ARTIGOS ORIGINAIS
O preparo emocional dos profissionais de saúde na entrevista familiar: estudo hermenêutico
Paula Isabella Marujo Nunes da Fonseca1, Cláudia Mara de Melo Tavares1
1Universidade Federal Fluminense
RESUMO
A entrevista familiar para doação de órgãos comporta grande carga emocional e é realizada por coordenadores avançados em transplantes.
Objetivo: compreender como se dá o preparo emocional dos coordenadores avançados em transplantes para realizar a entrevista familiar.
Método: abordagem qualitativa, estudo hermenêutico; aprovado pelo Comitê de Ética UFF/HUAP nº 321/11. Os dados foram obtidos por entrevista semiestruturada contendo oito questões abertas com 24 sujeitos no período de janeiro a maio de 2012.
Resultados: a maioria dos entrevistados não faz qualquer preparo para a entrevista familiar e reconhece a necessidade da implantação de um serviço de suporte para as demandas emocionais advindas do trabalho.
Conclusão: Embora não realizem preparação emocional, os profissionais entendem a relevância do suporte que promova seu autoconhecimento e os faça sentir mais seguros e aptos para as entrevistas familiares.
Descritores: Emoções Manifestas; Pessoal de Saúde; Transplante; Enfermagem Psiquiátrica.
INTRODUÇÃO
O processo que envolve a doação de órgãos até o transplante é composto por diferentes etapas essenciais: a notificação de morte encefálica à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) após a constatação, já que a agilidade nesse caso é fundamental(1); a comunicação aos familiares sobre o fechamento do diagnóstico de morte encefálica; entrevista familiar para doação de órgãos; e a obtenção da autorização da família para captar os órgãos.
Neste estudo focamos na etapa da entrevista familiar realizada pelo coordenador avançado em transplante, que é o momento em que se explica a morte encefálica para pessoas que acabaram de perder seu parente próximo e que comporta a decisão de doar ou não o(s) órgão(s) de seu ente querido.
Definida como reunião entre familiares do potencial doador e um ou mais profissionais da equipe de captação ou outro profissional treinado, a entrevista familiar tem como objetivo obter consentimento à doação e comporta grande complexidade emocional/subjetiva(2).
Nessa direção, o objetivo da entrevista familiar proposto pelo Manual do Coordenador de Doação é:
] garantir que os familiares e amigos entendam a morte cerebral, tentem identificar a vontade do falecido, esclareçam dúvidas sobre os processos (que envolvem) a doação e transplante, avaliando simultaneamente o risco biológico da doação e dando em contrapartida apoio emocional e psicológico(3:118)
Justifica-se o apoio emocional e psicológico como descrito pela literatura, pois a entrevista familiar é um momento delicado e muito difícil no processo de doação em que os familiares do potencial doador reagem e expressam seu pesar diante de formas diferentes(4), já que é o momento em que se concretiza a morte, o distanciamento do ente e a impotência(5).
Dessa maneira, os coordenadores lidam com reações positivas no sentido de eventualmente surgirem familiares esclarecidos sobre a doação, e também aqueles que, em uma escala maior, lidam negativamente com a morte encefálica, se apegam à religião para busca de um milagre, mantêm-se passivos ou agressivos. É diante desse cenário que deve haver esclarecimento sobre a morte encefálica e a opção de doar o(s) órgão(s).
Os profissionais de saúde necessitam de capacitação para atender às demandas de cuidado da família numa perspectiva integral e que respeite a singularidade dos envolvidos nesse processo(6).
A provisão do apoio emocional nos remete à ideia de que, para realizar a comunicação de notícias difíceis, o profissional de saúde (aqui representado pelo coordenador avançado de transplantes) deve possuir um preparo anterior, visto a diversidade de reações emocionais com as quais pode lidar no momento.
Sobre isso, estudos acerca da comunicação da morte em instituições de saúde afirmam que os profissionais não receberam preparo teórico e tampouco suporte emocional para lidar com o sofrimento e a morte de seus pacientes(7-9). Reiteram que esses funcionários gostariam de ser preparados para lidar com situações de comunicação difíceis, propondo exemplos de situações reais de como se comportar na sua função profissional, não se envolver psicologicamente, aceitar melhor a morte e obter apoio psicológico(10).
Com isso, reafirma-se a importância dos cuidados com quem lida com pessoas em situação de morte, para que não cresça mais o deserto afetivo que se forma dentro dos hospitais, a negação a morte, o silêncio e a ilusão de onipotência. A ajuda é urgente e deve ser feita para que esse profissional perceba não estar só, e que não precisa afundar nas suas aflições(10).
Diante disso, este estudo tem por objetivo compreender como se dá o preparo emocional dos coordenadores avançados em transplantes para realizar a entrevista familiar.
Para discussão dos dados, utilizaram-se dois referencias teóricos: um proposto por Daniel Goleman, da inteligência emocional, que é “[...]capacidade de identificar nossos próprios sentimentos e os dos outros, de motivar a nós mesmos e de gerenciar bem as emoções dentro de nós e em nossos relacionamentos” (11:337) ; e outro proposto por Juan Casassus - o da educação emocional(12), entendida como “[...] um conjunto de habilidades que o indivíduo adquire para auxiliar no desenvolvimento das suas emoções e sentimentos, ensinando-o a manifestá-las de uma maneira melhor, orientando o indivíduo a ter um autocontrole sobre seu comportamento emocional” (13:67).
MÉTODO
Estudo qualitativo de abordagem hermenêutica interpretativa baseada na perspectiva de Hans-Georg Gadamer – compreende que a interpretação leva a conhecer as condições em que se dá a compreensão, ou seja, procura entender a própria linguagem e, por meio dela, o próprio homem, a sua história e existência, pois é com ela que se dá o acesso ao mundo e às coisas(14).
O enfoque metodológico da hermenêutica interpretativa possibilita conhecer a tradição do preparo emocional dos profissionais que realizam entrevista familiar para doação de órgãos. Essa prática vem à tona mediante a linguagem utilizada pelos dos coordenadores avançados em transplantes. A tradição é a bagagem de conceitos repassados ao longo dos tempos e condicionam as ações presentes de forma inconsciente, manifestando-se por intermédio da linguagem. O ser é linguagem e nomeia o mundo. A linguagem caracteriza a relação do ser com o mundo, diferenciando-o de todos os demais seres vivos. Com ela, o ser torna-se livre frente o mundo que o circunda, pois é aberta a possibilidade de interpretá-lo, o que lhe traz a dimensão ontológica(14).
O cenário foi a Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) do estado do Rio de Janeiro. Coletaram-se dados de janeiro a maio de 2012. Os sujeitos totalizaram vinte e quatro coordenadores de transplantes - 17 enfermeiras, dois assistentes sociais, dois médicos e três psicólogos – que compõem ou já compuseram a equipe que atua como coordenadora do processo de doação de órgãos.
Critério de inclusão utilizado: profissionais que realizaram ou realizam entrevistas familiares para doação de órgãos e que estavam trabalhando no período de coleta de dados na equipe da Central de Transplantes. Critérios de exclusão: profissionais que não realizam ou nunca realizaram entrevistas familiares, e ainda aqueles que mesmo tendo realizado entrevistas familiares não atuavam mais na CNCDO em questão no período de coleta de dados.
Utilizou-se entrevista semiestruturada com as seguintes perguntas a respeito das emoções e seu manejo em situações acontecidas na entrevista familiar:
Foi utilizada a análise do discurso dos sujeitos com base na interpretação proposta na hermenêutica filosófica de Gadamer, para organização e compreensão dos dados que foram gravados e transcritos na íntegra. A partir de leituras sucessivas, buscou-se desvelar o sentido das falas e seu modo singular de construção de linguagem, sendo estas discutidas à luz das principais ideias formadoras da inteligência emocional de Goleman(10) e da educação emocional de Casassus(11).
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Antônio Pedro/UFF sob o nº 321/11, CAAE: 0336.0.258.000-11 em Nov/2011. Respeita os princípios éticos da Resolução nº 466/2012.
RESULTADOS
A respeito do preparo emocional para a entrevista familiar, indagou-se se é ou não feito pelos coordenadores. Assim, as categorias que se formaram foram o “não” prevalente; o modo de preparo; e o (re)conhecimento da importância da preparação emocional.
O “não” prevalente remeteu nas falas à não realização de algum tipo de preparo anterior ao momento da entrevista familiar. Alguns depoimentos desvelaram a ligação entre o preparo emocional com um pré-conhecimento da situação com a qual irão ter contato. Com isso, indicaram a preferência de conhecer a situação no momento em que a mesma acontecerá, justificando o não preparo emocional. Outros apontaram que tentam não se envolver emocionalmente no momento da entrevista familiar, por isso qualquer tipo de preparo emocional não é feito. No depoimento abaixo destacamos o pensamento que embasa a decisão de não se preparar emocionalmente para a entrevista familiar na percepção dos sujeitos.
Não, nunca tive nenhum tipo de... Quem está dentro do processo às vezes acha que é autossuficiente, que consegue manter o equilíbrio e na verdade o dia a dia mostrou que não era bem assim e que nunca houve uma preocupação. E desde o início do primeiro grupo, teve um grupo anterior ao nosso que foi um grupo de contratados, eles foram contratados e chegaram aos concursados... Nesse grupo vieram duas psicólogas e assim não havia nenhuma preocupação nem por parte... Até houve um momento um esboço de pensar em dar suporte para a equipe técnica, que era quem estava no plantão e quem efetivamente fazia a entrevista, mas nunca houve isso. (Azul Ultramar)
Na categoria denominada “modo de preparo” observam-se os meios que os sujeitos lançam mão para realizar o que identificaram como preparo para a entrevista familiar, direta ou indiretamente. Embora relatando não realizarem um preparo, suas falas explicitaram algum movimento que caminha em favor da melhor aceitação da situação ou busca de equilíbrio para enfrentá-la.
Desse modo, a crença de que se está fazendo um bem maior, orar, fazer terapia para se preparar, saber que o órgão a ser doado vai salvar outra pessoa, acreditar na morte encefálica e realizar Curso de Más Notícias foram as estratégias reveladas. Pode-se compreender que o preparo por eles considerado envolve a apropriação técnica do processo, passa pela subjetivação positiva das etapas e chega até a trabalhos externos (terapia) que levam ao autoconhecimento. Nesse sentido seguem as falas:
Não, hoje em dia eu não faço não. Assim, quando eu vou para entrevista que eu acho que vai ser difícil, quando no caso é criança, adulto jovem... Eu acho que a preparação que eu faço é tentar ficar calma, acreditar que aquilo é para um bem maior, e depois faço um agradecimento interno que, “poxa foi legal, foi positivo” ou “então não deu”... Enfim. (Magenta)
Eu oro. (Azul Turquesa)
Não, preparação emocional, não. Faço comigo mesmo, mas nada profissional [...]Só mesmo a força da gente, o conhecimento que você tem, a força de saber que aquele órgão vai “pra” uma pessoa e vai melhorar a vida de alguém. E acredito na morte encefálica. (Verde Oliva)
Na última categoria desta indagação denominada “o (re)conhecimento da importância da preparação emocional” afloraram relatos de sujeitos que entendem o preparo emocional como algo importante. Seus argumentos giraram em torno de julgar necessário um preparo emocional, de adquirir preparo com a experiência de fazer entrevistas, de reconhecer que em algum momento o preparo emocional lhes fez falta e de reconhecer que uma formação acadêmica clínica ajuda na preparação para lidar com comunicações difíceis, tal como revelam algumas as falas a seguir.
Até julgo necessário, mas nunca fiz não. (Carmin)
Não, não fiz nenhuma preparação emocional e em alguns momentos isso me fez falta [...] (Grys de Paine)
Na faculdade nós não vemos isso (preparação emocional). Em momento nenhum da nossa, algum da nossa formação acadêmica nós temos nenhuma disciplina voltada para isso, para entrevista familiar nesses casos específicos de doação de órgãos. O que nós temos na graduação é saber dar a resposta e muitas vezes informar ao paciente a questão da morte. (Laranja de Cádmio)
Na indagação seguinte, em que se procurou compreender o que pensam sobre a necessidade de suporte emocional para quem realiza a entrevista familiar, foi possível observar que a maioria - à exceção de somente um sujeito, que afirmou não achar necessário este tipo de trabalho - ressaltou na categoria “sim”, a necessidade do serviço indicado, trazendo argumentos que justificassem a incorporação desse suporte na unidade. Desse modo emergiram as categorias “sim”, “justificativas do sim” e “não”.
No que diz respeito às “justificativas do sim”, desvelou-se que o suporte emocional:
] um suporte, mas de um apoio pra gente aprender a lidar melhor e a focar melhor num objetivo...(Terra Verde)
Eu acho, eu acho necessário um suporte (e) principalmente uma preparação muito boa porque eu vejo assim, não só dentro do trabalho, mas atualmente nas nossas relações, a gente está cada vez mais distante um do outro... a modernidade, a tecnologia... Então cada vez menos a gente precisa conversar cara a cara, cada vez mais a gente precisa lidar com o não, com a decepção com as coisas. A gente se afastou muito das nossas emoções, então eu acho que a gente precisa sim ter um preparo, ter um suporte “pra” poder fazer da melhor maneira, porque se perdeu o hábito de ter problema um com o outro e sentar “pra” resolver, então acho que isso ficou um pouco perdido. A gente está perdendo um pouco essa habilidade de escutar, de falar com calma, de ver o que o outro tem a dizer. (Terra Siena Queimada)
Um sujeito revelou que o suporte emocional seria importante para além da equipe técnica: não só os coordenadores, mas também a equipe administrativa. Outro sugeriu a participação de profissionais de fora do serviço para oferecer esse cuidado; assim poderiam ser dadas dicas de como a equipe deve se portar.
Por fim, na categoria “não” um sujeito relatou que um suporte emocional disposto no serviço não seria necessário a quem realiza a entrevista familiar.
Então, eu falo por mim, não. Acho que não. Porque eu ainda não consegui ver interferência disso na minha vida, entendeu? É o que eu te falei: eu entro e saio da entrevista do mesmo jeito. Então eu não sinto essa necessidade. Então por mim, não. (Amarelo Ocre)
DISCUSSÃO
Na categoria “não” a maioria dos sujeitos relatou não fazer qualquer preparação emocional. Sobre isso, em alguns casos, alegar falta de preparo pode ser defesa psíquica para não enfrentar essa tarefa, percebida como algo muito difícil. Pode ainda denunciar falhas na formação desses profissionais (7).
Alguns coordenadores entendem que conhecer previamente a situação os faria sofrer antecipadamente; já outro declara que não saber do caso e conhecê-lo na hora é o suficiente, não sendo necessária uma preparação emocional. Tais argumentos reiteram um desconhecimento acerca do que seria uma preparação emocional, pois não significa conhecer previamente a situação com a qual irá se confrontar, mas sim como estar em equilíbrio para comunicar notícias difíceis, sabendo ou não da situação. As alternativas que são propostas para isso se encontram nos principais pontos em que se que baseia a inteligência emocional e nos conhecimentos acerca da educação emocional.
No que diz respeito à inteligência emocional, é preciso que se trabalhe a autoconsciência, elemento fundamental para a intuição psicológica. Neste momento, é significativo lembrar que nem sempre cruza-se o limiar da consciência dos sentimentos nós. Existem os primeiros sinais psicológicos de uma emoção, que ocorrem normalmente antes que a pessoa esteja consciente do próprio sentimento. Ao prestar atenção aos sinais (como, por exemplo, relacionados à ansiedade que se instala antes da realização da entrevista), o profissional poderá ter consciência de que está ficando ansioso. Portanto, autoconsciência significa reconhecer um sentimento quando ele ocorre, sendo fundamental para o discernimento emocional e autocompreensão. É considerado o primeiro domínio, dentre os cinco propostos, para se expandir a inteligência emocional(11).
Os argumentos de Casassus(12) reforçam as ideias de Goleman(11) dizendo que, para acontecer a educação emocional, (vista como uma possibilidade para o preparo emocional), é preciso que se tenha consciência emocional, que em termos de conceituação se aproxima da autoconscientização proposta por Goleman.
Dessa forma, nos ciclos emocionais vividos consciente e inconscientemente, as emoções ocorrem no corpo, num espaço pré-consciente, e por conta disso é preciso tomar compreensão delas. Assim, o primeiro passo é possuir a consciência emocional. Isto significa ter conhecimento de seu próprio mundo emocional(12).
Aprender as próprias emoções é uma viagem de autodescoberta que acontece pela observação de como se desenvolvem as expressões de si mesmo no corpo. Sentir é uma experiência emocional; é no corpo sensível que se encontra o suporte interno das emoções. É necessário haver a confluência do sentir e do conhecer num mesmo ato para que haja essa consciência(12).
Quando não existe compreensão das emoções, há o afastamento do outro. Se não há percepção e reconhecimento das próprias emoções, elas não serão percebidas e reconhecidas no próximo.
Assim, o sujeito acaba limitado na incompreensão do que acontece com as pessoas com as quais se relaciona, o que o mantém na incompreensão emocional, aprisionado no espaço racional e levado a não enxergar as possibilidades que o mundo emocional oferece(12).
Essa não conscientização emocional dificulta o preparo emocional, já que o indivíduo sequer reconhece suas emoções. E como acima mencionado, não se reconhecer leva a dificuldades em lidar com as emoções do outro, o que ajuda a tornar a entrevista um momento mais complexo. Esse quadro poderia ser mudado caso o entrevistador tivesse a consciência do que geralmente sente antes de enfrentar a entrevista e se preparasse para realizá-la.
Na categoria “modo de preparo” o relato mostra inicialmente uma negação à realização de algum preparo emocional, mas logo em seguida descreve algum ato que fortalece o entrevistado para enfrentar o momento da entrevista, como tentar ficar calmo; acreditar que estará fazendo um bem maior; ter força; e, na mesma linha de pensamento, imaginar que está fazendo um bem para melhorar outra vida. A projeção do que poderá acontecer de positivo a partir das próprias ações ajuda no fortalecimento do indivíduo, trazendo segurança e diminuindo sua ansiedade característica do medo.
Sobre isso, dependendo do grau de motivação por sentimentos de entusiasmo e de prazer no que se executa ou mesmo por uma medida ideal de ansiedade, o indivíduo é levado ao êxito. É por esse caminho que a inteligência emocional afeta profundamente todas as capacidades, facilitando ou interferindo nelas(11).
Outro ponto a se destacar é a presença da espiritualidade para se preparar emocionalmente. A religião é o campo de elaboração subjetiva em que grande parte da América Latina constrói de forma simbólica o sentido de sua vida, buscando superação para enfrentar a crise existencial colocada pela doença. Também é uma referência central para a organização de grande parte das mobilizações comunitárias para o enfrentamento dos problemas de saúde. É ainda o espaço em que a maioria significativa dos profissionais de saúde estrutura o sentido e a motivação para seu trabalho. Com isso, “valorizar esta dimensão da realidade não é uma questão de ter fé ou não em Deus, mas de considerar processos da realidade subjetiva e social que tem uma existência claramente objetiva.” (15:9).
Para Association of American Medical Colleges:
Espiritualidade é reconhecida como um fator que contribui para a saúde de muitas pessoas. O conceito de espiritualidade é encontrado em todas as culturas e sociedades. Ela é expressa nas buscas individuais para um sentido último através da participação na religião e ou crença em Deus, família, naturalismo, racionalismo, humanismo, e nas artes. Todos estes fatores podem influenciar na maneira como os pacientes e os cuidadores profissionais da saúde percebem a saúde e a doença e como eles interagem uns com os outros. (16:352-7)
Tal afirmativa reitera a importância da espiritualidade como potente meio de preparo emocional, o que reflete diretamente na manutenção da saúde mental do profissional.
Já na categoria “O (Re)conhecimento da importância da Preparação Emocional” nas declarações percebemos que alguns sujeitos entendem necessária uma preparação emocional e que não ter isso lhes fez falta. Vemos ainda que um dos sujeitos, assistente social, entende que sua formação voltada para a área social lhe ajuda a estar mais bem preparado para lidar com o outro, o que não acontece, segundo sua percepção, com os demais profissionais de formação biomédica. Logo, como podemos observar em seguida no relato da enfermeira - diz não ter tido preparação para lidar com a questão da doação de órgãos em uma entrevista familiar em sua faculdade, argumento reiterado por estudos anteriores (7-9).
Na indagação seguinte, podemos perceber que um coordenador declarou não ser importante a presença do serviço de suporte emocional enquanto vinte e três afirmaram o contrário. Tal reconhecimento reitera a ciência dos sujeitos acerca da vulnerabilidade a qual estão expostos ao lidarem com dilemas morais frequentemente.
Um suporte emocional significa proporcionar ambiente confortável e acolhedor ao outro, mantendo sempre uma relação de confiança e respeito com o mesmo, pois, por muitas vezes, dependendo de cada pessoa, aquele ambiente com aqueles profissionais representa o único local no qual poderá receber este tipo de apoio(17).
Assim, a partir da instalação deste suporte os sujeitos visualizam possíveis resultados a serem alcançados e todos eles passam pela questão do autoconhecimento como podemos ver no esquema abaixo.
Figura 1 - Justificativas dos sujeitos para se ter suporte emocional e a intermediação do autoconhecimento sobre elas, 2014, Rio de Janeiro. |
Fonte: Esquema proposto pelo autor. |
A Figura 1 demonstra que é possível chegar ao autoconhecimento a partir do apoio emocional. O autoconhecimento representa o meio/a etapa necessária ao alcance de objetivos traçados para um enfrentamento melhor das situações que envolvem comunicações difíceis.
É relevante ressaltar que estão contidos nos pontos levantados todos os cinco domínios pertencentes à construção da inteligência emocional:
1. Conhecer as próprias emoções (para aprender a lidar com elas);
2. Lidar com as emoções (para focar num objetivo);
3. Motivar-se (profissionais fariam entrevista melhor e não sofreriam tanto);
4. Reconhecer as emoções no outro (para lidar com o próximo/ajudar em situações específicas);
5. Lidar com relacionamentos (para suportar situações pesadas e não adoecer)(11).
Coerentes com os dados observados, estudos afirmam a importância da instalação de suporte emocional para profissionais que experienciam a rotina de comunicar notícias difíceis(7,18). Dessa maneira, haveria maiores possibilidades de se sentirem mais acolhidos, seguros e fortalecidos parachegar aos pressupostos declarados como relevantes no processo de enfrentamento das situações delicadas.
CONCLUSÃO
Os dados evidenciados por esta pesquisa estão de acordo com aqueles identificados em análises anteriores e com o que sobressalta a literatura. Chama-se atenção para que sejam tomadas medidas que permitam mudanças efetivas no que tange aos cuidados da saúde mental oferecidos aos coordenadores avançados em transplantes.
Demonstrou-se que, para enfrentar a realidade das comunicações difíceis impostas na rotina laboral, os coordenadores lançam mão de suas reservas pessoais sem, no entanto, estarem preparados para isso.
Não obstante, os próprios sujeitos reconhecem a relevância de um serviço que lhes ofereça um suporte emocional. A atividade trabalharia o autoconhecimento para que cada um encontrasse as próprias medidas de educação emocional - que seriam efetivas, e não engessadas caso fossem generalizadas.
Cientes das possibilidades que poderiam ser oferecidas com o apoio emocional, os próprios sujeitos traçaram objetivos prévios que poderiam ser alcançados caso houvesse disponível um serviço do tipo - que envolvesse desde o saber lidar melhor consigo para não adoecer até enfrentar melhor as emoções do outro, melhorando a qualidade da comunicação das notícias difíceis.
Diante disso, destacamos a relevância do preparo e suporte emocional para manutenção da saúde mental de profissionais que trabalham frequentemente com dilemas morais, como os coordenadores avançados em transplantes, fazendo urgir a implantação de dispositivos que ofereçam tal serviço.
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Recebido: 24/02/2014
Revisado:10/09/2014
Aprovado: 10/09/2014