ARTIGOS ORIGINAIS
Metodologia da assistência de enfermagem: impasses e perspectivas
Isabel Cristina Fonseca da Cruz1
1Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Neste estudo, buscamos por meio de uma análise dialética identificar os impasses e perspectivas para o exercício do diagnóstico, prescrição e avaliação do resultado da assistência de enfermagem, com base nos depoimentos das enfermeiras. Concluímos que o método de trabalho alienado (taylorismo) desenvolve-se com conflitos que constituem o embrião do método de trabalho artesanal. Identificamos como maior impasse o discurso ideológico sobre a metodologia da assistência e entre as perspectivas o contexto sócio-político internacional (ICN) e nacional (SUS) e o surgimento de um novo paradigma (holismo).
Descritores: taxonomia – processo de enfermagem - diagnóstico de enfermagem
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em 1989 o International Council of Nursing (ICN) aprovou uma resolução sobre o desenvolvimento de um projeto para a criação de uma classificação da prática de enfermagem. Este projeto pretende organizar os fenômenos relativos ao diagnóstico, prescrição e avaliação dos resultados da assistência enfermagem (CLARCK; LANG, 1992), representando, por parte do ICN, o reconhecimento de estudos e pesquisas que já se acumulavam há seis décadas.
O Brasil enquanto membro do ICN está engajado neste projeto, tendo inclusive participado em uma das suas reuniões consultivas onde se discutiu a prática de enfermagem em Atenção Primária em Saúde (INTERNATIONAL COUNCIL OF NURSING, 1994).
O projeto, de uma forma indireta, tem propiciado uma reflexão sobre o status destas atividades em nossa prática profissional. Neste sentido, YOSHIOCA et al (1993) evidenciaram em seu estudo bibliográfico que, no Brasil, os termos referentes às atividades são diversos e não possuem uma distribuição equitativa. As autoras verificaram, por exemplo, que a prescrição é tema constante em 53.5% dos trabalhos analisados. Contudo, o diagnóstico possui uma freqüência de apenas 39%, enquanto a avaliação do resultado da assistência só obteve atenção em 7.5% dos estudos.
Os dados levantados por YOSHIOCA et al (1993) denunciam não só a diferença de status entre as atividades de enfermagem como também a falta de consenso quanto aos termos que as definem, pois além da expressão diagnóstico de enfermagem, outros 12 termos foram identificados para a mesma atividade.
A prescrição, por suavez, tem uma frequência de utilização de 3%, dividindo a percentagem restante com mais vinte expressões. A avaliação do resultado tem outros cinco termos para defini-la. Para melhor compreensão do nosso estudo, consideramos que as atividades de enfermagem são o histórico, o diagnóstico, a prescrição e a avaliação do resultado. O histórico de enfermagem não constitui objeto de interesse para o projeto do ICN, mas é uma atividade imprescindível para a realização das demais. O histórico envolve a entrevista e o exame físico do indivíduo, família ou comunidade para identificar as respostas reais ou potenciais aos processos vitais ou problemas de saúde, assim como áreas de força e fatores de risco (IYER et al, 1993).
O diagnóstico de enfermagem é conceituado como um julgamento clínico sobre as respostas do indivíduo, família ou comunidade aos processos vitais ou problemas de saúde atuais ou potenciais. O diagnóstico fornece a base para as prescrições de enfermagem e o estabelecimento de resultados pelos quais a enfermeira é responsável (NORTH, 1990).
Quanto à prescrição de enfermagem, esta é compreendida como qualquer cuidado direto que a enfermeira realiza em benefício do cliente, incluindo os tratamentos decorrentes de diagnósticos de enfermagem, os decorrentes do diagnóstico médico e a realização de atividades diárias essenciais para o cliente (BULECHEK; McCLOSKEY, 1992).
A avaliação do resultado refere-se à condição do cliente que é influenciada pela prescrição de enfermagem, indicando a resolução do diagnóstico, ou a não-resolução e, conseqüentemente, a continuação dos cuidados ou a revisão do diagnóstico (LANG; MAREK, 1990).
Estas atividades diferem do que se compreende até o momento por metodologia da assistência por representar comportamentos, ações ou habilidades da enfermeira que são realizados segundo um referencial conceptual. Elas não se reduzem a um modelo ou impresso, ainda que devam ser documentadas, por constituírem o Saber (histórico e diagnóstico) e o Fazer (prescrição e avaliação) do Ser enfermeira. Ou ao menos deveriam ser.
Cabe ressaltar, porém, que estas atividades não constituem ainda uma obrigação profissional uma vez que não estão regulamentadas pela nossa lei do exercício (BRASIL, 1986).
Mas, a partir da análise do discurso teórico referente às atividades da prática de enfermagem, sentimos a necessidade de investigar a hierarquia de determinantes profissionais que estabelecem nexos de causalidade entre as atividades da prática e a organização do trabalho, visando a exploração das dificuldades e perspectivas na implementação da metodologia da assistência.
DESENVOLVIMENTO
Os obstáculos e perspectivas da utilização das atividades de enfermagem vêm a ser uma questão difícil de ser explicada devido aos diversos determinantes históricos da nossa prática. Mas, o momento histórico que nos faz viver uma situação de crise, prepara as condições para a criação de uma ciência extraordinária baseada nas tentativas de superação da crise e na proposição de novos paradigmas (AGUIAR; SANDOVAL, 1993).
Para tanto, buscamos valorizar o depoimento das enfermeiras que trabalham na assistência direta/supervisão do cuidado, tendo em vista uma discussão que pudesse relacionar o método de trabalho (alienado ou não) e quem o realiza: a enfermeira. Os depoimentos foram obtidos entre onze enfermeiras e um enfermeiro, mediante a aplicação de um questionário. A análise dos depoimentos foi feita no sentido de identificar as descrições sobre as atividades de enfermagem e, a partir delas, poder estabelecer uma síntese sobre o método de trabalho.
A NATUREZA DO TRABALHO DA ENFERMEIRA
Apesar dos constantes esforços para o estabelecimento de uma prática baseada na Atenção Primária em Saúde, o hospital permanece como o local onde a maioria das enfermeiras e das estudantes de graduação trabalha e desenvolve suas habilidades profissionais. Para melhor compreendermos a nossa prática no presente, faz-se necessário analisar o papel dessa instituição na nossa formação e exercício profissional.
O hospital como cenário terapêutico é fato relativamente recente. No passado ele estava destinado a propiciar não a cura, mas a salvação de quem estava morrendo (PITTA, 1991). Esta concepção ideológica sobre o hospital, isto é, local onde se vai para morrer, persiste na atualidade em qualquer cenário onde a enfermeira atua. Reforça-se assim o caráter caritativo do trabalho da enfermeira que, organizado pelas regras do modo de produção capitalista, traduz-se por uma prática ambígüa entre a mítica religiosa e as normas do mercado (BARROS; SILVA, 1990; MOURÃO, 1993).
Para esta concepção ideológica de hospital, a tecnologia dominante, ou seja, os instrumentos, a experiência, os hábitos que caracterizam a força de produção, constitui-se fundamentalmente das técnicas do poder disciplinar, das técnicas gerenciais e tayloristas, em detrimento das técnicas terapêuticas, das técnicas de diagnóstico, prescrição e avaliação do resultado de enfermagem - formadas pelos ritos e saberes instrumentalizados a partir de uma relação artesanal enfermeira-cliente.
Nossas práticas estão estruturadas sobre relações de produção que desconsideram os conhecimentos sobre a clientela, dificultando assim nosso atendimento às necessidades socialmente postas, a saber: o diagnóstico e tratamento das respostas do cliente, da família e da comunidade aos problemas de saúde ou processos vitais.
Na nossa avaliação, o oposto ao modelo taylorista de produção, é o modo de produção artesanal no qual a enfermeira é o agente de seu diagnóstico e cuidado, sem a intermediação de uma categoria profissional na relação enfermeira-cliente e com uma relação de cooperação entre os membros de uma mesma categoria.
Com base no que discutimos sobre a natureza do trabalho da enfermeira, consideramos que as atividades administrativas e de supervisão da equipe auxiliar constituem o método de trabalho cotidiano da enfermeira (taylorismo), alienando-a de sua função primordial que é diagnosticar e tratar as respostas de seus clientes aos problemas de saúde ou processos vitais.
As determinantes principais do método de trabalho alienado que agem dinâmica e eficientemente entre si e com outras estariam na formação da enfermeira, nas formas de organização deste trabalho e na falta de consenso sobre as atividades básicas da profissão.
A formação da enfermeira, por uma análise do currículo, livros textos e experiências de aprendizagem, está firmemente alicerçada no conhecimento e modelo biomédicos. Preparada para implementar a assistência médica, tem na organização de seu trabalho a valorização das atividades gerenciais, em detrimento do cuidado direto.
A legislação profissional, por sua vez, não define as atividades da prática e só prevê a prescrição para clientes graves, sem contudo determinar sobre qual diagnóstico ela deve ser feita. A forte combinação destas categorias delineiam para nós o taylorismo enquanto método de trabalho da enfermeira.
Paradoxalmente, mesmo com um método de trabalho alienado, a enfermeira é capaz de se aproximar de seu cliente e diagnosticar, prescrever e avaliar sua resposta ao problema de saúde, ainda que precária ou eventualmente. A execução das atividades básicas da enfermeira depende contudo de condições facilitadoras que valorizam estas ações.
Neste estudo, portanto, discutimos esta tese, a sua antítese, buscando construir uma síntese sobre a metodologia da assistência de enfermagem, com base no discurso dos profissionais e na literatura pertinente. É nosso propósito apontar os impasses e as perspectivas desta metodologia enquanto instrumento da produção profissional.
A INVESTIGAÇÃO
Interessava-nos para o alcance do propósito desta pesquisa as informações provenientes de enfermeiras e docentes que atuassem junto a clientes. Elaboramos um questionário que contemplasse a caracterização da população e a descrição pelas enfermeiras de seu processo de trabalho cotidiano.
Intencionalmente não utilizamos expressões como metodologia da assistência ou processo de enfermagem, entre outras similares. Isto porque queríamos captar aspectos do cotidiano e não o conhecimento referente as teorias de enfermagem. CRUZ et al (1993) verificaram em seu estudo que os depoimentos sobre a assistência de enfermagem por vezes assumem um caráter mítico, indicador de fé e não de ciência. Assim, buscamos informações sobre o que a enfermeira faz no seu dia-a-dia, segundo as condições de seu trabalho e da sua formação; ao invés do que lhe foi determinado fazer, independente dessas mesmas condições.
Com o objetivo de identificar os nexos que dificultam ou facilitam a implementação da metodologia assistencial, buscamos planejar a análise dos depoimentos em função da tese (taylorismo) e da antítese (metodologia da assistência) para a elaboração da síntese.
A partir dos questionários preenchidos procedeu-se uma revisão e codificação dos mesmos, segundo a tese e antítese previamente construídas. A discussão foi realizada mediante a comparação constante dos dados entre si e a literatura profissional.
Nossa amostra foi constituída por onze enfermeiras e um enfermeiro das regiões Sudeste e Nordeste, alunas de pós-graduação, sendo sete de cor branca, três pardas, uma preta e uma não declarou. Quanto ao tempo de formadas, a maioria tem mais de 10 anos e especialização na área de Enfermagem Médico-Cirúrgica. Dez enfermeiras atuam no cuidado direto ou supervisão do mesmo. Duas declararam atuar em pesquisa e ensino de graduação. O tempo majoritário de atuação foi de 1 a 5 anos.
O perfil demográfico de nossa amostra indica um grupo homogêneo no que se refere principalmente a formação acadêmica, área de especialização e atuação.
O MÉTODO DE TRABALHO ALIENADO (TAYLORISMO)
Em dez depoimentos pudemos verificar que as atividades administrativas e de supervisão da equipe são as mais relacionadas. As atividades que aproximam a enfermeira do cliente são fragmentadas e geralmente implicam em algum tipo de risco ou complexidade o que, no nosso entendimento, constitui uma ação fragmentada na qual não se tem controle sobre o produto final.
Pela análise destes depoimentos podemos relacionar como atividades do cotidiano das enfermeiras a elaboração da escala de trabalho da equipe de auxiliares; o planejamento, a coordenação e a supervisão das atividades e do pessoal; e a organização ou suprimento do setor quanto a pessoal, material de consumo e permanente.
As atividades relacionadas corroboram a nossa tese de que o taylorismo constitui o método de trabalho do nosso cotidiano profissional. Este fato pode não constituir nenhuma novidade, mas é a partir da denúncia, da tomada de consciência, do conhecimento da realidade que poderemos transformá-la.
Quanto às determinantes do trabalho alienado, pudemos identificar nos depoimentos aspectos referentes à organização do trabalho e à falta de consenso sobre as atividades profissionais.
Quanto à organização do trabalho, há referências ao tempo, à falta de apoio para a execução destas atividades e ao número excessivo de incumbências de natureza administrativa. Há referências ainda ao número reduzido de auxiliares de enfermagem e, principalmente, de enfermeiras, além da falta de treinamentos periódicos. Não obstante as determinantes institucionais, foi identificada uma na própria profissional que seria o compromisso, caracterizado por uma postura mais atuante e pela continuidade das ações prescritas.
Quanto à falta de consenso sobre as atividades profissionais, vemos que esta categoria aparece nos depoimentos como falta de padronização da metodologia, falta de padronização das atividades e ausência de protocolos que unifiquem as condutas frente aos problemas de saúde.
O MÉTODO DE TRABALHO ARTESANAL: METODOLOGIA DA ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM ENQUANTO RESISTÊNCIA
Para tornar compreensível a nossa análise, utilizaremos as atividades de enfermagem que constituem a metodologia da assistência como subcategorias de investigação. Assim, organizamos os depoimentos conforme as referências ao que interpretamos como histórico, diagnóstico, prescrição e avaliação do resultado.
Quanto ao histórico de enfermagem, verificamos que esta atividade aparece em dois depoimentos como visita diária e exame físico de rotina e diálogo com o cliente. Não há referência a nenhum modelo, roteiro ou impresso que possa orientar e sistematizar a coleta de informações junto ao cliente e, desta forma, permitir o estabelecimento de uma relação dialógica da enfermeira com seu cliente.
O histórico de enfermagem, mais do que um impresso, é um processo organizado e sistemático de coleta de dados para análise do estado de saúde do cliente, elemento-chave para a execução das demais atividades de enfermagem (IYER et al, 1993). Por meio do histórico, a enfermeira inicia e mantém a relação terapêutica com seu cliente. Os resultados deste estudo revelam entretanto que o histórico (entrevista e exame físico) não é realizado plenamente ou então só parcialmente, por poucos e de forma não-sistematizada.
Mas, ainda que precariamente, o histórico, ou parte dele, é realizado tendo em vista que sem ele faltam subsídios para quem pretende diagnosticar, prescrever e avaliar. A passagem para o modelo artesanal vai exigir o desenvolvimento desta habilidade uma vez que sem ela não se inicia o processo de trabalho.
Quanto ao diagnóstico de enfermagem, cabe observar que um único depoimento fez referência ao levantamento de problemas do paciente.
No Brasil, predomina o conceito de Wanda Horta que considera o diagnóstico como identificação das necessidades afetadas e determinação do grau de dependência, mas uma observação não sistematizada permite-nos afirmar que este modelo não se mostrou operacional. Na prática, conforme evidenciado pelo depoimento colhido neste estudo, ocorre o levantamento de problemas, de sinais e sintomas, de equipamentos, de procedimentos, entre outras situações.
O modelo de diagnóstico, quando utilizado, é biomédico e busca principalmente identificar a existência de sinais indesejáveis. Enquanto parte de um processo artesanal, a utilização do diagnóstico propicia tanto o desenvolvimento da habilidade intelectual dirigida para um fazer reflexivo, intencional, quanto do conjunto de conhecimentos de determinada profissão. Os diagnósticos são constituídos pelos fenômenos que o profissional deve identificar e tratar com autonomia e independência.
Quanto à prescrição de enfermagem, esta foi certamente a mais relacionada uma vez que a execução de determinados cuidados pode ser compreendida como tal. Assim, verificamos que os depoimentos fazem referência ao cuidado dos clientes graves, à administração de quimioterápicos, à orientação e supervisão de cuidados realizados pelo cliente, à realização de técnicas (punção venosa, aspiração, etc), a esclarecimentos sobre a doença, aos curativos e ao atendimento de emergências.
As prescrições são, tais como os diagnósticos, parte significativa do conjunto de conhecimento profissional. No modelo artesanal, vemos que as prescrições decorrem dos diagnósticos, principalmente. No contexto onde o embrião deste modelo de organização do trabalho se desenvolve, vemos que a prescrição, o fazer enfermagem, aparece com características do taylorismo, ou seja, com quantidade, mas sem vinculação a uma etapa anterior de trabalho.
Cabe observar ainda que pelos depoimentos pudemos perceber uma preocupação com as ações voltadas para a promoção da saúde e autocuidado. Consideramos estes dados altamente positivos e promissores diante de um momento que nos exige a revisão dos paradigmas da prática profissional.
Quanto à avaliação do resultado da assistência, também conhecida como evolução de enfermagem, verificamos que os depoimentos fazem referência apenas ao registro das ações executadas.
Não nos surpreende este fato uma vez que agir em função de resultados propostos ou metas não é uma prática muito comum para nós. Desde a macro-estrutura até a micro, vivemos um dia após o outro sem condições de antecipar minimamente o futuro. As conseqüências de um viver desta forma podem ser facilmente compreendidas por cada uma de nós.
No método de trabalho artesanal, a avaliação do resultado permite o fechamento do ciclo das atividades e o seu reinício. O registro das atividades, conforme encontrado por nós neste estudo, permite uma avaliação quantitativa, o que não deixa de ser desejável. Mas, uma avaliação qualitativa exige o estabelecimento de resultados para que se possa proceder as comparações.
AS VARIÁVEIS DO MÉTODO DE TRABALHO (ALIENADO/ARTESANAL) DA ENFERMEIRA: MEDIDAS DE ASSOCIAÇÃO.
Uma vez analisados os depoimentos, as informações existentes na literatura e tomando sempre como referência a tese/antítese apresentada neste estudo, interessa-nos discutir a magnitude das determinantes sobre a implementação, ou não, da metodologia da assistência.
Assim, o que apresentamos com base nos depoimentos das enfermeiras que compõem a nossa amostra é o valor observado sobre as atividades referentes ao histórico, diagnóstico, prescrição e avaliação do resultado; enquanto consideramos no discurso teórico profissional o valor esperado.
A razão entre o valor observado e o valor esperado representa a medida de realização da metodologia da assistência no grupo de depoentes em relação ao grupo teórico. Idealmente, esta razão deveria ser igual a 1 (um). Porém mais do que um número, buscamos uma tendência.
A discrepância existente entre o valor observado (prática) e o valor esperado (teoria) fizeram-nos considerar que o discurso sobre a metodologia de enfermagem, enquanto instrumento da nossa produção profissional, tem contribuído para a dissimulação da realidade, constituindo-se, portanto, num discurso ideológico. Assim, representa uma consciência parcial, ilusória e enganadora para fins de dominação de um grupo social (profissional, corporativo) sobre outro (usuários, auxiliares de enfermagem) (COTRIM, 1993).
Caso fosse este discurso, um discurso construído a partir de uma teoria descritiva ou prescritiva, teríamos um valor observado mais próximo do valor esperado. Queremos afirmar que se as atividades de enfermagem que constituem o método de trabalho fossem uma prescrição teórica compreendida pelo grupo executor, alunas professoras e enfermeiras, elas fariam parte do cotidiano profissional, independentemente das condições estruturais.
Como exemplo, citamos a Medicina. Esperamos que um médico seja capaz de diagnosticar e tratar doenças em seres humanos. Tanto na faculdade, quanto no Sistema de Saúde, ele deverá realizar uma anamnese, fazer o diagnóstico, identificando a doença, prescrever e avaliar o resultado da terapia. Estas atividades são ensinadas e treinadas ao longo da sua formaçãoacadêmica, são executadas no seu cotidiano profissional e regulamentadas pelas leis profissionais, em qualquer lugar do mundo, em qualquer cultura ou condição. Enfim, estas atividades são reconhecidas como instrumento de produção pelos próprios profissionais e pelos usuários.
Para caracterizar o conteúdo ideológico do nosso discurso sobre a metodologia da assistência, observamos que a sua lógica desenvolve-se sobre lacunas, omissões, silêncios e saltos. Este discurso permanece a revelia da própria realidade vivida pelos que o disseminam.
Assim, ocultamos a nossa fragilidade para diagnosticar e tratar as respostas humanas de uma forma autônoma e independente, ao invés de revelar que não desenvolvemos estas habilidades nem nas Escolas, nem nos Serviços. Não revelamos também que nos faltam condições estruturais para sua implementação. Falseamos para nós mesmas e para os nossos clientes a existência de uma ciência que ainda está para ser teorizada, ao invés de esclarecer que estamos buscando uma alternativa que não seja apenas seguir as ordens médicas relacionadas ao tratamento da doença. Enfim, escondemos de nós mesmas as nossas fragilidades para não descobrirmos o nosso potencial e sermos responsabilizadas socialmente por ele.
Nós nos encontramos firmemente estabelecidas num modo de prática profissional alienado, caracterizado pelo taylorismo, pela fragmentação das atividades, enfim, pela total ausência de controle sobre o produto do nosso exercício profissional. Entretanto, há indícios de um modo de trabalho artesanal, caracterizado pela realização de algumas atividades, de forma descontinuada e individual, não podendo ser ainda compreendido como um método de trabalho processual.
Mas, por que a persistência no taylorismo? Há um tempo atrás responderíamos a esta questão citando MENZIES (s.d.). Esta autora, em seu excelente estudo sobre a prática de enfermagem, apontou a ansiedade e o medo gerados pela relação enfermeira-paciente como desencadeantes de mecanismos de defesa que, por sua vez, cristalizam-se no modo de funcionamento das organizações. Ainda que concordemos com a autora sobre a natureza estressante do nosso trabalho, discordamos quanto à afirmação de que este estresse é a causa do parcelamento do trabalho de enfermagem e do conseqüente distanciamento entre enfermeira e cliente.
Com base nas nossas observações e no estudo de PITTA (1991), consideramos que é a forma de organização fragmentada do nosso trabalho de enfermagem que conduz a fragmentação do nosso saber e a destruição do nosso envolvimento afetivo e intelectual com a nossa clientela, com o nosso trabalho, tornando a nossa relação profissional fria, monótona e apática. PITTA verificou que quando há condições para o desenvolvimento do modo de trabalho artesanal, isto é, de uma forma de trabalho não alienada, acontece a realização do indivíduo.
Em síntese, com base no que foi anteriormente discutido, consideramos que o método de trabalho da enfermeira é alienado, caracterizando-se pelo exercício de atividades gerenciais dirigidas para a implementação da assistência médica. A execução deste método não acontece sem conflitos. Os conflitos devem-se à falta de consenso sobre as atividades básicas da profissão e à mudança de paradigma (biomédico x holismo) e modelo institucional (Sistema Único de Saúde - SUS).
Conforme observam AGUIAR; SANDOVAL (1993), as situações de passagem de um paradigma (visão de mundo partilhada por uma comunidade científica e expressa por meio do trabalho teórico) a outro não são fáceis e envolvem principalmente uma mudança de mentalidade, mais do que raciocínio rigoroso ou experiência.
Assim, passar do modelo taylorista para o modelo artesanal de produção de enfermagem implica numa mudança de mentalidade no sentido de privilegiar as atividades de diagnóstico, prescrição e avaliação do resultado que propiciam a relação terapêutica enfermeira-cliente, enquanto que a municipalização do Sistema de Saúde implica numa mudança no modelo de atendimento, visando uma relação interativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apontar os impasses e as perspectivas na utilização da metodologia da assistência de enfermagem implica em analisar este momento histórico que vivemos. Estamos na virada do milênio, vivendo fenômenos que acontecem mais rapidamente do que conseguimos elaborar.
Estes fenômenos estão mostrando a necessidade de mudanças no sentido do holismo, da Atenção Primária em Saúde, do pensamento crítico, da liberdade e da solidariedade humana. A sociedade está exigindo de nós, enfermeiras, estratégias para superar a compartimentalização da pessoa, para promover a Saúde, para combater a miséria intelectual e para propiciar o encontro terapêutico com a nossa clientela.
A METODOLOGIA DA ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM: IMPASSES
Quanto aos impasses a serem superados, as enfermeiras que colaboraram neste estudo com seus depoimentos apontaram principalmente a falta de recursos humanos e de recursos materiais.
Esses e outros impasses poderiam ser arrolados e, provavelmente, concordaríamos com todos eles. Mas, destacamos para nossa reflexão, diante do que discutimos até o momento, o discurso ideológico sobre a metodologia da assistência de enfermagem. Este, no nosso entendimento, constitui o principal impeditivo tanto da utilização da metodologia da assistência quanto da sua rejeição como forma de organização do trabalho.
A falta de coerência e congruência entre o nosso discurso e a nossa prática não nos têm permitido avançar na definição das atividades que realmente constituem, ou devem constituir, a nossa prática profissional.
A METODOLOGIA DA ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM: PERSPECTIVAS
O contexto internacional, seja pelo projeto coordenado pelo ICN, seja pela proposição da Organização Mundial de Saúde de Saúde para Todos, mostra-nos o caminho das atividades de enfermagem enquanto uma forma de Ser, Saber e Fazer Enfermagem.
O Projeto sobre Classificação Internacional da Prática de Enfermagem denunciou para nós que há muito a ser construído se quisermos nos firmar definitivamente enquanto profissão. E nós não temos o direito de negar às pessoas do futuro o direito de serem enfermeiras ou de serem cuidadas por enfermeiras.
Mas, para que este conhecimento seja construído e possamos alcançar a nossa finalidade social, garantindo que a Saúde seja um direito de todos e um dever do Estado, faz-se necessário remover dificuldades conjunturais, assim como operacionalizar ações que traduzam em práticas institucionais (escolas e serviços) as atividades constituintes do método de trabalho artesanal, visando a promoção da saúde da clientela.
Neste sentido, vemos que no Brasil a implantação e/ou implementação eficaz do Sistema Único de Saúde - SUS favorece a implantação/implementação das atividades de enfermagem, pois o modelo assistencial preconizado pelo SUS deve garantir os princípios de integralidade, universalização, eqüidade da assistência e controle social da população (BARROS; SILVA, 1990; MOURAO, 1993).
Um outro aspecto que merece destaque entre as perspectivas é o engajamento da Associação Brasileira de Enfermagem - ABEn no projeto do ICN. Esperamos que doravante a ABEn promova com regularidade as discussões sobre o tema e crie uma Comissão com o fim específico de coordenar estudos e atividades nesta área.
Merece destaque ainda o novo currículo mínimo de enfermagem. Este currículo oferece uma oportunidade para a discussão dos paradigmas e modelos de nossa prática. Sugerimos inclusive que as discussões em torno da sua implementação considerem as estratégias necessárias para o desenvolvimento das atividades de enfermagem nas diversas disciplinas e cenários de atuação, explicitando o modelo adotado para diagnóstico de enfermagem, principalmente.
As perspectivas dadas pelo contexto sociopolítico parecem-nos favoráveis às atividades de enfermagem dentro de um modelo processual, tendo em vista as profundas necessidades de saúde da nossa população. Resta-nos a opção de atender ou recusar este anseio e direito da sociedade.
Se optarmos pelo atendimento e assumirmos o modelo artesanal de produção, será necessário re-ver nosso conhecimento (histórico e diagnóstico) e prática atual (prescrição e avaliação) para indivíduos, famílias e comunidades, tanto sadios quanto doentes.
Será preciso também re-fazer ou re-organizar nossos conhecimentos. Re-ensinar e re-aprender, assim como re-pensar estratégias para a realização das atividades com qualidade e baixo custo (consulta de enfermagem, visita pré e pós-operatória, históricos auto-aplicados, entre outras) pois as dificuldades conjunturais do taylorismo continuarão existindo e resistindo.
Caso optemos pela permanência no modelo taylorista, contrário a filosofia holística e do SUS, poderemos, em breve tempo, deixar definitivamente a assistência direta para os auxiliares, técnicos e agentes de saúde e nos tornarmos, finalmente, gerentes de unidades de saúde. Neste dia, deixaremos para outros a Enfermagem e abraçaremos a administração de empresas.
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This lecture was presented at the X Enf Nordeste, Salvador, Brazil, 1994