CONVITE EDITORIAL
A propósito das Ciências do Cuidado em Saúde
Enéas Rangel Teixeira1
1Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Reflexão sobre as ciências do cuidado em saúde, como território gerador de massa crítica e de recursos técnicos e científicos. Destacam-se os saberes envolvidos com as ciências do cuidado e sua dimensão ética em um contexto histórico e a criação do Programa de Pós-Graduação Acadêmica em Ciências do Cuidado em Saúde: Mestrado, em 2008, e Doutorado, em 2013, na Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense.
Descritores: Enfermagem; Ciência; Educação de Pós-Graduação em Enfermagem; Estudos Interdisciplinares; Domínios Científicos.
A proximidade do ano de 2014 nos faz pensar sobre determinados acontecimentos históricos, que apesar de aparentemente não demonstrarem estritas relações, ou mesmo despertar conteúdos mnemônicos, estão repletos de sentidos que agem no campo do cuidado de enfermagem e da saúde.
Em 2014 fará 100 anos do início da primeira guerra mundial, um fenômeno histórico social e político, cujas consequências foram desastrosas para a humanidade e para o bem estar humano, em várias dimensões. De tal forma que levou os pensadores a escreverem sobre o processo civilizatório e a tensão entre a vida e a morte. Em outras palavras, a ordem e a desordem(1) implícitas na materialidade das coisas e no simbolismo da vida.
De modo correlato, passa-se a compreender o tempo de modo dinâmico, movediço e relativo. Como de fato, que a eleição de uma data ou fato histórico torna-se uma conjunção condensada no presente de conteúdos e ecos longitudinais transversalizados. Condensação essa que reúne os cortes assimétricos: passado, presente e futuro e seus imbricamentos e interfaces.
O movimento do desejo pode se expressar mediante aparatos simbólicos, mobilizar a emersão de conceitos e formas de agir. Nessa malha tecida pelo simbólico banhado pela emotividade no nível do linguajar humano(2), se cria e produz saberes e suas materializações com potência de transformação.
Partindo dessa perspectiva, busca-se aqui uma breve reflexão sobre o propósito das ciências do cuidado em saúde como território gerador de massa crítica e de recursos técnico e científico na Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa (EEAAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Trata-se de pensar a respeito de um nível de realidade Institucional e a impossibilidade da apreensão da totalidade de distintos níveis de realidade que agem no mesmo espaço. Parte-se do critério da percepção do autor desse texto, capturando as formas recursivas e referenciais, cujo foco é a enfermagem e suas interfaces.
Nesse ano, 2013, a Escola de Enfermagem da UFF inicia seus preparativos para comemorar seus 70 anos em 2014, cuja fundação em 1944, se deveu a uma mulher singular, Professora Aurora de Afonso Costa. Essa Instituição foi criada no período da 2º Guerra Mundial, na qual se tentou solucionar conflitos por meio da violência com o uso de tecnologias científicas.
Nesse mesmo contexto da 2ª Guerra Mundial, atuou Edgar Morin - filósofo contemporâneo - na força de resistência francesa, contra o nazismo. No pós-guerra, agiu na reconstrução da Alemanha, que o levou a escrever seu primeiro livro “O ano zero da Alemanha”(3).
Essas datas e contextos permitem associar fundações da enfermagem para ensinar cuidar e ao mesmo tempo, lembranças das duas guerras. São acontecimentos que marcam a história da enfermagem, que ressurge, entre outros motivos, para cuidar de pessoas doentes ou feridas, provocadas pelos efeitos da guerra e contradições sociais. Os cuidados se voltam para a cura e regeneração dentro de um modelo biomédico curativo e de combate às endemias.
Todavia, nas últimas décadas do século XX, mudam-se o processo de produção de conhecimento e formação em termos de tendências paradigmáticas, que repercutem na saúde. Assim, o cuidado emerge como um resgate necessário à vida(4), de reparação à promoção da vida(5), deslocando-se do enfoque curativo ou de combate às doenças. Por conseguinte, o cuidado pode reparar, reconstruir a vida e regenerar a vida planetária(6).
Nessa perspectiva, considerando os erros do passado e as tentativas de superação, a ciência e seus produtos tecnológicos, não são mais vistos como neutros e dependem da intenção do uso. Isto demanda uma ética na produção do conhecimento e o lidar com a vida na pesquisa(7). Já legitimados nas legislações sobre a ética na pesquisa e sobre o patrimônio genético.
Morin(8) ressalta que a civilização atual forma pessoas para guerra, que o ensino foi impregnado pelos valores bélicos, mesmo na saúde. Em contrapartida, ele diz que é preciso educar para a paz, para cooperação e que a paz é melhor que a guerra. Também porque não dizer, formar para promoção da saúde e não para o enfoque de exclusividade da doença(9).
Como caminho de superação do saber fragmentado, apresenta-se a atitude transdisciplinar(10), que trata dos distintos níveis de realidade, da complexidade, e do paradigma da conexão e não o da dissociação, como foi o flexneriano na saúde.
As ciências do cuidado requerem conexões de saberes, no ensino, na pesquisa e na inovação. Isto se processa de modo mais estrito entre as ciências da vida, ciências humanas e a enfermagem, a qual caracteriza o cuidado em termos de sua epistemologia, que por sua vez tem uma genealogia(11) de saberes e práticas, produzidos ao longo da história. E uma ontologia, referente ao ser do cuidado(6), essencial, e suas referências.
O cuidado tem uma dimensão acadêmica profissional e outra não acadêmica e que se conectam na arte de cuidar no cotidiano. Trata-se do cuidado de reparação, que é formativo e científico e o outro o cuidado com a vida(12).
A atitude transdisciplinar processa-se entre as disciplinas do cuidado e com os plurais saberes da cultura. Essas conexões, dialogicidade e complexidade se concretizam em determinados aspectos nas políticas de saúde, na Estratégia Saúde da Família e na humanização. A transdisplinaridade implica em reflexão contínua do sujeito no que ele afeta e é afeto, denotando implicações psicoafetivas no processo de ensinar e cuidar.
Deste modo, a pós-graduação precisa produzir teorias e conceitos, transmitir conhecimentos para a prática, formar profissionais para governança, considerando as tendências paradigmáticas, as conquistas da saúde, a dimensão ética e humana. E mais ainda, o desafio de contribuir para transformações de pessoas implicadas nesse processo.
A meta de criação de uma proposta diferenciada de pós-graduação, cujo fulcro seria o cuidado na área de enfermagem e suas interfaces, concretiza-se na Escola de Enfermagem da UFF em 2008, com a criação do Mestrado Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde, iniciado em março de 2009 com aprovação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior(CAPES). A missão era impulsionar a produção do conhecimento na unidade, de modo integrado com os demais programas existentes de pós-graduação e graduação em seu território de abrangência. Ocorreu, enfim, a objetivação de persistentes anseios na construção da pós-graduação acadêmica, voltado para estudos de alto nível.
Atendendo a perspectiva atual da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade, o programa forma enfermeiros e profissionais que atuam no campo das ciências do cuidado, cuja área de concentração é a complexidade do cuidado em enfermagem e saúde.
Neste sentido, formam-se pessoas para a governança, pesquisa e inovação. As dissertações e produtos refletem a proposta. Fato demonstrado no crescimento da produção científica do programa, oriundas de seus projetos. A coerência, consistência e maturidade do programa, permitiram o início da expansão para o doutorado.
Ao findar o seu triênio – 2010-2012 - do Curso de Mestrado em Ciências do Cuidado em Saúde, a proposta de construção do doutorado foi aprovada em todas as instâncias da UFF e submetida a CAPES, fruto de um intenso trabalho coletivo persistente.
No dia 19 de setembro de 2013, para o regozijo de todos, foi recebida a notícia da aprovação de nosso Doutorado em Ciências do Cuidado em saúde pela CAPES. Essa data torna-se marco de aberturas para um ensino de excelência na Escola de Enfermagem e na UFF. Assim, o Programa de Pós-graduação em Ciências do Cuidado em saúde se completa, tendo mestrado e doutorado.
A previsão do início do curso de doutorado é para o primeiro semestre de 2014, que é um valioso presente para os 70 anos da EEAAC e significativo para a universidade. Por conseguinte, serão formados pesquisadores, novos convênios e intercâmbios serão criados, possibilidades de angariar novos projetos e recursos e grandes desafios e projeções, doravante surgirão.
Enfim, se comemorará no próximo ano a emergência do cuidado como o resgate da vida, da cooperação, do lidar com as diversidades em detrimento a barbárie das guerras, do fundamentalismo e do antigo paradigma da dissociação dos saberes.
REFERÊNCIAS
1. Morin E. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina; 2002.
2. Maturana H. A ontologia da Realidade. Belo Horizonte: UFMG; 1997.
3. Morin E. Ano Zero da Alemanha. Porto Alegre: Sulina; 2009.
4. Waldow VR. Cuidado humano – o resgate necessário. Porto Alegre: Sagra Luzzatto; 2001.
5. Colière MF. Promover a vida: da prática das mulheres de virtude aos cuidados de enfermagem. Lisboa: Lidel; 1999.
6. Boff L. Saber Cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999.
7. Teixeira ER, organizador. Psicossomática nos cuidados em saúde: atitude transdisciplinar. São Caetano do Sul: Yendis; 2009.
8. Morin E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. [ S.l. ]: UNESCO; 2000.
9. Daher DV, Teixeira ER, Santana RF, Fonseca TC. Rosalda Paim: a nurse before her time. Online braz j nurs [ Internet ]. 2012 Aug [ cited 2013 sep 24 ] 11 (2): 408-17. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3967 http://dx.doi.org/10.5935/1676-4285.20120035
10. Nicolescu B. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom; 1999.
11. Foucault M. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Rio de Janeiro: Forence Universitária; 2011.
12. Colière MF. Cuidar A primeira arte da vida. 2. ed. Lisboa: Lusociência; 2003.
Recebido: 24/09/2013
Revisado: 26/09/2013
Aprovado: 28/09/2013