ARTIGOS ORIGINAIS

 

Atendimento inicial ao queimado: conhecimento de estudantes de enfermagem: estudo transversal

 

William Campo Meschial1, Magda Lúcia Félix de Oliveira1

1Universidade Estadual de Maringá

 


RESUMO
Problema: A literatura científica tem apontado lacunas no conhecimento de enfermeiros sobre o atendimento às vítimas de queimaduras.
Objetivo: Verificar o conhecimento teórico de estudantes de enfermagem sobre o atendimento inicial ao queimado em unidades de urgência.
Método: Estudo transversal com 107 alunos de enfermagem de quatro instituições de ensino superior da Região Metropolitana de Maringá (PR), utilizando um questionário semiestruturado para coleta de dados. A associação foi avaliada por meio do teste qui-quadrado, considerando nível de significância p≤ 0,05.
Resultados: Apenas 22,4% dos estudantes apresentaram conhecimento satisfatório. Houve associação entre conhecimento satisfatório e pertencer à instituição pública (OR= 3,1; p= 0,01444), ter realizado assistência de enfermagem no atendimento inicial a vítimas de queimaduras (OR= 3,6; p= 0,006530) e ter presenciado o atendimento inicial ao queimado (OR= 2,7; p= 0,03431).
Conclusão: O desconhecimento dos discentes revela a necessidade de repensar estratégias de ensino que promovam melhorias referentes ao conhecimento desses acadêmicos.
Descritores: Queimaduras; Enfermagem em Emergência; Conhecimento; Estudantes de Enfermagem; Educação em Enfermagem.


 

INTRODUÇÃO

Acidentes por queimaduras e suas consequências constituem verdadeiros problemas de saúde pública, visto que as vítimas representam um elevado ônus social e econômico durante o longo período de hospitalização e o processo de recuperação. Estão entre os traumas de maior complexidade e gravidade, pois podem ocorrer consequências importantes - como cicatrizes e outras sequelas físicas - que geram incapacidades, sofrimento psíquico e desfiguração, resultando em longo período de recuperação(1).

Estudos de investigação de conhecimento sobre o atendimento a vítimas de queimaduras realizados na Austrália(2), Holanda(3), Inglaterra(4) e Brasil(5) com profissionais da saúde, incluindo enfermeiros, têm evidenciado lacunas no conhecimento teórico e em suas práticas técnico-assistenciais.

No Brasil, são escassas as investigações que avaliam o conhecimento e a formação de profissionais da saúde para atuação frente ao atendimento a vítimas de queimaduras. Em estudo realizado em um hospital de ensino da Região Noroeste do Paraná, referência regional para o primeiro atendimento a pacientes queimados, verificou-se que a avaliação das queimaduras pelos profissionais era baseada nos parâmetros profundidade e localização das lesões, sem referência à mensuração da superfície corporal queimada (SCQ), dado de suma importância para a definição de condutas e encaminhamentos adequados(6).

Não obstante, lesões relacionadas a queimaduras possuem um elevado impacto epidemiológico. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, estima-se que ocorram aproximadamente 195 mil mortes/ano causadas por acidentes com fogo em todo o mundo, incluindo a mortalidade por queimaduras envolvendo outros agentes(7).

Recentemente, o município de Santa Maria (RS) foi sede de uma tragédia resultante do incêndio em uma casa noturna, que levou 236 jovens à morte imediata e outros 169 à hospitalização por inalação de gases tóxicos (monóxido de carbono e cianeto) e queimaduras. Esse evento evidenciou a alta complexidade que envolve o atendimento às vítimas de queimaduras e a dificuldade dos profissionais no manejo dos casos.

O tratamento adequado ao paciente queimado, incluindo os cuidados iniciais, visa à preservação da zona de estase (área potencialmente viável que circunda a região mais central da lesão), sendo essencial para limitar a progressão da profundidade da queimadura e, consequentemente, sequelas e morte(2).

O atendimento inicial ao queimado (AIQ) é aquele realizado dentro do ambiente hospitalar imediatamente após a chegada do paciente à sala de estabilização, em uma faixa de tempo entre 48 e 72 horas após o trauma. É primordial, nesse momento, interromper o processo de queimadura e minimizar as condições que colocam o paciente em risco de vida(8).

A abordagem inicial à vítima é realizada em unidades de urgência em meio à tensão que permeia diariamente os profissionais desses serviços. O processo de trabalho nesses locais é caracterizado pela possibilidade de atendimento diário e ininterrupto de pacientes gravemente doentes, que necessitam de cuidados imediatos e que apresentam risco de morte(9).

O AIQ deverá sempre ser realizado com rapidez e precisão, por equipe multidisciplinar agindo em sinergia. Os profissionais que realizam esse atendimento, se não possuírem conhecimentos, habilidades e técnicas satisfatórias, podem alterar a evolução e prognóstico do paciente, produzindo agravos secundários, especialmente sistêmicos, ao invés de conduzir as vítimas à cura e reabilitação(8).

Nesse sentido, o conhecimento teórico e a articulação dos saberes como fio condutor para governar práticas em saúde são primordiais ao profissional de enfermagem que atua em situações críticas, incluindo o atendimento a emergências traumáticas em pacientes queimados(10). Assim, a equipe responsável deve pautar sua assistência em princípios científicos estabelecidos, sendo o enfermeiro um dos profissionais responsáveis pela condução do atendimento dos casos mais complexos(8).

A enfermagem é uma profissão que reúne ciência e arte, e por isso possui princípios fundamentais que servem de alicerce no âmbito do seu conhecimento teórico-prático. No que se refere à assistência de enfermagem a pacientes graves, o enfermeiro deverá utilizar-se do raciocínio clínico (formulado a partir da interação entre evidências científicas e experiências acumuladas ao longo da prática profissional) para a tomada de decisão. O conhecimento teórico, entendido como aquele que advém da teoria e da pesquisa, deve ser empregado para fundamentar e melhorar as práticas em saúde(11).

Dentro dessa perspectiva, faz-se necessário verificar o conhecimento teórico de estudantes de enfermagem frente ao atendimento inicial a vítimas queimadas, uma vez que investigações nessa área possibilitarão realizar um diagnóstico do preparo profissional e da qualidade do ensino, fornecendo subsídios para melhorias na formação.

Diante do exposto, objetivou-se verificar o conhecimento teórico de alunos de enfermagem, de instituições de ensino superior públicas e privadas, sobre o atendimento inicial ao queimado em unidades de urgência.

 

MÉTODO

Estudo transversal, conduzido no mês de novembro de 2012, com estudantes de cursos de graduação em enfermagem da Região Metropolitana de Maringá (RMM), no Paraná. A RMM está localizada no Noroeste do estado e conta com 26 municípios e uma população superior a 700 mil habitantes. Três municípios ofertam cursos de graduação em enfermagem: Maringá, Ivatuba e Mandaguari, os quais possuem população de 357.117,  3.008 e 32.658 habitantes, respectivamente(12).

Para seleção das Instituições de Ensino Superior (IES), adotou-se como critério de inclusão possuir turmas de estudantes cursando o último semestre do curso de graduação em enfermagem. Cinco IES preencheram os critérios preestabelecidos; no entanto, em uma delas não se concretizou a coleta de dados, pois seu ano letivo já havia se encerrado.

Das quatro IES selecionadas, três estão localizadas no município de Maringá e uma no município de Ivatuba, com um total de 136 alunos matriculados no último semestre desses cursos.

A população do estudo foi constituída pelos estudantes concluintes - regularmente matriculados no último semestre do curso de graduação em enfermagem no ano letivo de 2012 -, independente do número de disciplinas que estivessem cursando; e presentes em sala de aula na data de aplicação do instrumento de coleta de dados. Dos 136 alunos de enfermagem aptos para a pesquisa, 107 (79,3%) responderam ao instrumento de pesquisa.

As perdas, no total de 29, ocorreram por recusa em preencher o instrumento de coleta de dados (3 – 10,3%), ausência do aluno no momento da coleta de dados (25 – 86,2%) e devolução do instrumento de coleta de dados sem preenchimento (1 – 3,5%) (Figura 1).

 

Figura 1. Fluxograma de seleção das IES com curso de graduação em enfermagem na RMM e dos estudantes de enfermagem matriculados no último semestre dos cursos de enfermagem. Maringá (PR), Brasil, 2012

 

 

Para a coleta de dados, utilizou-se o instrumento para investigação de conhecimento sobre atendimento inicial ao queimado em unidades de urgência, modular e estruturado, autoaplicável, com questões de múltipla escolha, divididas em quatro blocos.  Bloco I: roteiro de caracterização sociodemográfica e socioeconômica, adaptado de Santos(13); Bloco II: roteiro de fontes de informação e situação escolar, também adaptado de Santos(13); Bloco III: roteiro de contato prévio do aluno com a temática e seu grau de interesse pela mesma, elaborado para fins desta pesquisa; e Bloco IV: questionário para análise do conhecimento sobre o Atendimento Inicial do Queimado, elaborado e validado por Balan(5).

O questionário para análise do conhecimento sobre o atendimento inicial do queimado(5) contém 27 questões referentes ao AIQ com três opções de resposta (concordo, discordo, não sei).

O instrumento de pesquisa foi aplicado pelo próprio pesquisador nas quatro IES, nas salas de aula, em um único momento, a fim de garantir maior confiabilidade metodológica ao processo. O tempo de resposta do instrumento variou entre 26 e 31 minutos.

Para a análise das 27 questões de conhecimento, atribuiu-se o valor de um ponto a cada uma delas quando corretamente respondida. A resposta "não sei" foi computada como "incorreta" para proceder às análises estatísticas. O conhecimento foi tratado de forma dicotômica como satisfatório e insatisfatório, e o percentual de acerto maior ou igual a 60% nas respostas obtidas foi considerado satisfatório. Esse parâmetro foi utilizado pelas IES do presente estudo para avaliação dos estudantes.

Os dados foram digitados eletronicamente em planinha do Microsoft Excel®,e posteriormente tratados e analisados pelo programa Epi Info 7® por meio de estatística descritiva, com a apresentação da distribuição de frequência. Para verificar a associação entre a variável resposta-conhecimento com as variáveis socioeconômicas, sociodemográficas, de situação escolar, interesse pessoal e contato prévio com o AIQ, utilizou-se o teste de independência qui-quadrado com correção de Yates quando indicado, com nível de significância p< 0,05. O Odds Ratio (OR) foi empregado para mensurar a magnitude da associação entre as variáveis e seu respectivo intervalo de confiança (IC95%).

A pesquisa foi realizada após prévia autorização da direção das IES e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (COPEP/ UEM), com parecer nº 160.458/2012, de acordo com a Resolução 466/2012(14).

 

RESULTADOS

A amostra compreendeu 107 estudantes de enfermagem, sendo 39 (36%) provenientes de uma instituição pública e os demais (64%) distribuídos em três instituições privadas.

Em relação ao conhecimento teórico dos discentes de enfermagem sobre o AIQ, considerando como conhecimento satisfatório um percentual de acerto igual ou superior a 60%, constatou-se que apenas 22,4% apresentaram conhecimento adequado, sendo que a média de acerto das 27 questões foi de 14,04 ± 3,19, o que corresponde a 51,5% do total.

Conforme apresentado na Tabela 1, verificou-se maior percentual de conhecimento satisfatório quando comparados indivíduos solteiros (23,9%) e casados (15,8%); com renda familiar igual ou superior a cinco salários mínimos (26,9%) e até quatro salários (18,2%); possuir ou não vínculo empregatício (14,6% e 27,3%,respectivamente); residir no município de Maringá (25,0%) ou em outros municípios (16,1%); residir na zona urbana (24,5%) ou rural (7,7%). As variáveis sexo, idade, raça/cor e escolaridade dos pais apresentaram percentuais de conhecimento satisfatório próximos em suas subcategorias. No entanto, considerando um nível de significância de 5%, nenhuma das variáveis sociodemográficas e econômicas apresentaram associação estatisticamente significativa com o conhecimento satisfatório.

 

Tabela 1. Associação univariada do conhecimento satisfatório e variáveis sociodemográficas e econômicas de estudantes de Enfermagem de quatro IES da RMM. Maringá, PR, Brasil, 2012
  Conhecimento         
Variáveis  Satisfatório  Insatisfatório         
  N  %  N  %  Total  OR  IC  p-valor 
Sexo                 
 Feminino  22 22,7 75 77,3 97 1,2 0,2-5,9  0,83785* 
 Masculino  2 20 8 80 10
Idade (96) 
 ≤ 24  12 17,6 56 82,4 68 1 3,1-0,3  0,98045
 25 ou +  5 17,9 23 82,1 28
Raça/cor 
Branca  16 23,5 52 76,5 68 1,2 0,5-3,1  0,71882
Outras  8 20,5 31 79,5 39
Estado civil 
Solteiro  21 23,9 67 76,1 88 1,7 0,5-6,2  0,64412* 
Casado  3 15,8 16 84,2 19
Renda (SM) 
5 ou +  14 26,9 38 73,1 52 1,7 0,7-4,1  0,27861
≤ 4  10 18,2 45 81,8 55
Trabalho 
Não  18 27,3 48 72,7 66 2,2 0,8-6,0  0,12757
Sim  6 14,6 35 85,4 41
Município 
Maringá  19 25 57 75 76 1,7 0,6-5,1  0,31831
Outros  5 16,1 26 83,9 31
Zona Geográfica 
Urbana   23 24,5 71 75,5 94 3,9 0,6-27,5  0,31517* 
Rural  1 7,7 12 92,3 13
Escolaridade Pai (anos)(105) 
8 ou +  18 23,7 58 76,3 76 1,2 0,4-3,3  0,74387
< 8  6 20,7 23 79,3 29
Escolaridade Mãe (anos) 
8 ou +  19 25,7 55 74,3 74 1,2 0,4-3,8  0,70236
< 8  5 21,7 18 78,3 23      
Fonte: Arquivo pessoal dos autores
* Utilizado correção de Yates.

 

Verifica-se na Tabela 2 que, em relação à situação escolar pregressa dos estudantes, aqueles que realizaram a maior parte do ensino médio em escolas particulares e no período diurno apresentaram maior percentual de conhecimento satisfatório (29,5% e 23,7%, respectivamente) em relação aos que o realizaram a maior parte do tempo em escolas públicas e no período noturno. Estudantes que não frequentaram curso pré-vestibular e que prestaram de um a três vestibulares para ingressar no curso de graduação tiveram menor percentual de conhecimento satisfatório. Dos cinco alunos que possuíam outro curso superior, nenhum apresentou conhecimento satisfatório; já entre os que possuíam curso técnico de enfermagem, 30,8% obtiveram conhecimento satisfatório - sendo este percentual de 21,3 para aqueles que não possuíam curso técnico.

 

Tabela 2. Associação univariada do conhecimento satisfatório e variáveis de situação escolar pregressa e atual de estudantes de Enfermagem de quatro IES da RMM. Maringá, PR, Brasil, 2012
  Conhecimento         
Variáveis  Satisfatório  Insatisfatório        
  N  %  N  %  Total  OR  IC  p-valor 
Ensino Médio                 
> Escola particular  13 29,5 31 70,5 44 2 0,8-4,9  0,1403
> Escola pública  11 17,5 52 82,5 63
Turno Ens. Médio 
> Diurno  23 23,7 74 76,3 97 2,8 0,4-21,5  0,55412* 
> Noturno  1 10 9 90 10
Pré-vestibular 
Não  11 20 44 80 55 0,8 1,9-0,3  0,535444
Sim  13 25 39 75 52
Vestibular 
Até 3  19 20,4 74 79,6 93 0,5 1,5-0,1  0,35002* 
4 ou +  5 35,7 9 64,3 14
Outro curso superior 
Sim  --  --  5 100,0 5 0 0 0,49494* 
Não  24 23,5 78 76,5 102
Curso Téc. Enfermagem 
Sim  4 30,8 9 69,2 13 1,6 0,5-5,8  0,67860* 
Não  20 21,3 74 78,7 94      
Instituição                 
Pública  14 35,9 25 64,1 39 3,1 1,3-7,8  0,01444
Privada  10 15,2 56 84,8 66
Período (104) 
Diurno  17 24,3 53 75,7 70 2,4 0,8-7,6  0,13567
Noturno  4 11,8 30 88,2 34
Reprovação em disciplinas 
Não  14 21,9 50 78,1 64 0,9 2,3-0,4  0,86668
Sim  10 23,3 33 76,7 43
Série regular 
Sim  21 21,4 77 78,6 98 0,5 2,3-0,1  0,68776* 
Não  3 33,3 6 66,7 9      
Fonte: Arquivo pessoal dos autores
* Utilizado correção de Yates.

 

A situação acadêmica atual dos estudantes de enfermagem indica associação significativa entre estudar em instituição pública com conhecimento satisfatório (p=0,01444), pois os que frequentam instituições públicas tiveram três vezes mais chances de apresentar conhecimento satisfatório quando comparados aos de instituições privadas. Quase um quarto dos alunos, cujo curso de graduação era ofertado no período diurno, apresentou conhecimento satisfatório e, para aqueles que estudavam no período noturno, o percentual foi de 11,8%. Os que obtiveram reprovação em disciplinas da graduação tiveram pouco mais de 20% de conhecimento satisfatório - resultado próximo ao encontrado entre os estudantes que não tiveram reprovação. Aqueles que estavam na série regular do curso obtiveram pior desempenho se comparado aos que não estavam (Tabela 2).

Em relação ao interesse pessoal dos estudantes e ao contato prévio com o AIQ, todos consideraram esse tema importante para a prática profissional de enfermagem. Conforme apresentado na Tabela 3, discentes que já haviam realizado o AIQ tiveram quase quatro vezes mais chances de conhecimento satisfatório. O fato de já ter presenciado o AIQ resultou em quase três vezes mais chances de conhecimento satisfatório.

 

Tabela 3. Associação univariada do conhecimento satisfatório e variáveis de interesse pessoal e contato prévio com o AIQ de estudantes de Enfermagem de quatro IES da RMM. Maringá, PR, Brasil, 2012
  Conhecimento         
Variáveis  Satisfatório Insatisfatório        
  N  %  N  %  Total  OR  IC  p-valor 
Afinidade pelo AIQ                 
Muita  13 29,5 31 70,5 44 1,2 0,4-3,4  0,72249
Nenhuma/pouca  8 25,8 23 74,2 31
Abordagem teórica do AIQ 
Sim  23 22,8 78 77,2 101 1,5 0,2-13,1  0,87655* 
Não  1 16,7 5 83,3 6
Atividades extracurriculares 
Sim  12 23,5 39 76,5 51 1,1 0,5-2,8  0,7947
Não  12 21,4 44 78,6 56
Realizou AIQ 
Sim  12 40 18 60 30 3,6 1,4-9,1  0,00653
Não  12 15,6 65 84,4 77
Presenciou AIQ 
Sim  16 45,7 35 100 35 2,7 1,1-7,0  0,03431
Não  8 14,3 48 85,7 56
Assistência a queimados 
Sim  12 32,4 25 67,6 37 2,3 0,5-5,8  0,07133
Não  12 17,1 58 82,9 70      
Fonte: Arquivo pessoal dos autores
* Utilizado correção de Yates.


Embora as demais variáveis da Tabela 3 não apresentem diferença significativa, observaram-se maiores percentuais de conhecimento satisfatórios entre os estudantes que possuíam maior afinidade pelo AIQ. Eles informaram que o assunto foi abordado durante a graduação e que realizaram atividades extracurriculares e assistência de enfermagem a pacientes queimados em demais situações.

 

DISCUSSÃO

O setor de emergência é considerado linha de frente no campo de batalha do hospital. É um ambiente característico de trabalho, pois os profissionais de saúde que nele atuam são frequentemente testados com mudanças rápidas e perigosas e situações clínicas e traumáticas altamente complexas que exigem decisões imediatas(15).

Em relação ao atendimento a pacientes queimados, a administração correta dos cuidados iniciais é extremamente importante para conter a progressão das queimaduras e, consequentemente, as sequelas associadas em curto e longo prazo. Porém, o conhecimento geral do atendimento inicial adequado nessa área é universalmente pobre, especialmente entre os trabalhadores de saúde de unidades de urgência(2).

O fato é corroborado no presente estudo, visto o baixo percentual de estudantes de enfermagem que apresentaram conhecimento sobre diretrizes para o atendimento inicial ao paciente queimado considerado satisfatório. Isso pode estar associado à insuficiente abordagem dada ao ensino da assistência a pessoas em situação crítica de saúde (como os pacientes graves com instabilidade do quadro clínico, considerando o AIQ como marcador) na formação dos enfermeiros da região em estudo.

Os estudantes de enfermagem desta pesquisa apresentaram um perfil socioeconômico e demográfico semelhante ao encontrado no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) no ano de 2010 para os graduandos de enfermagem; e em outros estudos brasileiros, nos quais predominaram adultos jovens, do sexo feminino, solteiros, com cor de pele branca, renda familiar de até 4,5 salários mínimos e percentual significativo de estudantes com vínculo empregatício(13,16-17).

Embora os resultados dessa investigação apontem a inexistência de associação estatisticamente significativa entre o conhecimento dos alunos de enfermagem com variáveis socioeconômicas e demográficas, importantes diferenças no conhecimento foram encontradas para as variáveis renda e vínculo empregatício: apresentaram melhor desempenho os estudantes com maior renda familiar e que não trabalhavam.

O fato de uma parcela significativa exercer algum tipo de atividade remunerada demonstra nível socioeconômico insatisfatório, levando a maioria a conciliar estudo e trabalho para garantir sua manutenção e subsistência. Tal fato constitui-se em um importante desafio para esses estudantes: conciliar aulas teóricas, estágios curriculares e demais atividades inerentes ao curso com atividades empregatícias(13,17).

O aluno trabalhador leva para a sala de aula experiências interessantes - visto que muitos já estão na área da saúde -, mas conciliar a vida profissional e acadêmica constitui um desafio para professores e discentes. Além disso, em várias situações, percebe-se o quão desafiador é para esse estudante compreender que a proposta da graduação vai muito além do que apenas aprofundar conhecimentos de ordem técnica(18).

No Brasil, as Diretrizes Curriculares Nacionais têm almejado a formação de enfermeiros com competências e habilidades para conhecer e intervir sobre os problemas e situações emergentes de saúde-doença de impacto epidemiológico, com ênfase na região em que estão inseridos. O processo de ensino-aprendizagem deve estar baseado em problemas e evidências(19).

A situação escolar pregressa dos estudantes não se mostrou associada de modo significativo ao conhecimento em relação ao AIQ. A realização do ensino médio em escola particular, no entanto, apresentou maior relação com o conhecimento satisfatório que as demais variáveis, porém quase 60% dos alunos tinham procedência escolar pública.

Considerando a importância do estudante como sujeito ativo do processo de ensino-aprendizagem, suas experiências prévias necessitam ser ponderadas no processo de construção dos saberes teórico-práticos em enfermagem, pois possibilitam uma visão crítica e ação efetiva na realidade. A edificação do conhecimento deve estar alicerçada na abordagem pedagógica-crítica, que destaca a dimensão política da prática educativa(18).

Em relação à situação acadêmica atual dos estudantes de enfermagem, aqueles pertencentes à IES pública apresentaram três vezes mais chances de conhecimento satisfatório, comparados aos alunos de IES privadas. Este achado vai ao encontro da avaliação do Enade, em que estudantes de enfermagem concluintes de instituições públicas apresentaram pontuação média mais elevada (53,5) nos itens avaliados, com desempenho acima da média nacional (47,7). Já os concluintes provenientes de instituições privadas obtiveram média de 46,7(16).

Visto que dos 691 cursos de enfermagem que participaram do Enade no ano de 2010 80% pertenciam a IES privadas(15), grande parte dos profissionais são formados por meio desta modalidade de gestão. Portanto, é necessário avaliar constantemente a qualidade do ensino oferecido nessas instituições, no sentido de que ingressem no mercado de trabalho profissionais capazes de desempenhar suas atividades com qualidade.

A integração entre teoria e prática levou a um desfecho favorável no conhecimento dos estudantes de enfermagem e foi relevante no presente estudo.  Aqueles que tiveram a oportunidade de realizar o AIQ apresentaram quase quatro vezes mais chances de ter conhecimento satisfatório sobre o tema.

Os diferentes olhares sobre a complexidade que envolve a formação acadêmica em enfermagem incluem a aproximação entre teoria e prática. A prática de enfermagem engloba atividades propedêuticas e terapêuticas específicas, o que determina a necessidade de enfermeiros com níveis diferenciados de instrução. Nesse contexto, a formação acadêmica do enfermeiro deve contemplar obrigatoriamente atividades de ensino teórico e prático, que devem ser concretizadas nos campos de prática clínica(20).

A realização de atividades práticas pode ser definida como uma etapa de aplicação do conhecimento teórico capaz de gerar reflexão crítica e aperfeiçoamento de habilidades em situações reais, proporcionando ao estudante unir o saber com o fazer. Se bem direcionada, o levará a desenvolver um agir mais consciente, crítico e criativo(20). Dessa forma, visto que a execução de atividades práticas auxilia na formação do conhecimento e na aquisição de competências e habilidades, preocupa o fato de menos de um terço dos estudantes ter realizado o AIQ durante a graduação. Isso possivelmente implicará em dificuldades na autonomia e tomada de decisão desse futuro profissional, ao se deparar com uma situação real.

Outro aspecto que apresentou associação positiva com o conhecimento satisfatório sobre o AIQ foi o fato de o estudante ter presenciado esse atendimento, mesmo que não o tenha realizado. A visualização da cena por si só proporcionou quase três vezes mais chance de apresentar conhecimento satisfatório. Esse achado é relevante, uma vez que devido à complexidade que envolve o AIQ e a gravidade clínica apresentada por estes pacientes, nem sempre o aluno terá possibilidade de participar diretamente do cuidado. No entanto, a mera observação apresenta influências positivas, pois ele poderá associar o que visualizou com o conteúdo teórico que foi ou será ministrado.

A atualidade e complexidade do tema e sua explícita vinculação com o cotidiano de enfermeiros atuantes em unidades de urgência devem suscitar reflexões a respeito da formação acadêmica desses profissionais. O conhecimento científico aprendido na academia contribuirá grandemente para a segurança do profissional quando este se deparar com as situações práticas(20).

 

CONCLUSÃO

Considerando que as decisões clínicas do enfermeiro advêm de sua experiência acadêmico-profissional e também de evidências científicas, o conhecimento teórico deve ser empregado para fundamentar e melhorar as práticas em saúde. Dessa forma, uma formação acadêmica satisfatória trará maior segurança no atendimento às vítimas de queimaduras.

Portanto, foi preocupante o fato de que apenas 22,4% dos alunos apresentaram conhecimento considerado satisfatório. A partir da análise estatística empregada verificou-se associação entre pertencer à instituição de ensino pública, ter realizado assistência de enfermagem no atendimento inicial a vítimas de queimaduras e ter presenciado o atendimento inicial ao queimado com o conhecimento satisfatório entre esses estudantes de enfermagem.

Com relação à limitação deste estudo, merece destaque o delineamento transversal da pesquisa. Contudo, como pesquisa exploratória inicial, a pesquisa atingiu os objetivos propostos, evidenciando o conhecimento acerca do AIQ dos discentes estudados. Os resultados obtidos fornecem subsídios para a reflexão acerca do processo educacional nas instituições de ensino superior e o desconhecimento dos sujeitos desse estudo sobre o atendimento inicial ao queimado revela a necessidade de (re) pensar estratégias de ensino que promovam melhorias referentes ao conhecimento desses acadêmicos.

Cabe às instituições formadoras oferecer, no decorrer do curso de enfermagem, condições para que o aluno adquira conhecimento e competências necessárias ao exercício da profissão, capacitando o futuro enfermeiro para realizar cuidados de enfermagem a pacientes em situações críticas. Faz-se necessário ainda a abordagem desse tema em programas de educação em serviço para minimizar os déficits de conhecimento dos profissionais já inseridos no mercado de trabalho.

 

REFERÊNCIAS

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2. Tay PH, Pinder R, Coulson S, Rawlins J. First impressions last…A survey of knowledge of first aid in burn-related injuries amongst hospital workers. Burns. 2013; 39:291-9.

3. Breederveld RS, Nieuwenhuis MK, Tuinebreijer WE, Aardenburg B. Effect of training in the Emergency Management of Severe Burns on the knowledge and performance of emergency care workers as measured by an online simulated burn incident. Burns. 2011; 37(2):282-7.

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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido: 08/05/2014
Revisado: 12/08/2014
Aprovado: 12/08/2014