ARTIGOS ORIGINAIS
Práticas alimentares de gestantes acompanhadas em unidade de saúde da família: estudo exploratório
Aline Fernanda Palombarini1, Maíra Barreto Malta1, Cristina Maria Garcia de Lima Parada1, Maria Antonieta Barros Leite Carvalhaes1, Maria Helena D'Aquino Benicio1, Vera Lúcia Pamplona Tonete1
1Universidade Estadual Paulista
INTRODUÇÃO
A gestação constitui-se em ocorrência essencialmente fisiológica na vida da mulher. Entretanto, aspectos psicológicos e sociais se fazem presentes nesse acontecimento, tanto para a mulher quanto para sua família e comunidade. Assim, a gestação é experiência intensamente pessoal que origina questões com grande carga emocional e cultural, como as relativas a práticas e crenças espirituais, sexualidade, relacionamento, contracepção, práticas alimentares, mudança de autoimagem corporal e aumento de peso materno, realização de atividade física e aborto, dentre outras(1).
As práticas alimentares durante a gestação, tomadas como tema neste estudo, correspondem a um dos eixos que compõem a promoção da saúde materna e infantil(1,2). Durante o acompanhamento pré-natal, a mulher entra em contato com aspectos científicos e técnicos sobre gestação saudável, incluindo alimentação, abordados pela equipe de saúde, que passam a ser confrontados com suas próprias concepções e experiências. Sabe-se que o conhecimento científico e a cultura da gestante podem justapor, contrapor ou unir-se, por vezes, implicando na autonomia sobre suas escolhas alimentares(2).
Desse modo, a possível influência dos aspectos subjetivos na realização de práticas alimentares torna essencial a abordagem problematizadora desse assunto pelos profissionais da saúde, apontando para a necessidade da criação de vínculos entre esses e as gestantes, com a participação efetiva de ambos na construção compartilhada dos conhecimentos em relação às referidas práticas(3).
No intuito de obter subsídios mais amplos para posterior planejamento de ações em saúde voltadas a gestantes, elegendo-as como participantes ativas na produção desse conhecimento, as seguintes questões de estudo foram formuladas: O que as gestantes acompanhadas por unidade de saúde da família (USF) sabem sobre alimentação, durante a gestação? Como, no dia a dia, elas se alimentam?
Os objetivos estabelecidos foram: identificar concepções sobre alimentação entre gestantes de baixa renda e compreender aspectos subjetivos envolvidos nas práticas alimentares cotidianas.
MÉTODO
Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa(4), configurando-se como estudo exploratório, fundamentado nos pressupostos da Sociologia Compreensiva do Cotidiano, de Michel Maffesoli(5), sendo integrante de ampla investigação denominada “Impacto de intervenção para promoção de caminhada e alimentação saudável em gestantes atendidas pela Estratégia de Saúde da Família: um estudo de coorte controlado”(Processo FAPESP 2011/18579).
Os métodos qualitativos trabalham com o estudo das relações, das crenças, das percepções e das opiniões, aprofundando-se no mundo dos significados, pois o ser humano se distingue não só pelas atitudes, mas por pensar sobre suas ações e interpretá-las a partir da realidade vivida. Assim, a metodologia qualitativa é adequada quando se busca conhecer determinado fenômeno por meio dos atores sociais e dos sentidos que eles atribuem aos objetos e às ações sociais que desenvolvem(4).
Os estudos qualitativos no campo da Sociologia Compreensiva propõem a subjetividade como constitutiva do social e inerente ao entendimento objetivo. Portanto, o interesse não é o de quantificar, mas tentar explicar aspectos das relações sociais consideradas essência e resultado da atividade humana criadora, afetiva e racional, que pode ser apreendida por meio das experiências do cotidiano e das explicações do senso comum(4).
Na perspectiva da Sociologia Compreensiva do Cotidiano, a sociedade não é apenas um sistema mecânico de relações econômico-políticas ou sociais, mas um conjunto de ações interativas permeadas por afetos, emoções e sensações que constituem, no sentido exato, o corpo social(5). Segundo Michel Maffesoli, a Sociologia Compreensiva se ocupa em descrever o vivido naquilo que é, buscando discernir as visões das diferentes pessoas envolvidas. Em outras palavras, para o autor, esse referencial é adequado para evidenciar limites e necessidades em situações e representações constitutivas da vida cotidiana, formada pelas pessoas e suas interações(5).
Para participarem deste estudo, foram selecionadas gestantes cadastradas e acompanhadas por USF de município de médio porte do interior paulista. Essas gestantes deveriam estar no segundo trimestre ou mais de gestação, ter mais de 18 anos de idade e concepto único, sem doenças prévias (diabetes, hipertensão, cardiopatia) ou qualquer condição adversa que implicasse adoção de dietas especiais.
O número de participantes deste estudo foi definido pelo critério de saturação dos dados(6), totalizando 12 gestantes. A saturação foi identificada ao se analisar os dados, na medida em que eram obtidos, quando se constatou a ausência de dados novos em relação ao que já tinha sido mencionado pelos respondentes às indagações da pesquisadora e ficou demonstrada a suficiência do material coletado para alcançar os objetivos estabelecidos. Portanto, foram incluídas no estudo gestantes que puderam fornecer dados ricos, interessantes e suficientes para exprimir o fenômeno em estudo.
Assim, no período de janeiro a março de 2012, as gestantes agendadas para seguimento pré-natal no referido serviço eram convidadas a participar do estudo pela pesquisadora, após o atendimento realizado por outro profissional, sendo que as que concordavam e atendiam aos critérios de inclusão foram entrevistadas na própria unidade de saúde. Todas as gestantes convidadas aceitaram participar da pesquisa. Cabe esclarecer que, na época da coleta de dados, a pesquisadora estava realizando estágio em período integral no local, relativo à sua formação em curso de residência multiprofissional em saúde da família.
Os dados foram colhidos por meio de entrevista semiestruturada(4) que foi gravada em MP3, transcrita e deletada, posteriormente.
O referencial metodológico para tratamento dos dados coletados foi o Método de Análise de Conteúdo, na vertente Temática, composto por três etapas: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados obtidos, inferência e interpretação. Na primeira etapa - pré-análise - realiza-se leitura compreensiva do material selecionado, buscando ter visão de conjunto, focando nas particularidades do material, escolhendo formas de classificação inicial e definindo os conceitos teóricos que vão orientar a análise. Na segunda etapa - exploração do material - é realizada a análise de núcleos de sentido, distribuindo trechos, frases de cada texto de análise através da classificação inicial, reagrupando as partes do texto por temas e buscando dar sentido com os conceitos teóricos. E, na terceira etapa - tratamento dos resultados/inferência/interpretação - elabora-se resumo interpretativo que permita correlacionar temas com objetivos, questões e pressupostos da pesquisa(7).
Em conformidade com as diretrizes nacionais e internacionais para pesquisa com seres humanos, o projeto deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp, Protocolo CEP número 3989-2011. Antes da realização das entrevistas, as gestantes foram esclarecidas sobre os objetivos e os procedimentos utilizados na pesquisa. Em seguida, obteve-se a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelas participantes.
RESULTADOS
O grupo de gestantes, quanto ao perfil sociodemográfico, caracterizou-se por apresentar idade entre 18 e 27 anos, sendo que sete (58,3%) tinham oito ou mais anos de estudo, nove (75%) não estavam trabalhando e seis (50%) apresentavam-se em união estável com seus parceiros. Quanto à história obstétrica, sete (58,3%) eram multigestas, todas faziam acompanhamento em serviço público de pré-natal de baixo risco e, no momento da entrevista, dez (83,3%) encontravam-se no terceiro trimestre de gestação.
Os depoimentos das gestantes entrevistadas seguem apresentados de forma descritiva, classificados nos dois temas estudados e respectivos núcleos de sentido que se configuraram. Aos núcleos de sentidos, estão associadas às unidades de registro, por sua vez identificadas com o número da gestante entrevistada (E1... E12).
Tema 1 - Concepções sobre Alimentação Saudável na Gestação
1.1 A alimentação da gestante tem que ser saudável para ela e para o bebê
Na perspectiva das entrevistadas, a alimentação durante o período gestacional deve ser saudável tanto para a gestante quanto para o seu concepto, devendo ser melhor em comparação aos outros períodos da vida da mulher:
“Eu acho que a gestante tem que se alimentar bem e comer, assim, melhor do que a gente come quando a gente não está grávida. Tem que comer dobrado. Tem que comer pela mãe e pelo filho[...]” E8
E, para tal, segundo as depoentes, essa alimentação precisa ser composta por determinados grupos alimentares, com destaque a frutas e hortaliças, carnes e laticínios:
“A alimentação da gestante tem que ser saudável. Tem que comer bastante fruta, legumes, verdura[...]” E1
“Tem que comer bem! Fruta, verdura, carne, peixe[...]” E11
“A alimentação tem que ter todas as vitaminas que o bebê precisa... Tem que ter fibra, cálcio, tudo... Assim, tomar leite, queijo[...]” E12
Algumas das entrevistadas apontaram que além de ser composta por esses alimentos, a alimentação da gestante deve ser balanceada e obedecer a certa frequência, necessitando da ingestão de líquidos, de preferência naturais:
“A alimentação tem que ser balanceada, tem que variar legumes, verdura, carne... E tem que tomar muita água, muito líquido natural... Frutas. Isso é muito importante para o bebê, não só para a gestante[...]” E4
“Tem que ser alimentação de três em três horas... E, não pode deixar de tomar café, almoçar e jantar.” E6
“E não comer exagerado.” E11
Com o propósito de esclarecer suas concepções sobre alimentação saudável na gestação, as entrevistadas também se reportaram àqueles alimentos que não devem ser consumidos ou devem ser consumidos com cuidado:
“Primeiro, a gestante tem que evitar tomar refrigerante, de extrapolar no doce, no chocolate... Principalmente, eu acho que não deve tomar coca-cola, que causa gazes na criança, causa cólica no bebê, não vai fazer bem para ele. Então, gestante tem que pensar não no desejo que ela está tendo, mas sim, também, que vai fazer mal para o bebê.” E1
“Acho que tem que evitar comer fritura.” E2
“Salgadinhos... Eu acho que devia proibir essas coisas, assim... Falam que engorda muito e prejudica a criança! Também, não se deve comer muita gordura, ‘besteira’”. E7
“E assim, não é bom para a gestação muita bolacha recheada que tem muito teor de açúcar. Para não ficar, assim, dando interferência no sangue, para não dar anemia na gente e na criança, também... Coisas que prejudicam o desenvolvimento do bebê.” E12
1.2 Nem sempre se tem alimentação saudável na gestação
Ainda sobre as concepções das entrevistadas quanto à alimentação durante a gestação, os depoimentos revelaram os obstáculos que apontam para a não realização da alimentação saudável, quando foram salientados principalmente os aspectos relacionados à atitude e à disposição da própria gestante:
“Preguiça da gestante, por que tem gente que é preguiçosa e não está preocupada em comprar coisas saudáveis.” E1
“Eu acho que depende muito da pessoa de querer se alimentar bem, assim. Acho que depende da gestante comer bem, certinho, ter uma alimentação saudável. Acho que depende só dela, mesmo.” E2
“Tem que fazer um esforço para se alimentar bem.” E3
“Ah! Eu acho que nada impede de comer bem. Vai da pessoa querer.” E4
Por outro lado, as ideias sobre falta de recursos financeiros como problema para se ter uma alimentação saudável também se fizeram presentes nos depoimentos das gestantes:
“A falta de recursos... A falta de dinheiro. De repente, bate o desemprego... Tem que ter condições financeiras adequadas.” E5
“Às vezes, não tem condição... Sei lá...” E10
Além disso, os sintomas desagradáveis inerentes à gestação foram lembrados como possíveis obstáculos para a gestante se alimentar adequadamente:
“Mas, tem algumas que não conseguem comer mesmo, passam mal[...]” E3
“Eu acho que o que atrapalha são os enjôos, só isso...” E9
Tema 2-Experiências sobre Alimentação na Gestação
2.1 Eu recebi orientações sobre alimentação saudável da gestante em diferentes momentos e lugares
Na abordagem sobre as experiências quanto às próprias práticas alimentares, ao serem indagadas quanto às fontes de informação e discussão sobre a alimentação na gestação, as entrevistadas relataram, principalmente, a inclusão desse assunto nas ações dos serviços de saúde, durante o acompanhamento pré-natal atual e, conforme o caso, em gestações anteriores:
“Então, antes eu não sabia nada disso. Eu aprendi lendo os papéis que ganhei na minha primeira consulta médica.” E1
“Nas consultas, com as médicas e as enfermeiras do posto.” E4
“Com a minha primeira médica, quando eu tive a minha primeira menina. Porque eu era praticamente uma criança querendo cuidar de outra. E5
No posto eles orientam a gente. Aí, a gente tem que acatar a orientação deles para gente seguir uma gestação boa.” E6
Também, apontaram que compartilharam esse tema com familiares e em outros cenários da comunidade:
“Minha avó fica me falando que é para não comer “besteira” e comer mais fruta, para pensar mais no meu filho.” E7
“Aprendi vendo a minha família... Minha mãe, minhas tias.” E8
“Eu aprendi no curso que eu fazia, com as enfermeiras.” E12
2.2 Na gestação comecei a comer melhor, porém posso melhorar ainda mais
Em relação à alimentação durante a gestação, os depoimentos colhidos revelaram as atitudes tomadas por elas para adequar as práticas alimentares às concepções anteriormente apresentadas:
“Quando descobri que estava grávida, já sabia que eu tinha que ter uma alimentação saudável. Então, passei já a comer bastante fruta, três frutas por dia, bastante legumes, principalmente à noite. Na hora do almoço, nem tanto, porque como eu trabalho e levo marmita... E, à noite, eu janto. No começo, eu não comia muito, comia pouco. Agora que a minha alimentação aumentou um pouco, mas eu estou sempre comendo fruta e legumes.” E1
“Ah! Eu como arroz, feijão, queijo, banana, maçã... O que eu gosto mais é manga, acerola, mais essas coisas. De verdura só gosto de alface[...]” E7
“Eu acho que eu estou me alimentando bem. No meu ponto de vista, não sei no dos médicos... O dia a dia, antigamente, eu comia assim: eu almoçava, jantava, só. Agora, eu como alguma coisa no meio do dia, como bolacha, pão, fruta, que eu não comia! No café da manhã, também, eu não tomava café e, agora, estou tomando!” E8
“Agora eu estou comendo melhor porque tem mais as coisas para comer, que antes não tinha condição de comprar e, agora, a gente tem. O que eu como mesmo é: arroz, feijão, carne...” E11
Segundo as entrevistadas, ao mesmo tempo em que estavam procurando se alimentar adequadamente, elas ainda encontravam dificuldades para modificarem seus hábitos e gostos para corresponder às suas concepções de alimentação saudável. Chama a atenção que, em geral, as entrevistadas assumiram a responsabilidade pelo que consideravam como erros alimentares:
Então, eu parei um pouco, mas agora eu tenho que voltar a comer outras frutas diferentes, porque eu sou acostumada a comer sempre as mesmas. Então, eu tenho que mudar de fruta e mudar de legumes também, porque eu já enjoei do que eu sou acostumada a comer. E1
Tenho me alimentado conforme tem dado... Me esforço para comer de três em três horas, em poucas quantidades. Acho que como bem, mas poderia melhorar na base de fruta, mais legumes... E5
O que preciso parar de comer é coisa de gordura, bolacha, também. E11
Têm algumas coisas que eu não tenho condição, assim, às vezes, de comprar... Mas, o que eu posso é fazer com que tenha uma melhora. E12
2.3 A gestante precisa ser mais bem orientada e apoiada pelos serviços de saúde sobre alimentação saudável
Coerentemente ao já exposto, quando indagadas sobre as expectativas em relação ao acompanhamento pré-natal pelas USF, as entrevistadas sugeriram maior atenção às orientações sobre alimentação saudável, utilizando instrumentos educativos, em consultas individuais ou em trabalhos com grupos de gestantes:
Deveria de conversar mais, sabe? Dialogar... Independente se ela (gestante) fala que já faz isso (alimenta-se bem)... Ela consegue? Ela nega? Aí, tem que estar sempre conversando, de uma maneira que ela vá entender... E1
Olha, eu acho que deveria conversar mais com a pessoa, porque às vezes tem gestante que acaba ficando em dúvida: “O que é bom para comer?” Então, acho que dessa forma, assim... Conversar um pouquinho mais. Incentivar a gestante a comer, a se alimentar melhor. Acho que é mais mesmo a orientação para ela ter um pouco mais de consciência para se alimentar melhor. Eu vejo dessa forma. E2
Ah! Precisa conversar bastante com elas durante a consulta, falar que a gestante tem que se alimentar, que tem que pensar no bebê. E3
Acho que tinha de ter mais contato com a gestante, fazer umas reuniões no posto, uns trabalhos assim... Um grupo só com gestante. E4
Eu acho que nesta questão, acho que deveria passar como se fosse uma lista, para poder ajudar, para poder saber o que deve comer mais e deixar de comer ou comer menos, para poder ajudar. E7
Dando dicas... E9
Ah! Eu acho que devia dá uma rotina, poder se alimentar melhor. Um folheto. E11
Ao mesmo tempo, foi sugerido maior atenção e apoio às questões socioeconômicas vivenciadas pelas gestantes, principalmente no sentido de prover o alimento necessário nesse período:
“Acho que no dia da consulta, que demora um pouco, poderia oferecer um suco, alguma coisa assim que a gente pudesse comer... Porque eu sei que tem muitas que normalmente não tem nem isso em casa. E vem na consulta passando até mal... E, também, fazer visitas na casa delas, ver como que está... Aí, já seria a parte da assistente social ver como que anda a vida dela, na casa dela e procurar ajudar ela.” E5
“Eu acho que, assim... Deveria ajudar aquelas que não têm condições de ter o alimento correto, assim, para se alimentar... Acho que se pudesse, assim, fornecer para as gestantes que não têm condição de ter esses alimentos. Acho que seria uma ajuda boa, assim, para a gestante e a criança, também.” E12
Relativo a esse núcleo de sentido, o recorte de depoimento de uma das gestantes explicita que, para ela, o serviço de saúde já cumpre com seu papel em relação à promoção da alimentação saudável na gestação, reforçando que se esse objetivo não se concretiza em razão da não colaboração da própria gestante nesse sentido:
“Ah! O posto já faz o que pode! Nós é que não controlamos e comemos as coisas que não podemos comer.” E10
DISCUSSÃO
Pela análise da caracterização das entrevistadas, confirmou-se o quadro esperado: as participantes do estudo tinham baixo nível socioeconômico. Chamou atenção a manutenção do transposto papel social da mulher na família, pois a maioria não havia concluído o ensino médio e se ocupava com os afazeres domésticos e/ou dos outros filhos. Certamente, a análise das concepções e experiências apreendidas neste estudo, a seguir apresentadas e discutidas, deve levar em consideração tais características. Estudo realizado no município do Rio de Janeiro/RJ(8) corrobora essa premissa afirmando que alimentação não consiste unicamente em uma necessidade de saúde, mas em um campo social, sendo que as concepções e experiências dos indivíduos e da sociedade sobre ela emergem e são próprias do contexto no qual se manifestam.
Estudo recente, de caráter reflexivo, sobre o campo da alimentação e nutrição, destaca a complexidade das relações que envolvem o comer e a dietética e a importância de agir em relação à orientação alimentar, associando o saber técnico desse campo com as perspectivas das teorias compreensivas(9).
Em relação às concepções sobre alimentação adequada na gestação, verificou-se que as gestantes mencionaram, por um lado, a ingestão de alimentos e líquidos “naturais”, considerados saudáveis e de se ter uma dieta balanceada e equilibrada, inclusive, em termos de horários. Por outro, indicaram os alimentos prejudiciais, como aqueles ricos em gordura, alimentos industrializados e “besteiras”, que não deveriam ser consumidos. Essas concepções foram também apreendidas em estudo realizado com mulheres de baixa renda do município do Rio de Janeiro/RJ, cujas entrevistas suscitaram ideias de “comida saudável”, representada por frutas, verduras e legumes, e de “besteiras” ou “porcarias”, nas quais estavam inclusos alimentos doces em geral, industrializados e gordurosos(2).
No presente estudo, foi destacada pelas gestantes, inclusive de forma explícita, a importância da adequação do hábito alimentar quando se está grávida, coerentemente com o conhecimento científico(10).
A partir da gravidez confirmada, apresentam-se expectativas de intensos cuidados sobre a criança que vai nascer em função das necessidades que se impõem. Porém, a mulher pode sentir-se motivada ou não, dependendo do desejo e da programação da referida gravidez(7). Em revisão sistemática de estudos quantitativos e qualitativos sobre manejo do peso na gestação, cobrindo aqueles publicados na literatura mundial no período de 1990 a 2010(10), observou-se na análise temática dos resultados qualitativos que as mulheres entrevistadas concebiam a gravidez como momento de mudanças, de transição e de falta de controle. Também, esse estudo mostrou que a gestação é vista como momento único, no qual as necessidades do concepto precedem as necessidades da mãe. E, contraditoriamente, as mulheres expressaram ambivalência no comportamento alimentar, justificando o excesso na ingestão de alimentos como uma fase temporária. Salienta-se, no texto citado, a influência do contexto social nas concepções das mulheres(11).
Cabe ressaltar que, em todas as entrevistas do presente estudo, a alimentação durante a gestação foi muito valorizada, prevalecendo o entendimento de que mudanças alimentares devem ocorrer nesse período ou que, no mínimo, se a alimentação já tiver um padrão adequado, dessa maneira, deverá continuar. As entrevistadas atribuíram grande valor à disciplina e à força de vontade da própria gestante na adequação alimentar, mesmo considerando alguns impedimentos externos a elas para tal, como sintomas desagradáveis inerentes à gravidez ou mesmo a sua situação social e econômica.
De modo geral, em relação às experiências das gestantes, os depoimentos obtidos revelaram que o tema alimentação no período em que se encontravam fazia parte do cotidiano, sendo que tiveram diversas oportunidades de entrar em contato com o assunto, tanto em ambiente institucional como familiar. Pode-se constatar que as concepções obtidas deixaram transparecer as influências das abordagens científicas e do senso comum a que as gestantes tinham sido expostas(12).
Em revisão de literatura anteriormente citada(11) foi constatado que as informações e conselhos sobre alimentação vêm de três fontes principais durante a gravidez: família e amigos, os meios de comunicação e profissionais de saúde. Esse estudo(11) revelou também que hábitos e comportamentos alimentares saudáveis parecem ser fortemente influenciados pelos pontos de vista das estruturas de apoio em torno de mulheres durante a gravidez. Os dados do presente estudo somam-se a tais conclusões, revelando, no contexto local investigado, características comuns no mundo todo.
Portanto, para contribuir efetivamente com o consumo alimentar adequado de gestantes, os serviços de saúde devem considerar a influência do ambiente sobre o modo como elas se alimentam e fazem suas escolhas, sendo necessário compreender suas perspectivas e, ao mesmo tempo, propor negociação sobre mudanças no comportamento alimentar. Destaca-se, assim, a influência poderosa que muitas vezes é gerada pela família, visto que há evidência teórica, prática e científica de sua acepção para a saúde e o bem-estar de seus membros(13).
Também, no presente estudo foi possível constatar, incluídas nesse repertório de influências, prescrições e proibições de profissionais de saúde que atenderam as gestantes.
Suscita-se, frente a esses achados, a reflexão sobre as consequências do que é imposto pelo universo tecnicista, biomédico e, por vezes, autoritário desses profissionais, em relação às atitudes e às práticas das gestantes, ante as suas concepções e experiências prévias. Dessa forma, reforça-se que é essencial que as particularidades e os desejos sejam considerados e incorporados no encontro entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, oportunizando que as intervenções tornem-se flexíveis, para possibilitar reflexos positivos na vida desses últimos(14).
Os resultados referentes às expectativas das gestantes entrevistadas sobre a atenção em razão do serviço de saúde denotam que as informações educativas durante as consultas de pré-natal e a realização de grupos educativos podem ser efetivas para o aprendizado e compreensão das orientações. Portanto, o pré-natal se constitui em um momento valioso e privilegiado de contextualização do ciclo de vida individual das gestantes e posteriores discussões sobre orientações para hábitos saudáveis.
De fato, sabe-se que de forma complementar, os grupos educativos de gestantes são uma alternativa de promoção de espaços de discussão sobre hábitos saudáveis, ansiedades e assuntos inerentes ao processo gestacional por meio do intercâmbio de experiências(15,16).
Emergiu, dos depoimentos, a necessidade de se ter um olhar específico e de atenção às gestantes sem condições materiais para suprir suas necessidades alimentares. Por um lado, alguns depoimentos continham um apelo assistencialista, no sentido contrário do conceito de autonomia, autodeterminação e independência funcional e moral dos indivíduos; por outro lado, houve destaque à importância da equipe de saúde propor estratégias alternativas para orientar e apoiar aquelas gestantes que apresentarem dificuldades econômicas para a aquisição de alimentação adequada. Cabe ressaltar que, provavelmente, a expectativa apresentada por algumas das participantes deste estudo está alicerçada na existência histórica de políticas e programas sociais oficiais que se baseiam no fornecimento de benefícios (alimentos ou complementação de renda) para suprir as necessidades básicas da população de baixa ou nenhuma renda.
CONCLUSÃO
Nas concepções das gestantes sobre alimentação, destacou-se o reconhecimento da importância da ingestão de alimentos saudáveis e da mudança de hábitos alimentares nesse período, devido às consequências positivas, especialmente para o concepto.
As experiências alimentares descritas por elas revelaram-se fortemente influenciadas por aspectos do contexto sociocultural e econômico, porém observou-se a relevância da elaboração de dois constructos (ou conceitos) de cunho subjetivo: disciplina e força de vontade na efetivação de práticas alimentares saudáveis.
A realização de orientações e a promoção de momentos de discussão sobre o assunto durante as consultas de pré-natal também foram reconhecidas e valorizadas pelas participantes do estudo como meios de incentivo à alimentação saudável.
Observa-se, como elemento presente em relação ao fenômeno estudado, o discernimento das gestantes sobre sua responsabilidade em relação ao que faz bem a sua saúde e a dos filhos que estavam gerando. Contudo, constatou-se que elas necessitam compartilhar essa responsabilidade com a equipe de saúde que as acompanha no serviço pré-natal, de forma que se estimule a reflexão e discussão para construções conjuntas de novos saberes e práticas.
Considerando-se os pressupostos da Sociologia Compreensiva do Cotidiano, os resultados dessa pesquisa permitem recomendar que as atividades de educação e apoio nutricional durante o acompanhamento pré-natal em USF, tanto em consultas individuais quanto em trabalhos de grupos, sejam realizadas de forma participativa, reflexiva e culturalmente contextualizada. Também, que essas intervenções sejam pautadas em elementos subjetivos do cotidiano das gestantes, especialmente, desenvolvendo processos que favoreçam a motivação pessoal e o incentivo à disciplina alimentar, a fim de que as práticas saudáveis sejam, de fato, incorporadas.
O referencial teórico adotado destaca a importância, na análise do cotidiano, de se levar em conta diferentes olhares sobre o fenômeno estudado. Sendo assim, o fato desta pesquisa focar exclusivamente a perspectiva das gestantes, constitui limitação a ser superada em futuras investigações que considerem a visão de outros envolvidos.
Por fim, destaca-se que, embora este estudo focalize uma realidade específica, ao ampliar os conhecimentos científicos sobre as implicações dos aspectos subjetivos nas práticas alimentares no período gestacional, pode trazer importante contribuição para qualificar intervenções nutricionais em realidades semelhantes.
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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf
Recebido: 26/02/2013
Revisado: 26/03/2014
Aprovado: 29/04/2014