ESTUDO DE CASO
Manejo familiar da criança transplantada com avós cuidadores: estudo de caso
Ana Márcia Chiaradia Mendes-Castillo1, Regina Szylit Bousso1, Luciana Rodrigues Silva2
1Universidade de São Paulo
2Universidade Federal da Bahia
RESUMO
Objetivo: Conhecer a experiência de manejo familiar de uma criança submetida a transplante hepático quando os avós também são cuidadores, à luz do Family Management Style Framework.
Método: Estudo de caso. Utilizou-se o referido modelo como arcabouço teórico e análise temática como método analítico. Os dados foram coletados a partir de entrevistas e análise de prontuário.
Resultados: A família define o transplante como ameaçador e aponta os conflitos existentes entre mãe e avós, sem saber como agir. As consequências refletem o medo e a incerteza que permeiam o cotidiano familiar.
Discussão: A avaliação permite discutir a influência e o papel dos avós quando um de seus netos é acometido por uma doença grave.
Conclusão: A utilização de modelos teóricos pode ajudar no planejamento de intervenções específicas, e mais estudos são necessários para compreensão da experiência dos avós quando seus netos estão enfermos.
Descritores: Família; Enfermagem Pediátrica; Transplante de Fígado.
INTRODUÇÃO
A sociedade atual demonstra maior interesse em conhecer o manejo familiar em variadas situações de doença. Manejo familiar pode ser definido como “o papel da família enquanto responde ativamente à doença e diferentes situações de cuidado à saúde”(1).
O paradigma teórico chamado Family Management Style Framework – FMSF(1) - foi desenvolvido para auxiliar os profissionais de saúde a analisar e avaliar estilos de manejo familiar em doenças crônicas. O modelo possui três dimensões principais: definição da situação, comportamentos de manejo e consequências percebidas.
Definição da situação é como a família percebe a criança e a doença. Comportamentos de manejo incluem os princípios a partir dos quais as famílias se baseiam para desenvolver uma rotina de administração da enfermidade. As consequências percebidas são definidas como os resultados reais ou esperados que moldam os comportamentos e afetam a situação(1).
O FMSF tem sido aplicado, tanto no Brasil quanto internacionalmente, em diferentes situações de doença. Os resultados reforçam que ele pode ser utilizado com sucesso na avaliação das famílias de crianças com doenças crônicas e permite planejar intervenções personalizadas(2-6).
No contexto do transplante pediátrico, um recente artigo nacional abordou a experiência de manejo familiar de uma adolescente transplantada com FMSF. A pesquisa encontrou dados importantes sobre a dificuldade de adaptação da família e da jovem frente às demandas que os cuidados cotidianos com o transplante requerem, evidenciando o impacto da doença nas rotinas familiares e a importância do suporte(6).
O referido estudo converge com a literatura referente à experiência familiar no contexto do transplante pediátrico, reforçando o caráter incerto e instável da vida familiar e da urgente necessidade de suporte em todos os momentos, não apenas durante a internação e cirurgia(7-8).
No entanto, percebemos que os estudos têm avaliado o manejo em contextos familiares nucleares, isto é, incluindo apenas pais e filhos. Sabe-se que, na sociedade brasileira, a participação e inclusão de outros membros da família no cuidado, em especial os avós, é cada vez maior e sua influência no manejo familiar é expressiva(9).
Este estudo de caso é realizado com o objetivo de conhecer o manejo familiar da criança transplantada quando os avós são cuidadores, de acordo com o FMSF(1).
MÉTODO
Trata-se de um estudo de caso qualitativo. Um estudo de caso é “[...]uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto”(10).
Este artigo é um recorte de uma pesquisa que teve como propósito conhecer a experiência de manejo familiar no transplante hepático pediátrico(11). Para a pesquisa primária, foram realizados quatro estudos de caso de famílias que tinham um filho que havia recebido o transplante há pelo menos um ano e que realizavam o acompanhamento pós-operatório no ambulatório de gastropediatria de um hospital escola de Salvador (BA).
O caso aqui apresentado é da família do Gustavo (nome fictício). Ela foi escolhida por indicação da equipe médica, que relatava frequentes conflitos entre a mãe e o avô da criança. Gustavo, de cinco anos, é filho único de S., 24 (mãe), e de Ad., 26 (pai). Recebeu o transplante hepático intervivos (mãe doadora) em dezembro de 2008. Seus pais terminaram o relacionamento logo após o nascimento e não têm mais nenhum contato. Gustavo mora com a mãe e é cuidado também pelos avós paternos, E., 57 anos (avó), e A., 58 anos (avô), aposentados. S. trabalhava como vendedora, mas se afastou ai para se dedicar em tempo integral à maternidade. Sua renda se restringe à aposentadoria que conseguiu para ele em virtude da doença. Apesar de ter três irmãos mais velhos, S. não tem contato com nenhum. Com relação ao seu pai, não conversam mais devido a uma briga no passado, e sua mãe faleceu há cinco anos.
Participaram do estudo a mãe e o avô paterno. Destaca-se que ambos consentiram em participar assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (protocolo CEP 754/2008). Os dados deste caso foram coletados em outubro de 2011.
Conforme preconizado pelo estudo de caso, foram utilizados múltiplos pontos e estratégias de coleta de dados. Tal abordagem é fundamental para garantir a profundidade necessária ao estudo, a inserção do caso em seu contexto e maior credibilidade aos resultados(10).
Foram realizados três momentos de coleta de dados:
Os encontros foram realizados individualmente e marcados nas datas convenientes aos participantes, gravados e transcritos na íntegra logo após sua realização.
Utilizou-se também a coleta de dados documentais como estratégia, por meio dos prontuários. Esse procedimento ocorreu, entre o primeiro e o segundo momentos, para complementar e aprofundar o conhecimento do caso e fornecer subsídios para melhor direcionamento da entrevista e eventuais esclarecimentos necessários.
A análise dos elementos foi pautada na análise temática, forma de reconhecimento de padrões dentro dos dados, em que os temas que emergem se configuram em categorias(12). Dentro dessa avaliação existem diferentes formas de abordagem, entre as quais podem-se destacar a dedutiva, baseada em modelos de códigos previamente determinados – chamados de template-; e a indutiva, guiada pelos dados. Neste estudo, o método escolhido foi um modelo híbrido, que incorpora tanto a dedutiva quanto a indutiva(12). Sendo assim, primeiramente analisam-se os dados indutivamente, gerando códigos e temas iniciais, e posteriormente aplica-se o template (esta pesquisa utilizou o modelo teórico FMSF) com o propósito de identificar unidades de texto significativas também de forma dedutiva.
RESULTADOS
Quando Gustavo tinha um ano de idade, em uma consulta de rotina em Salvador, o pediatra detectou hepatomegalia. Fez exames, mas como nada foi encontrado, a investigação foi interrompida. Aos quatro anos, o avô percebeu manchas espalhadas pelo corpo de Gustavo e um aumento de seu abdome. Levou-o ao hospital e a equipe médica decidiu interná-lo para investigação. Com 15 dias de internação, foi confirmado o diagnóstico de Síndrome de Budd-Chiari e descobriu-se a necessidade de realização do transplante hepático.
Após duas semanas internado, Gustavo recebeu alta e foi encaminhado para São Paulo para iniciar o acompanhamento pré-operatório. A mãe estava trabalhando e não conseguiria dispensa em tempo hábil para ir com o filho. Por esse motivo, a família decidiu que a avó o acompanharia em São Paulo.
Vinte dias após a alta, Gustavo e a avó foram para São Paulo. Sua mãe foi liberada do trabalho vinte dias depois e viajou para São Paulo, dando início aos exames para verificar a probabilidade de ser a doadora. O avô permaneceu em Salvador durante esse período, mantendo contato telefônico com frequência para saber sobre o estado de saúde do neto. O pai não compareceu nenhuma vez ao hospital.
Durante três meses, avó, mãe e Gustavo ficaram em São Paulo tomando as providências necessárias para viabilizar o transplante intervivos e fazendo o preparo pré-operatório.
Em 17 de dezembro de 2008, o transplante hepático intervivos foi realizado tendo a mãe como doadora. A avó acompanhou sozinha a recuperação de Gustavo e da mãe em São Paulo.
Em março de 2009, Gustavo, mãe e avó retornaram à Bahia. Desde então, ele realiza os acompanhamentos periódicos em Salvador e em São Paulo.
Na primeira consulta ao ambulatório em Salvador, ele foi encaminhado para receber especial atenção psicológica e psiquiátrica. Os acompanhamentos foram todos interrompidos dois meses depois, por solicitação da mãe, à revelia dos avós. Ela recusou-se a dar explicações acerca dos motivos que a levaram a tomar a decisão pelo encerramento. A partir daí, começaram a surgir conflitos cada vez mais intensos entre ela e os avós a respeito de como cuidar de Gustavo.
Em dezembro de 2009, Gustavo contraiu varicela e teve uma recuperação longa e difícil, de cerca de três meses. Para a mãe, a doença dele era sua culpa e isso trouxe sentimentos de ineficácia, fazendo-a pensar que não estava conseguindo cuidar do filho de maneira satisfatória.
S. parou de trabalhar em janeiro de 2010 para dedicar-se exclusivamente a Gustavo. Os dois mudaram-se para uma casa distante dos avós e o contato restringiu-se aos finais de semana ou quando a mãe solicita.
Gustavo encontra-se com a saúde estável, indo à escola, mas, segundo o avô, perdeu o primeiro ano devido às frequentes consultas.
Experiência de manejo familiarDefinição da situação
Gustavo ocupa um papel central na vida da mãe e dos avós. Por ser o único filho e neto, as atenções estão naturalmente voltadas para ele. Com a doença, os cuidados e a vontade de protegê-lo ainda mais fazem com que a família o defina como uma criança frágil e que necessita de muito zelo e investimento de tempo. Por isso, consideram impossível ter uma vida normal.
Por mais que a gente saiba que ele não vai poder ter uma vida normal e por isso nem a gente, mesmo assim a gente espera que ele possa ser pelo menos um pouco normal. (Avô)
Para a família, a doença de Gustavo é séria, grave, imprevisível e de prognóstico incerto. O transplante é visto como a preservação de sua vida, por isso deve-se ter cuidado e controle rigoroso, pois qualquer distração pode significar a perda de Gustavo.
Com ele assim, precisa ter muito cuidado com ele. A gente nunca sabe o que vai acontecer, a doença é séria, é um transplante! Então, precisa olhar mesmo. (Mãe)
Por definirem a doença como uma condição séria e ameaçadora, os familiares de Gustavo ainda consideram difícil a adaptação e o manejo dos cuidados. Não estão conseguindo se organizar para lidar com as demandas da doença e a mentalidade de manejo gira em torno das dificuldades que enfrentam para cuidar dele.
Para a gente, estar ali todo dia nos cuidados é muito difícil, frequentemente pesado demais. Requer bastante tempo e tem muita coisa dele que é complicada de entender, de fazer ainda... Se você não se organizar muito e direitinho, não dá conta, não. (Avô)
Não existe dentro da família alguém com a capacidade de liderá-la nessa experiência. Segundo os avós, a mãe deseja o apoio deles, mas apenas nos momentos convenientes, como levar nas consultas e pagar a escola. Eles, por sua vez, estão descontentes com a forma como o neto vem sendo cuidado, mas também não tomam iniciativas para tomadas de decisões que julgam importantes, ficando divididos por não saberem ainda ao certo qual espaço e papel ocupar. Pressionam a mãe para que ela decida, mas da forma que eles querem.
Pra você ter uma ideia, durante a investigação da doença dele, foi solicitada uma avaliação da genética, pra ver a genética dele, até também pra ela saber e cuidar se ela fosse ter outros filhos; a gente tava fazendo tudo certo, num lugar bom e no meio da avaliação ela mandou parar. E... a gente teve que parar a investigação, porque ela é a mãe dele. E isso... só de pensar... é muito difícil! Ela não permite continuar, pegou toda a papelada, ficou chateada e pediu para parar. Como é que um avô entende isso? É muito difícil... Não dá. (Avô)
Na família de Gustavo, o maior desafio enfrentado são os frequentes conflitos familiares entre a mãe e os avós. Tal situação existe principalmente porque os avós, muito presentes na formação e nos cuidados, discordam fortemente das crenças e valores de sua mãe, e isso provoca descontentamento. Os desentendimentos são constantes e trazidos à tona, sobretudo pelos avós, que defendem que o neto deveria receber muito mais atenção.
A mãe dele e nós temos visões muito diferentes sobre o que é criar um filho. Eu não concordo com o jeito que ela faz, ela não prioriza ele quando tem que priorizar; filho não é só pôr no mundo, ainda mais ele. (Avô)
Com a tensão resultante dos conflitos familiares, os vínculos estão fragilizados. O relacionamento da mãe com o pai de Gustavo é inexistente. O contato paterno é pequeno, quase que exclusivamente por telefone. A tensão entre a mãe e os avós é tanta que atualmente mantêm contato essencialmente por conta de Gustavo. O relacionamento e diálogo existentes entre eles baseiam-se na troca de informações acerca de aspectos relacionados à doença.
Hoje é um relacionamento... praticamente... voltado só pra ele. Não dá pra ter mais proximidades, porque por uma questão de... costumes, talvez... não dá pra mais nada. Se continuamos conversando, é por conta dele. Nós temos opiniões bem diferentes da mãe dele. Mas a gente tem que virar a cabeça e continuar o relacionamento, porque é por conta dele. Imagina você uma criança, com cirrose hepática, demorar pra ir no médico... A gente fica preocupado com a saúde dele, entendeu? Mas basicamente a gente entende que o nosso papel é só estar lá pra dar todo o apoio, porque a mãe é dele. Mas a gente se dói por dentro. (Avô)
Comportamentos de manejo
S. teve que aprender a se tornar mãe de uma criança com uma condição grave, o que exigiu dela transformações muito grandes. O amor pelo filho é evidente. Ela expressa seu sentimento de amor e zelo quando o define como precioso, seu maior e único bem.
Ameaçada pelas incertezas decorrentes da doença, teme perdê-lo; por isso, protegê-lo é sua prioridade. Com o tempo e o avanço do percurso da doença, ela acredita que, para que possa desempenhar seu papel de mãe, tem de abrir mão de seu trabalho.
Eu vivo em função disso. Eu vivo em função do transplante dele agora e acho que é assim que tem que ser, tanto é que eu estou até me desligando do trabalho agora pra ficar só com ele. Eu quero e preciso ficar com ele. (...) Tudo que eu faço é em prol dele, em geral. (Mãe)
Isolada do convívio de sua família e sem saber onde buscar recursos, a mãe encontra nos avós uma fonte importante de suporte quanto aos cuidados para com o filho, mas que tem como consequência os conflitos existentes.
Para os avós, Gustavo e os cuidados com sua doença têm de ser prioridade em relação aos outros aspectos da vida familiar, e organizaram sua rotina para isso. Contudo, chateiam-se por acreditarem que a mãe não faz o mesmo.
Eu acho que quando a gente tem um filho, as prioridades têm que mudar. Ainda mais ele! Ela não tem prioridades. Você precisa estabelecer prioridades, você precisa deixar de fazer alguma coisa pra você, porque o seu filho precisa mais. E não é isso que acontece. (Avô)
Os avós modificaram sua rotina para dar mais atenção a Gustavo porque julgam necessário. Definindo a cirurgia do transplante como a salvação da vida dele de uma condição muito séria, têm como alvo controlar sua saúde ao máximo, ainda que isso implique em mudanças dos próprios costumes.
Eu estou sempre, sempre controlando ele. Não levo ele no parque, porque é uma cirurgia! Tem que ter toda cautela. Ele não estaria vivo se não tivesse feito, então eu vou colocar isso em risco fazendo ele fazer o que ele quer? Então, a gente tem que estar sempre controlando. (Avô)
No entanto, quando falam da mãe, os avós somam exemplos para atestar que ela não toma decisões acertadas quanto aos cuidados com o filho, enquanto afirmam que querem ajudar mais e prestar mais suporte no que for necessário.
Na escola, ele está atrasado. A gente faz o possível pra ver se ele acompanha, mas ele está atrasado, ele falta muito por causa das consultas... Complicado. Queria mudar de escola, queria uma escola mais perto da minha casa, porque assim talvez ele não precisasse ficar tendo que faltar tanto, mas a mãe não quer, a mãe quer que eu pague a escola que tem perto da casa dela, e eu pago. Mas não é isso que eu queria, queria ficar mais perto dele, pra controlar mais, olhar melhor. (Avô)
Consequências percebidas
Um ano após o transplante, a família tem o foco voltado às debilidades e limitações que a doença impôs a Gustavo e a todos. Sua doença é o mais importante, requer grande investimento de tempo, e não existe equilíbrio entre o manejo da doença e as demais atividades.
Ao olhar para as limitações decorrentes da doença, os familiares acreditam que o transplante torna a vida muito difícil, parecendo, por vezes, que os controla. Não conseguem assumir as rédeas do cuidado e se tornaram desnorteados em relação à organização das demandas da enfermidade e seu equilíbrio na rotina. Pensam sobre o assunto o tempo todo, são controlados pelas incertezas decorrentes dele e creem que não podem levar uma vida normal.
Tem sido... É... uma vida bastante atribulada, de bastante investimento de tempo. Não tem sido nem um pouco fácil. (...) A gente espera que mais pra frente isso melhore, por mais que a gente saiba que ele não vai poder ter uma vida normal, e por isso nem a gente... Mesmo assim, a gente espera que ele possa ser, pelo menos, um pouco normal. (Avô)
A família está desestruturada. Temerosos quanto à saúde de Gustavo e impossibilitados de tomar decisões de forma organizada, por não haver mutualidade nem clareza acerca de como agir, ninguém tem vida própria. Todos são controlados pelo medo da perda e pela falta de alguém que assuma maior responsabilidade nas decisões; não conseguem estabelecer um rumo e uma rotina para organizar suas vidas e as demandas da doença.
A mãe vive o presente com medo do futuro. Focando na incerteza da doença e conhecendo seus possíveis desdobramentos, as consultas e o acompanhamento são motivo de preocupação. Teme que algo aconteça com Gustavo e, quando acontece, culpa-se pelo ocorrido, como se a responsabilidade fosse dela. Vive controlada pelo medo de perdê-lo.
Esses dias em casa ele pegou uma catapora! Eu fiquei assim super deprimida... Nossa! Fiquei assim uns quatro dias chorando, como eu fui deixar ele pegar, sabe? e... ele é a única coisa que eu tenho. Muito precioso... Tem dia que eu tento esquecer, mas tem dia que eu vivo olhando pra ele como se fosse o último dia da vida dele. Eu vivo quase todo dia na verdade pensando como se fosse o último dia da vida dele. (Mãe)
S. enfrentou desafios decorrentes de uma jovem que teve de aprender a se tornar mãe solteira, sem o auxílio de sua família e, posteriormente, e a também a ser mãe de uma criança doente, que precisa de cuidados especiais por toda a vida. Conta com o apoio dos avós e os solicita com frequência para ajudá-la, ao mesmo tempo em que deseja assumir maior liberdade e independência nos cuidados.
Eles, por sua vez, enfrentam dificuldades em encontrar a melhor forma de prestar suporte; discordam de tudo o que ela faz e acreditam que ela não o filho da forma adequada. Dessa forma, mãe e avós vivem uma situação na qual ninguém verdadeiramente assume a responsabilidade pelas decisões e organização dos cuidados para com ele.
Como consequência, a família toda vive uma situação caótica, em que conflitos persistentes aumentam a dificuldade de seus membros se organizarem em prol de equilibrar suas vidas e as demandas da doença. Ela é controlada pelo medo, incertezas e confusão decorrentes da experiência de doença nesta fase de seu desenvolvimento.
DISCUSSÃO
É inequívoco que a chegada de uma doença altera o equilíbrio de todo o sistema familiar(13). O enfermeiro deve conhecer a forma pela qual a família procura reorganizar-se para manejar as demandas da doença, a fim de que possa intervir com o intuito de ajudá-la a recuperar o equilíbrio. Nesse cenário, a utilização do modelo de estilos de manejo familiar(2) proporciona o entendimento aprofundado da experiência vivenciada. Neste breve estudo de caso, pudemos perceber que a utilização do FMSF(1) possibilita a compreensão organizada acerca da experiência de manejo também quando membros da família extensa se apresentam como cuidadores.
Olhando para os resultados encontrados e considerando os estilos de manejo familiar propostos por estudo internacional, a família de Gustavo encontra-se “floundering” (caótica)(3).
Nesse estilo, o caos e a confusão são as características dominantes. A definição da situação é negativa em todos os aspectos. A criança é vista como frágil e incapaz de viver como outras crianças da mesma idade. A doença é um episódio trágico.
Em famílias nesse estilo não existe mentalidade de manejo definida; pode-se perceber isto na família de Gustavo. Ela está desorganizada para cuidar dele. A ausência de uma mentalidade de manejo claramente definida influencia nos comportamentos adotados para lidar com a situação(8,14).
A maternidade na adolescência é um período crítico de mudanças que implicam uma série de transformações tanto individual como grupal e familiar. Para estudar, trabalhar ou exercer atividades de lazer, as mães jovens e adolescentes necessitam de ajuda nos cuidados com os bebês(15). Além de todos esses desafios, a mãe de Gustavo teve ainda que aprender a tornar-se mãe de uma criança com uma doença grave, que exige cuidados para o resto da vida. Por não ter mais o suporte do pai e nem dos avós maternos, ela encontrou nos avós paternos o apoio necessário. No entanto, as diferentes perspectivas acerca de como criar e cuidar de Gustavo geram muita tensão e conflito.
Os avós silenciam seu sofrimento porque acreditam que o papel deles na família deve ser apenas o de suporte, ainda que preferissem ter uma participação maior e que não concordem com a forma como Gustavo tem sido educado por sua mãe e também com as decisões que são tomadas por ela em relação à saúde dele. Um estudo que aborda a experiência dos avós quando as mães são jovens já encontrou resultados semelhantes, indicando uma confusão e conflito de papéis dos avós e dos próprios pais em relação a quem vai, efetivamente, assumir a paternidade e a responsabilidade pela criança(15).
No entanto, tais pesquisas enfocam a perspectiva das mães sobre a participação dos avós, não os próprios avós. Não foram encontradas análises na literatura nacional que investigassem a experiência dos avós no contexto de uma doença grave, mas estudos internacionais apontam um sofrimento dobrado(16-17) e relatam ainda um sentimento de impotência porque, devido ao fato de não terem a responsabilidade pela criança, não são a palavra final nas decisões(17).
Pode-se considerar que os avós usualmente não têm sido considerados como uma parte da família que sofre no contexto de uma doença grave. Em avaliações internacionais, há declarações dos avós dizendo que “o verdadeiro sofrimento é aquele que nossos filhos (os pais) estão atravessando. Quem somos nós? Apenas os avós”. Tais falas são poderosas para ilustrar a solidão da experiência, embora os avós estejam frequentemente bem próximos à família nessas situações(16-18).
Como o transplante requer adaptações e ajustes para o resto da vida, a equipe de saúde deveria ver toda a família como unidade de cuidado, e não apenas o paciente(19-20). Para melhor assisti-los nessa experiência, é importante que o profissional tenha entendimento acerca de como a família responde em seu cotidiano ao cuidado com a criança transplantada. Dessa forma, a equipe obtém subsídios para direcionar intervenções específicas à realidade e demandas de cada família(8,19). Este estudo de caso traz a contribuição de que as respostas da família muitas vezes estão diretamente interligadas e são indissociáveis da influência que outros membros da família, antes considerados fora do eixo de atuação dos profissionais por não serem da “família nuclear”, exercem no manejo da doença.
CONCLUSÃO
O caso aqui apresentado trata da experiência de manejo familiar de uma criança doente quando os avós também são cuidadores. Com base nas definições que a família faz acerca da criança, da doença, das suas habilidades para manejo dos cuidados e do apoio que recebe, ela molda seus comportamentos para incorporar o transplante ao cotidiano familiar.
Na família de Gustavo, encontramos que o relacionamento intergeracional conflitante dificulta o manejo da doença, impedindo que a família como um todo se sinta confiante e segura nos cuidados. Neste estágio do ciclo vital familiar, são abundantes as oportunidades de apoio ou conflitos entre as gerações, à medida que se manifestam as práticas de educação e de cuidados de saúde para com os filhos. Os profissionais de saúde devem estar atentos a tais relacionamentos e buscar estratégias para lidar com eventuais conflitos e ajudar a família a buscar conjuntamente a melhor forma para manejar os cuidados com a criança doente.
Nesse caso, ficou evidente que o sofrimento dos avós diante da doença do neto é intenso, e precisa ser considerado pelos profissionais. Estudos são necessários para entender a experiência do avô de uma criança doente em nossa sociedade e cultura, uma vez que a participação dos avós no cuidado tem sido cada vez mais presente nas famílias brasileiras.
Neste contexto, a identificação dos componentes e dimensões propostos pelo FMSF é útil na prática profissional. A utilização de modelos teóricos na avaliação de manejo familiar quando membros da família extensa são cuidadores pode ajudar os profissionais de saúde no planejamento de intervenções específicas a cada família, e deve ser encorajado.
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Recebido: 15/05/2014
Revisado: 03/11/2014
Aprovado: 03/11/2014