ARTIGOS ORIGINAIS

 

Ocorrência de violências por parceiros íntimos em trabalhadoras rurais brasileiras: estudo descritivo

 

Rejane Antonello Griiboski1, Dirce Guilhem1, Leides Barroso Azevedo Moura1

1Universidade de Brasília

 


RESUMO
Objetivo: Descrever a ocorrência de violências perpetradas por parceiros íntimos (VPI) na interpretação das mulheres trabalhadoras rurais.
Método: Estudo descritivo, incluindo 795 participantes da quarta Marcha das Margaridas na capital brasileira. Dados coletados por técnica de urna e analisados segundo estatística descritiva.
Resultados: 41% das mulheres sofreram pelo menos um episódio de VPI: 70% relataram violência física, 63% violência psicológica e 14% violência sexual. Variáveis: idade, estado civil, posição na família, origem geográfica e tipos de violências.
Discussão: Violência física foi a mais prevalente, acompanhada por violências psicológica e sexual. Mulheres que já viveram em união apresentaram maior razão de chance para violências.
Conclusão: A ocorrência de violências por parceiro íntimo foi confirmada pelas mulheres trabalhadoras rurais. Espera-se contribuir para a estruturação de redes de proteção para mulheres em situação de violência, estratégia de saúde da família e formação de profissionais de saúde e de enfermagem.
Descritores: População Rural; Mulheres; Violência Contra a Mulher; Políticas Públicas de Saúde; Pesquisa em Enfermagem.


 

INTRODUÇÃO

O reconhecimento da existência de violências contra mulheres trabalhadoras rurais – em casa, no trabalho e na sociedade - não ocupa lugar privilegiado no cenário das pesquisas em saúde e da produção de conhecimentos que revelem a magnitude do problema(1). Estudos realizados em parceira pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstraram níveis elevados da ocorrência de violências contra as mulheres, principalmente nos espaços urbanos. Resultados de um estudo realizado na América Latina e no Caribe sobre violência contra mulheres registraram a persistência das violências nos mesmos índices daqueles encontrados em escala global, com patamares ao redor de 25 a 50% de incidência(1,2).

O Mapa da Violência 2012 revelou que o Brasil ocupa o 7º lugar em feminicídios – violência fatal contra as mulheres. Observa-se que 42,5% do total de agressões tiveram como perpetrador o parceiro ou ex-parceiro íntimo(3). Um estudo brasileiro sobre mortalidade feminina decorrente de agressões apontou outros fatores socioeconômicos e demográficos associados ao assassinato de mulheres pelos parceiros, tais como a pobreza, a disparidade de idade entre os cônjuges e a situação marital não formalizada(4). Pesquisas brasileiras de âmbito nacional e regional sobre violências cometidas por parceiros íntimos (VPI) revelaram índices semelhantes globalmente aos resultados obtidos pela OMS e OPAS, em que as mulheres vivenciaram algum tipo de agressão por parte do atual ou do ex-parceiro(5,6).

Violências contra mulheres são reconhecidas como um grave problema de saúde pública e uma barreira ao desenvolvimento de um país(1,2,6). A principal causa das agressões contra as mulheres, diferentemente de outros tipos de violências, é manifestada pelas desigualdades nas relações tradicionais de gênero. Violências de gênero são definidas pelas desigualdades nas relações entre homens e mulheres e compreendem agressões de natureza física, psicológica, sexual, moral e patrimonial(2,5). É no espaço familiar que ocorre grande parte dos atos e, geralmente, a mulher conhece seu agressor(6). São esses cenários de violência, multideterminados e polissêmicos, que envolvem toda a sociedade em suas complexas dimensões – social, econômica, política e cultural(6). É possível que ainda exista um número reduzido de evidências sobre esse fenômeno na setor rural. Por outro lado, essas lacunas tendem a contribuir para a manutenção de sua invisibilidade e dificultar a adoção de estratégias de intervenção para minimização do problema(1,5,7).

Não obstante, a partir dos anos de 2007 e 2008 emergiram políticas governamentais importantes. Instituiu-se a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que passaram a incluir as trabalhadoras rurais(1). Criou-se, ainda, a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, que visava garantir o direito e o acesso à saúde baseada nos princípios da equidade, universalidade e integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS) para a população rural(7).

Devido à grande repercussão da articulação política das mulheres trabalhadoras rurais, em 2011, elas foram contempladas com as Diretrizes e Ações Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta(1). Entretanto, essas políticas foram apenas parcialmente implantadas. Isso se deve aos seguintes fatos:

1- Os serviços especializados no atendimento às mulheres em situação de violência estão concentrados em municípios de maior porte;
2- As áreas rurais estão isoladas geograficamente;
3- Há carência de recursos humanos capacitados para reconhecer o problema e efetuar os devidos encaminhamentos(1).

Esses aspectos dificultam o acesso das trabalhadoras rurais à infraestrutura social de enfrentamento à violência contra as mulheres.

Embora se reconheçam os avanços das iniciativas governamentais, ainda há muito a ser feito, tanto em nível de políticas públicas de saúde quanto no atendimento às demandas das mulheres rurais na atenção básica a partir da inserção da Estratégia de Saúde da Família. É importante destacar que o processo de trabalho é multidisciplinar, tendo o enfermeiro como articulador nas ações educativas, no fortalecimento do vínculo com a comunidade, na proximidade com a família e na articulação setorial, entre outros aspectos que poderiam ser mencionados(8).

Um estudo realizado no Peru demonstrou aspectos estruturais semelhantes aos encontrados no Brasil. Apontou dificuldades na distribuição de recursos humanos na área da saúde que tendem a concentrar-se em grandes centros urbanos(9). Nesse contexto, evidencia-se o importante papel da enfermagem, por tratar-se de profissionais que tradicionalmente são approaches entre usuários, comunidades e serviços de saúde(5,8,9). Justamente por isso, a inclusão dessa temática em pesquisas na área de enfermagem, das ciências da saúde e no processo de formação acadêmica torna-se mandatória. Os futuros profissionais devem ser capacitados para o reconhecimento das distintas formas de violência, para o gerenciamento da atenção às mulheres em situação de violência e para a adoção de estratégias preventivas buscando a minimização da violência de gênero(9). Assim, todas e quaisquer estratégias de intervenção que busquem minimizar a violência contra as mulheres são bem-vindas.

Este estudo emergiu da necessidade de verificar a ocorrência de episódios de violências praticadas por parceiros íntimos contra mulheres que vivem no meio rural. Assume relevância, pois o conhecimento produzido pela pesquisa poderá contribuir para a organização das pautas de reivindicação coordenadas pelo movimento sindicalista de trabalhadoras rurais e os planos de intervenção para politização do problema da estruturação da rede de proteção para mulheres em situação de violência. O principal objetivo foi descrever a ocorrência de violências perpetradas por parceiros íntimos, na interpretação das mulheres trabalhadoras rurais.

 

MÉTODO

Trata-se de estudo descritivo de abordagem quantitativa, que adotou amostragem por conveniência(10). As seguintes informações foram pré-estabelecidas: grau de confiança=95%, e p-valor <0,05. O cenário de coleta de dados foi a quarta edição da Marcha das Margaridas, ocorrida em Brasília. A Marcha das Margaridas é uma ação coletiva sociopolítica e uma atividade em adesão à Marcha Mundial de Mulheres de caráter formativo, de denúncia e pressão, mas também de proposição, diálogo e negociação política com o Estado(11). Ocorre a cada quatro anos e é organizada pelas mulheres do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais e coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura. Participaram da pesquisa 795 trabalhadoras rurais que atenderam aos critérios de inclusão: idade superior a 18 anos e participantes da 4ª Marcha das Margaridas. As questões foram adaptadas de instrumento validado do estudo multipaíses para estimar as violências contra as mulheres, realizado pela OMS(6,13).

A coleta de dados ocorreu nos dias 16 e 17 de agosto de 2011, na dependência externa dos alojamentos destinados às mulheres e situados no Parque da Cidade, em Brasília, bem como durante o evento. Foi acompanhada por uma equipe de voluntários, acadêmicos de diferentes áreas da saúde e afins, previamente capacitados na técnica de urna. Esse procedimento permite o sigilo sobre a origem dos dados, a fim de melhorar a fidedignidade das respostas a questões socialmente controversas que se relacionam à privacidade dos participantes, como, por exemplo, o aborto, violências, comportamentos, entre outros(12). Eram questionários autopreenchidos e posteriormente depositados em urnas dispostas estrategicamente no local do evento. A finalidade do uso de urnas foi a de resguardar a confidencialidade e garantir o anonimato das participantes.

Para a análise estatística, foram utilizadas as seguintes variáveis independentes: faixa etária, anos de estudo, estado civil, posição familiar, cor, religião e origem geográfica. Definiram-se quatro questões como variáveis dependentes, que visaram identificar a natureza e a ocorrência de episódios de violências por parceiros íntimos e duas questões sobre episódios de violência cometidos por elas.

A definição operacional utilizada neste estudo seguiu a classificação da OMS para identificar a natureza das violências segundo ato violento cometido por parceiros íntimos. São elas:

1) Violência psicológica (VP): incluem as humilhações, insultos públicos, xingamentos ou ameaças;
2) Violência física (VF), que abrange dois tipos:
a) Violência física moderada (VFM): caracterizada por empurrões, trancos ou chacoalhões, tapas ou lançamento de objetos,
b) Violência física grave (VFG): incluindo socos, chutes, arrastar ou surrar, estrangulamento, queimaduras, tentativas de usar arma – branca, de fogo, ou outro tipo de arma;
3) Violência sexual (VS): a mulher ter sido forçada física ou psicologicamente a praticar relações sexuais(1,13).

Utilizou-se o Editor de Dados Statistical Package for the Social Sciences – SPSS© [ versão 18 ] para criação do banco de dados e análise estatística(10). Quanto aos tipos de violências, procurou-se averiguar sua distribuição segundo o perfil sociodemográfico das mulheres e possíveis associações entre as variáveis. O teste de Qui-quadrado foi utilizadopara comparar as proporções de quantidades de respostas afirmativas entre os grupos, identificar a existência de diferenças e avaliar as razões de chances (odds ratio) de ocorrência de violências(10).

O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (CEP-FS/UnB) sob o protocolo n°068/2011.

 

RESULTADOS

O perfil sociodemográfico das 795 mulheres trabalhadoras rurais respondentes está demonstrado na tabela 1. Os resultados revelaram que a maioria delas pertencia à faixa etária considerada adulta (25 a 59 anos). Mais da metade delas informaram ter até 10 anos de estudo. Quanto ao estado civil, mais de 70% responderam que viviam em união consensual ou já viveram com um parceiro. Cerca de 40% das mulheres afirmaram ser a pessoa de referência na família. O estudo mostrou que 77% das participantes são negras, representando o contingente de mulheres de cor autodeclarada pretas (16%) e pardas (61%). Quanto à origem geográfica, a região Nordeste mostrou-se mais presente.

 

 
Tabela 1 – Perfil sociodemográfico das mulheres trabalhadoras rurais participantes do estudo. 4ª Marcha das Margaridas. Brasília,  2011.
Variáveis sociodemográficas n %
Total de respondentes 795 100
Faixa Etária
18 a 24 anos 66 8
25 a 49 anos 465 59
50 a 59 anos 164 21
60 anos ou mais 90 11
Não respondeu 10 1
Anos de estudo
Não estudou 22 3
1 a 3 anos 90 11
4 a 7 anos 198 25
8 a 10 anos 129 16
11 ou mais 332 42
Não respondeu 24 3
Estado Civil
Vivem em união consensual 498 63
Não vivem, mas já viveram em união 72 9
Nunca viveram em união 209 26
Não respondeu 16 2
Posição familiar
Pessoa de referência (chefe de família) 316 40
Cônjuge, esposa ou companheira 341 43
Filha 107 13
Outras posições 18 2
Não respondeu 13 2
Cor
Branca 154 19
Preta 130 16
Parda 486 61
Amarela ou Indígena 18 3
Não respondeu 7 1
Religião
Católica 630 79
Evangélica 117 15
Outra 26 3
Não tem religião 14 2
Não respondeu 8 1
Origem
Centro-Oeste 54 7
Norte 29 4
Nordeste 607 76
Sudeste 67 8
Sul 38 5
 Fonte: Elaboração das autoras, 2011.
 

 

A tabela 2 apresenta o perfil das mulheres expostas a episódios de violência. Entre as participantes da pesquisa, 41% (n=326) relataram ter sofrido violência praticada por parceiro íntimo em algum momento da vida. A maioria dos episódios ocorreu com adultas, com até 10 anos de estudo, em união consensual e que eram a pessoa de referência na família. As mulheres declaradas negras, apresentado pelo somatório das autodeclaradas de cor preta (16%) e de cor pardas (61%), representaram 90% do total das que sofreram VPI.

A análise mostrou diferenças estatísticas significativas para as seguintes variáveis: idade (p<0,036), estado civil (p<0,000), posição na família (p<0,000), origem geográfica (p<0,0048) e a ocorrência da violência. A significância entre a variável origem geográfica e episódios de violência deveu-se ao grande número de respondentes da região Nordeste, assim como não se pode inferir que é a região de maior ocorrência de VPI.

A razão de chance de mulheres que já viveram, mas não vivem mais em união consensual de sofrerem violência é de 5,25 vezes maior do que aquelas que vivem em outras situações de estado civil. Igualmente, as mulheres que são pessoas de referência (chefes de família) têm 3,39 vezes mais chance de sofrer violência.

 

 
Tabela 2 – Características sociodemográficas das mulheres trabalhadoras rurais que relataram ter sofrido algum episódio de VPI. 4ª Marcha das Margaridas. Brasília, 2011.
Variáveis sociodemográficas n(%) Razão de chance Sig. p-value
Total 326(41)
Faixa etária
18 a 24 anos 19(6) 0,56 p < 0,036*
25 a 49 anos 185(57) 0,89
50 a 59 anos 78(24) 1,4
60 anos ou mais 42(13) 1,3
Não respondeu 2(0) 0,36
Anos de estudo
Não estudou 12(4) 1,75
1 a 3 anos 40(12) 1,17 p < 0,176
4 a 7 anos 91(28) 1,31
8 a 10 anos 53(16) 1
11 ou mais 123(38) 0,75
Não respondeu 7(2) 0,58
Estado Civil
Vive em união consensual 181(56) 0,59 p < 0,000*
Não vivem, mas já viveram em união 49(15) 5,25
Nunca viveram em união 90(28) 0,17
Não respondeu 6(1) 0,72
Posição na família
Pessoa de referência (chefe de família) 185(57) 3,39 p < 0,000*
Cônjuge, esposa ou companheira 106(33) 0,48
Filha 26(8) 0,42
Outras posições 6(2) 0,71
Não respondeu 3(3) 0,43
Cor
Branca 55(17) 0,76 p < 0,501
Preta 58(18) 1,19
Parda 201(62) 1,04
Amarela/Indígena 8(2) 1,15
Não respondeu 4(1) 1,93
Religião
Católica 255(78) 0,89 p < 0,232
Evangélica 55(17) 1,36
Outra 6(2) 0,65
Não tem religião 5(2) 0,5
Não respondeu 5(1) 1,81
Origem
Centro-Oeste 21(7) 2,84 p < 0,048*
Norte 19(6) 0,97
Nordeste 248(76) 0,91
Sudeste 27(8) 0,97
Sul 11(3) 0,57
Fonte: Elaboração das autoras, 2011. * Nível de significância do teste de associação p-valor <0,05
 

 

A tabela 3 apresenta dados relacionados à natureza e ao tipo de violências praticadas por parceiros íntimos que mostraram maior prevalência (41%), considerando-se a soma do percentual da violência física moderada e da violência física grave, seguida da violência psicológica (35%). Quanto à frequência dos atos violentos, os dados mostraram que a violência física nas duas dimensões de intensidade (moderada e grave), respondeu por 70% da violência de repetição muito frequente, e a violência psicológica por 63%. Para violência sexual, apenas 14% das entrevistas relataram uma baixa frequência de episódios.

 

 
Tabela 3 – Natureza, prevalência e frequência das violências cometidas por parceiro íntimo contra mulheres trabalhadoras rurais. 4ª Marcha das Margaridas. Brasília, 2011.
Tipo de violência Prevalência              Frequência
Sofreu violência Pouco frequente Frequente Muito frequente
n(%) n(%) n(%) n(%)
Violência Psicológica 279(35) 35(12) 58(20) 186(63)
Violência Física Moderada 187(24) 73(36) 42(21) 72(35)
Violência Física Grave 136(17) 51(34) 32(21) 53(35)
Violência Sexual 119(15) 19(14) 36(26) 64(47)
Fonte: Elaboração das autoras, 2011. Mulheres trabalhadoras rurais que informaram episódios de violência (n=326).
 

 

Vale ressaltar que cerca de 26% das mulheres declararam ter experimentado múltiplas combinações das naturezas de violências. As mulheres também declararam praticar atos violentos: 28% delas referiram episódios de natureza psicológica e 10% de natureza física contra seus parceiros. Na violência psicológica, os episódios se repetiram com mais frequência nos relacionamentos íntimo-afetivos para 38% delas. Constatou-se, ainda, o mesmo índice para episódios únicos ou pouco frequentes de violência física.

 

DISCUSSÃO

Neste estudo, observou-se que o resultado sobre o perfil sociodemográfico das mulheres trabalhadoras rurais acompanha as características do perfil geral da população brasileira. A OMS estima prevalência de VPI que varia entre 25 e 50%(14). Essa dominância é considerada compatível com o presente estudo, no qual 41% das mulheres trabalhadoras rurais relataram ter experimentado episódios de violência por parceiro íntimo.

No que se refere à escolaridade, a proporção de trabalhadoras rurais que ingressaram no ensino médio e/ou superior pode estar vinculada ao fato de tratar-se de mulheres engajadas em movimentos sociais e sindicais. São pessoas que valorizam a educação como uma das ferramentas para a emancipação humana. Embora tenha havido um resultado de alta escolaridade entre as respondentes, ainda existem mulheres com baixa ou nenhum escolaridade(6,11,15). Estudos anteriormente realizados na Etiópia e no Brasil demonstraram que baixa escolaridade estava associada a VPI(6,13). Observa-se que a escolaridade, isoladamente, não representa um elemento preventivo para as experiências de violência. Os resultados são semelhantes e vão ao encontro dos achados neste estudo, onde ser casada, viver em zona rural e ter baixa ou nenhuma escolaridade são fatores associados à VPI(4,15). Embora a educação por si só não seja capaz de contribuir para minimizar os episódios de violências, ela integra o processo de formação de uma sociedade mais igualitária. É considerada fundamental para a diminuição das desigualdades socioeconômicas, tanto nos espaços urbanos como rurais(6,15). No Brasil, as informações sobre a escolaridade das mulheres descrevem um cenário de melhorias,  ao mesmo tempo em que persistem as desigualdades nas relações de gênero e de trabalho, fatores que expõem as mulheres às situações distintas de vulnerabilidade(14-16).

Nesse contexto, configuram-se as violências de gênero que envolvem as relações de poder, seja na esfera física, econômica, política, social ou até mesmo intelectual(6,9,17,18). As relações de gênero, de geração, de renda e da própria família em contextos rurais são influenciadas por complexas teias de poder que perpetuam instituições e hierarquias sociais, onde os homens utilizam a violência como instrumento de submissão feminina, independentemente de questões socioeconômicas(17).

Outro resultado importante revelou a ocorrência de violências contra mulheres em idades mais avançadas, o que também foi verificado no estudo sobre as mulheres idosas de zona rural do sudoeste da Virgínia, Estados Unidos. As violências são pouco citadas pelas vítimas e podem não ser reconhecidas pela comunidade e por profissionais de saúde como um problema relevante. Além disso, as agressões seriam antigas ou menos valorizadas nos relatos fornecidos pelas mulheres. Este estudo mostrou que mulheres na faixa etária superior a 50 anos de idade apresentavam mais chances de sofrer episódios de violência que mulheres jovens, o que merece atenção especial na interseção entre políticas públicas para mulheres adultas e idosas(18).

Do mesmo modo, ser a pessoa de referência e responsável pelo domicílio não se traduz em segurança pessoal contra violações de direitos nas relações íntimo-afetivas mediadas pelo sistema de dominação-subordinação(6,9,17). Mesmo que a mulher possua autonomia financeira e seja a provedora do lar, esses atributos não se configuram como elementos protetores no que se relaciona às VPI. Sob esta ótica, a associação entre autonomia financeira e aumento de VPI nas áreas rurais deve ser considerada, visto que existem programas de transferência preferencial de renda e propriedade para as mulheres trabalhadoras rurais(11). Destaca-se que a presença de atos violentos contra as mulheres negras, ainda, se constitui em um importante viés de raça, estando esta incidência relacionada a outras formas de violências, tal como a sexista.

Uma das principais causas da violência contra as mulheres são as assimetrias de gênero que incidem sobre as relações íntimo-afetivas. Os episódios de VPI tendem ao escalonamento e podem aumentar no decorrer dos anos(18,19). Esta pesquisa encontrou similaridades com a realizada em comunidade rural de Uganda, onde a maioria das mulheres entrevistadas relatou VP e exposição à VF; mais da metade sofria isolamento e restrição de liberdade; e 23% tinham sido vítimas de violência sexual(19).

Ainda sobre a prevalência de VPI, o estudo revelou que os episódios de violência podem ser graves, recorrentes e em sobreposição, isto é, a associação de qualquer tipo de violência considerada mais frequente pode ser seguida por todos os tipos de violência(4,15,19). Neste estudo também se percebeu uma similaridade, isto é, as mulheres trabalhadoras rurais assinalaram a existência do elevado índice de VF e da frequência dos episódios, combinadas com VP e VS presentes em um único evento.

As violências contra mulheres têm sido associadas às dificuldades de acesso aos direitos fundamentais, como educação, emprego, saúde, renda, entre outros presentes tanto nos espaços urbanos quanto nos espaços rurais. Ambos marcados pelas desigualdades socioespaciais(6,15). Existem outros fatores que podem desencadear, motivar ou aumentar os episódios de violência no ambiente doméstico, tais como o consumo de álcool e drogas, desajuste social, e pobreza(6).

Um fator determinante para identificação das violências perpetradas contra as mulheres que buscam um serviço de saúde é a capacitação dos profissionais que irão atendê-las no âmbito da Estratégia Saúde da Família de modo acolhedor e humanizado. Sabe-se que, na prática educativa, as ações utilizadas pelos profissionais de saúde podem auxiliar nos processos de cuidar, promover e prevenir agravos à saúde(20). Nesse sentido, educação em saúde contempla a combinação de oportunidades que favoreçam a promoção da saúde e possibilitem sua adoção nas práticas cotidianas. O exercício da autonomia pressupõe o desenvolvimento do senso de responsabilidade, tanto no que se refere à própria saúde, como a da comunidade na qual se está inserida(20). Nesse contexto, a escassez de profissionais nas áreas mais necessitadas impede a realização de ampla cobertura pelos sistemas de saúde.

Estudos realizados no Brasil e no Peru sobre trabalho e atrativos para manter profissionais de saúde no meio rural evidenciaram que esses profissionais percebem desinteresses políticos em sua atuação, o que se reflete em baixos salários, baixa qualificação profissional, carência de infraestrutura e equipamentos adequados, quadro de profissionais de saúde reduzido(8,9). Enquanto as mudanças desejadas para a plena implementação de políticas públicas no espaço rural não acontecem, os profissionais de saúde, sobretudo os de enfermagem, podem iniciar uma estratégia de interlocução criando instrumentos que contribuam para a transformação social e a autonomia das mulheres. Isso se justifica pelo fato de que o(a) enfermeiro(a) é o elemento-chave, por ser o primeiro profissional que presta atendimento, abrindo, pois, o canal de diálogo com as mulheres em situação de violência e com as comunidades rurais(5,20).

 

CONCLUSÃO

O estudo permitiu identificar as características sociodemográficas das mulheres trabalhadoras rurais, a prevalência e a ocorrência de violências praticadas por parceiros íntimos. Quase metade das mulheres entrevistadas referiu ter experimentado pelo menos um episódio de violência durante a vida. As violências físicas foram mais prevalentes, sendo acompanhadas pelas violências psicológica e sexual. Para cada uma das naturezas das violências relatadas, existe um mosaico de interações pessoais, familiares, comunitárias e societárias mediadas por incivilidades, relações assimétricas de poder e processos civilizatórios tangenciados pela interculturalidade e intersubjetividades. Os resultados revelaram a magnitude do problema, onde persistem as desigualdades de gênero nas relações íntimo-afetivas e/ou familiares em que o uso da força física, seja por opressão ou subserviência, expõe as mulheres trabalhadoras rurais a constantes situações de vulnerabilidade.

Aspecto importante visa o desenvolvimento de ações que modifiquem as assimetrias de poder e consequentemente as violências de gênero existentes no meio rural. Espera-se que os resultados contribuam como fonte de informação e forneçam subsídios para novas pesquisas na área da saúde. Outro enfoque diz respeito à possibilidade de incorporação dos resultados ao processo de formação dos profissionais de saúde e enfermagem. Isso se deve ao fato da enfermeira ser considerada como agente social e o primeiro elo na gestão do cuidado que pode colaborar na construção de planos locais, regionais e nacionais para sensibilização, redução, enfrentamento e minimização das VPIs. Em contrapartida, esses resultados também podem fazer parte de um sistema de monitoramento das políticas públicas para o estabelecimento da autonomia, da igualdade e da justiça para as mulheres trabalhadoras rurais.

 

REFERÊNCIAS

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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido: 27/01/2014
Revisado: 17/03/2015
Aprovado: 14/04/2015