa-me, sobretudo, manter na ordem do dia a discussão sobre a composição plural desta nação e sobre a necessidade de trazer esta pluralidade para dentro das nossas pesquisas de modo que os resultados revelem esta multiplicidade de conhecimentos e culturas. Acredito que só desta forma podemos neutralizar o discurso ideológico discriminador e excludente de nossa sociedade.
No que se refere à área de saúde, em especial, há o desafio de fortalecer as linhas de pesquisa sobre saúde étnica e de realizar projetos que sejam congruentes com as realidades vividas por populações étnica e culturalmente diversas. Isto exige o re-exame das bases teóricas, da representação da amostra, dos instrumentos de coleta de dados e do referencial de análise. Requer, principalmente, avaliação sobre a relevância dos achados dentro do contexto de forças e limitações sociais. Neste seminário sobre metodologia, é oportuno ressaltar que os conceitos de cultura (etnia) ou raça e cor nas pesquisas em saúde/doença conotam diferenças para os referenciais teóricos, pois a perspectiva unicultural (européia) diminui a capacidade do pesquisador em elaborar interpretações alternativas para uma sociedade multi-étnica (brasileira).
REFERÊNCIAS
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O NESEN entende, assim como todo o Movimento Negro e a própria metodologia de pesquisa do IBGE que o item cor deve ser auto-declarado, isto é, o sujeito da pesquisa deve optar por um dos quesitos a ele apresentado.
Conferência realizada em Santiago do Chile, em dezembro de 2000.
O Plano de Ação, a ser implementado por governos e organizações da sociedade civil da região, foi elaborado na Reunião de Especialistas em Equidade em Saúde e Etnicidade, realizada em Washington, DC no período de 18 a 20 de junho de 2001. Da reunião, participaram representantes do setor público de saúde, bancos internacionais de desenvolvimento, parlamentares, instituições acadêmicas e organizações não-governamentais dos seguintes países: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guatemala, Nicarágua, Trinidad e Tobago e Uruguai. De 18 a 20 de outubro de 2001, a OPAS também realizou, em São Paulo, a Conferência Interparlamentar de Saúde, tendo a saúde da população negra como tema central.
Os subsídios estão referenciados nos seguintes documentos: Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, 1986; Introdução do Quesito Cor no Sistema Municipal de Informação da Saúde , São Paulo, 1992; Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania – Documento, Brasília, 1995; Relatório Final da Mesa Redonda sobre a Saúde da População Negra, Ministério da Saúde, 1996; Programa de Anemia Falciforme, Ministério da Saúde, 1996; II Reunião Nacional de Mulheres Negras, Belo Horizonte, 1997; Pré-Conferência Cultura e Saúde da População Negra, Brasília, 2000; Manual de Doenças mais Importantes, por Razões Étnicas, na População Brasileira Afrodescendente, Ministério da Saúde/Universidade de Brasília, 2000; Documento Alternativo do Movimento Negro, Fórum Nacional de Entidades Negras, 2001; Diagnóstico e Propostas, Articulação de Organizações de Mulheres Negras rumo à III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, 2001.
Recebido:28/03/2003
Aprovado: 10/04/2003