ARTIGOS ORIGINAIS
Experiência de mulheres com a cesariana sob a ótica da fenomenologia social
Greyce Pollyne Santos Silva1, Maria Cristina Pinto de Jesus2, Miriam Aparecida Barbosa Merighi3, Selisvane Ribeiro da Fonseca Domingos3, Deíse Moura de Oliveira4
1Centro Universitário do Espírito Santo
2Universidade Federal de Juiz de Fora
3Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
4Universidade Federal de Viçosa
INTRODUÇÃO
A cesariana é uma cirurgia indispensável na obstetrícia moderna, contudo constitui objeto de discussão em nível mundial por seu uso indiscriminado(1). Este procedimento pode ser programado quando a mulher já tem uma indicação clínica e nos casos que configurem urgência relativa às intercorrências no momento do parto(2).
Mundialmente, atenta-se para as altas taxas de cesariana em diversos países como o Irã e a República Dominicana (41,9%), Itália (38,2%), México (37,8%), Argentina e Cuba (em torno de 35%) e Estados Unidos (30,3%)(3). Este panorama é também evidenciado no Brasil, que apresenta um dos maiores índices mundiais de cesariana, próximo de 80% no setor de saúde suplementar e de 30% no Sistema Único de Saúde(4).
A prática indiscriminada de cesariana traz à tona a preocupação com a mortalidade materna. Um estudo analisou os óbitos maternos ocorridos em uma maternidade pública de Fortaleza-CE e identificou que as causas de óbito por síndrome hipertensiva gestacional e infecção estavam associadas à realização de cesariana(5).
Na Suécia, uma investigação revelou que algumas mulheres ressentiam ter seus filhos via cesariana por medo de complicações no parto e dificuldades em gestações futuras. Acreditavam ser este o procedimento responsável por morte materna, recuperação pós-parto prolongada e queixas com o pós-operatório e analgesia. Ainda assim, preferiram por este ato cirúrgico, o que pode explicar a elevada taxa de cesariana naquele país(6).
Uma revisão sistemática com metanálise, que incluiu estudos publicados em diferentes idiomas, apontou que a média global de preferência de mulheres pela cesariana, nos estudos compilados, foi de 15,6%.
A ocorrência da predileção por esse tipo de parto foi maior naquelas com uma cesariana anterior e as que viviam em países com uma renda per capita média. Nos países latino-americanos, evidenciou-se uma maior preferência da mulher pela cesariana (24,4%), enquanto que, nos Estados Unidos e Canadá, o percentual registrado é de 16,8%. Os autores concluíram que, em nível global, constituem uma minoria as mulheres que tiveram como preferência a cesariana(7).
No Brasil, esse dado se confirma. Um estudo mostrou que 70% das mulheres não relataram preferência pela cesariana, embora, independentemente do seu desejo, a interação com o serviço de saúde resultou na cesariana como via de parto(8). Apesar da preferência pelo parto vaginal, evidencia-se que fatores como tabus e medos relacionados à dor, à demora no pré-parto e à experiência negativa da mulher em relação ao parto vaginal anterior favorecem a escolha pela cesariana(9).
Um estudo de revisão integrativa da literatura revelou que, embora as mulheres mencionassem dores no pós-operatório, dificuldades na recuperação e no retorno às atividades sexuais, elas consideraram a cesariana uma experiência agradável por ser um procedimento rápido e passível de planejamento(10).
Considerando as altas taxas de cesariana e de morbidades relacionadas a este procedimento cirúrgico, especialmente no Brasil, considera-se relevante elucidar para além da perspectiva numérica como a cesariana acontece, a partir do ponto de vista de mulheres que foram a ela submetidas.
As seguintes inquietações nortearam este estudo: como se dá a decisão pela cesariana? Como é para a mulher passar pela experiência de ter seu primeiro filho via cesariana? Após a experiência da cesariana, quais as expectativas que a mulher tem em relação ao próximo parto?
Diante do exposto, objetivou-se compreender a experiência da mulher primípara com a cesariana. A compreensão dessa experiência poderá propiciar atitudes profissionais compatíveis com as necessidades e expectativas das mulheres em relação ao parto.
MÉTODO
Pesquisa qualitativa, fundamentada na fenomenologia social de Alfred Schütz. Foi realizada com oito puérperas que se submeteram à cesariana como primeira experiência de parto, vinculadas ao setor de saúde suplementar de uma cidade do interior de Minas Gerais, Brasil. A escolha deste cenário justifica-se por ele apresentar, no Brasil, as maiores taxas de realização de cesariana.
Foram incluídas mulheres primíparas, cuja gravidez foi de baixo risco e que haviam passado pela experiência da cesariana em um período mínimo de 30 dias. A primiparidade foi eleita, considerando-se a ampla gama de expectativas envolvida na primeira experiência de parto. Considerou-se que, durante os primeiros dias após a cesariana, a mulher volta-se para os cuidados do bebê, aleitamento materno e para as mudanças em seu corpo. Após esse mês inicial, possivelmente, terá elaborado e refletido melhor a sua experiência com a cesariana, o que culmina em uma maior riqueza de significados.
Optou-se por excluir da pesquisa mulheres adolescentes, por considerar ser uma faixa etária dotada de especificidades incongruentes com a mulher adulta, bem como as que passaram pela cesariana de emergência, já que, nesse caso, não houve escolha da mulher, mas uma indicação da intervenção cirúrgica.
A escolha das puérperas se deu mediante consulta dos livros de registros de partos de mulheres assistidas por um convênio de saúde. As que atendiam aos critérios de inclusão foram abordadas via telefone, momento em que se deu a definição do dia, horário e local da entrevista, de acordo com a disponibilidade das depoentes. As entrevistas foram realizadas em outubro de 2012, no domicílio das participantes, as quais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e autorizaram o uso do gravador. As seguintes perguntas nortearam as entrevistas: como foi sua experiência com a cesariana? Considerando esta experiência, o que você espera para o próximo parto?
A duração média do encontro do pesquisador com as participantes foi em torno de 30 minutos, considerando a interação inicial e a entrevista propriamente dita. O número de participantes não foi definido a priori, tendo sido a coleta de dados encerrada no momento em que as inquietações foram respondidas e o objetivo do estudo alcançado. Todas as puérperas eram casadas, tinham idades entre 23 e 35 anos e a maioria tinha ensino superior completo.
Para garantir o anonimato das puérperas, elas foram identificadas com a letra “P”, seguida de números arábicos de acordo com a ordem em que se realizaram as entrevistas (P1 a P8).
A organização e a categorização do material obtido nos depoimentos seguiram os passos adotados em estudos realizados por pesquisadores da fenomenologia social de Alfred Schütz(11): leitura atenta dos depoimentos e seleção das unidades de significados que permitiram a construção das categorias concretas em relação à experiência das mulheres e discussão dos resultados a partir do referencial teórico-metodológico e temático. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, conforme o Parecer nº 114.173/2012.
RESULTADOS
A organização dos resultados teve como fio condutor a teoria da ação social proposta por Alfred Schütz, em que o sujeito interpreta os fatos a partir de seus motivos existenciais, derivados das vivências inscritas na subjetividade. Estes conduzem ao comportamento/ação no mundo social. Os motivos que se relacionam ao alcance de objetivos são chamados “motivos para” e aqueles que se fundamentam na experiência vivida no âmbito biopsicossocial são denominados “motivos porque”(12).
A experiência das puérperas em relação à cesariana revela os motivos “porque” e “para” do comportamento das(do) pessoas/grupo no mundo social, traduzido neste estudo pelas categorias: “a decisão pela cesariana”, “o pós-parto cirúrgico”, “a necessidade de cuidados” e “a idealização do próximo parto”.
Categoria 1: A decisão pela cesariana
Ao refletirem sobre a experiência vivida com a cesariana, as mulheres, inicialmente, expressam os motivos que justificaram a decisão por este tipo de parto, destacando o medo do parto vaginal, associado à dor e ao sofrimento advindos do trabalho de parto:
O tempo todo passava na minha cabeça o sofrimento da mãe durante o parto [...] por que eu iria ficar sentindo dor durante muito tempo se tem outra opção? ] eu estava segura da minha decisão (P1).
] no final da gravidez, eu fui várias vezes ao meu médico com medo de ter parto normal [...]. Desde quando eu engravidei, eu optei pela cesárea (P8).
As mulheres evidenciam a influência de pessoas próximas – como o marido e a mãe – na decisão pela cesariana:
] eu queria o parto normal [...] só que meu marido não concordou. A decisão da cesárea partiu dele e eu concordei (P4).
A decisão de fazer a cesariana foi até por influência da minha mãe, porque, quando eu nasci, [...] foi um parto com fórceps. E minha mãe conta que foi difícil demais [...] então, a vida inteira eu fui ouvindo isso [...] (P6).
As mulheres tiveram a oportunidade de conversar com o médico sobre a opção pelo tipo de parto e revelaram que, mesmo tendo recebido orientações sobre os benefícios do parto normal, estavam decididas pela cesariana:
] na primeira consulta, o médico colocou vários benefícios do parto normal. [...] Aí rompeu a bolsa, ele falou: “vai ter o bebê normal ou vai fazer cesárea?” Eu disse: “quer saber, vou agendar a cesárea”. [...] aí ele respeitou, não questionou [...] ele deixou bem aberto para eu escolher [...] eu já tinha optado pela cesárea (P5).
Minha médica, desde o começo, me deixou muito tranquila. [...] E ela falava: “vamos tentar o parto normal que é o seu primeiro filho, você tem toda a condição de ter um parto tranquilo”, mas eu não quis! [...] no oitavo mês, ela ainda insistiu: “vamos tentar, está tudo bem”. Eu disse: “não, vou querer a cesariana” (P6).
Por estar decidida pelo parto via cesariana, uma mulher relatou ter ido a busca de um profissional reconhecidamente favorável à realização desse tipo de parto:
] meu médico não faz parto normal [...]. Eu já sabia disso. [...] eu queria cesárea, por isso eu fui nele (P2).
Após as mulheres decidirem pela cesariana, o medo e a ansiedade continuaram presentes, porém em outra dimensão. Tais sentimentos passam a associar-se com a anestesia e a recuperação pós-operatória:
O que me preocupava era a anestesia, porque cada um falava uma coisa [...] (P1).
Eu tinha medo. Eu não queria fazer a cesárea por causa da recuperação pós-parto [...] (P5).
Categoria 2: O pós-parto cirúrgico
As puérperas relataram satisfação com a cesariana, mas destacaram que o período pós-operatório imediato foi difícil em razão das reações da anestesia, dores, dificuldade na mobilidade e o cuidado com o bebê:
Foi muito emocionante ver o nenê logo que ele nasceu [...]. O difícil foi levantar logo após a cirurgia, sair da cama para tomar um banho [...] ainda ter que cuidar da criança [...] porque dá uma tontura. Um mal-estar. [...] (Ψ).
[...] a cesárea foi muito boa. [...] mas, do segundo dia para cá, eu senti muita dor (P2).
[...] a recuperação foi excelente, mas [...] precisei de ajuda para movimentar, dar de mamar (P5).
Uma das participantes avalia como negativa a experiência da cesariana:
[...] na hora de fazer a cesárea, eu comecei a tremer de medo. [...] eu ia fazer uma cirurgia. Eu achava que não veria meu bebê [...]. Doeu para aplicar aquela anestesia em mim [...] Eu senti muita dor depois do parto. Era difícil para cuidar do bebê [...]. Eu não podia falar porque dava gases. Foi horrível [...]. (P4)
Categoria 3: A necessidade de cuidados
Considerando ser a cesariana um procedimento cirúrgico que requer cuidados pós-operatórios, a mulher ressalta a importância do suporte profissional para cuidar do recém-nascido, especialmente no que diz respeito ao contato precoce mãe-filho e ao apoio para a amamentação:
O que eu senti falta na cesariana foi de ter o contato com o meu filho. Mesmo deitada, eu tentei amamentar. Só que não deu muito certo. [...] tentaram colocar ele no meu peito e ele não conseguia pegar. A posição era horrível para mim [...] ele sugava e não saía nada (P1).
[...] eu não conseguiria levantar da cama [...] é difícil cuidar do bebê [...] é complicado, porque as enfermeiras não estão lá o tempo todo à disposição (P6).
Categoria 4: A idealização do próximo parto
A experiência positiva da mulher com a cesariana a leva à idealização desse tipo de parto no porvir:
Eu faria cesariana novamente [...]. Foi muito boa a experiência. Não senti nada (P2).
Em hipótese alguma eu faria parto normal. [...] a experiência que tive de parto cesáreo foi muito boa (P8).
Ao manifestar sua expectativa de submeter-se novamente a uma cesariana, a mulher traz à tona a questão do medo do parto vaginal para justificar a sua decisão:
Quero cesárea de novo. Tenho medo do parto normal [...]. Se for possível, quero tudo programado para não sentir dor [...] (P3).
[...] Se eu tiver outro filho, será cesariana de novo [...]. Eu acho que não me daria bem com a angústia do parto normal (P6).
Eu acredito que vai ser cesárea de novo. [...] fiquei assustada com as contrações (P7).
Uma das mulheres cuja decisão pela cesariana não partiu dela mesma deixa explícita em seu depoimento a frustração de não ter realizado o parto vaginal e o desejo de não ter mais filhos:
[...]. Eu queria ter um parto normal. Se for para ter cesárea, eu não quero ter mais filhos. Eu não quero passar por tudo que eu passei [...] (P4).
DISCUSSÃO
A decisão pela cesariana revelou-se, neste estudo, como um aspecto relevante da experiência das mulheres nesse tipo de parto. Essa decisão ocorreu ainda no período gestacional e foi fortemente influenciada pelo medo da dor proveniente do trabalho de parto.
Culturalmente, a escolha da mulher pela cesariana é impactada pelo medo e pelas preocupações atreladas à dor do parto vaginal, geralmente oriundos de experiências repassadas por pessoas próximas ao seu convívio. Estas experiências constituem fenômenos socioculturais que levam as mulheres a enxergar o parto normal associado à dor advinda da dinâmica do processo de parturição(13).
Para compreender as questões que se apresentam ao cotidiano, a pessoa se reporta ao acervo de conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Este é constituído primariamente por meio dos progenitores e, posteriormente, pelos educadores e pelas experiências concretas, que estruturam continuamente este acervo de conhecimentos, de acordo com a sua posição no mundo social – situação biográfica(12).
Desse modo, a mulher que espera um filho traz neste acervo valores e crenças culturalmente repassadas, despertando o medo do parto vaginal, especialmente da dor.
Em muitas culturas e grupos sociais, inclusive no Brasil, o parto é associado à ansiedade e ao medo. Tais sentimentos geram uma expectativa negativa em relação ao nascimento que, transmitida entre as gerações, constitui um componente cultural que fortalece a representação da dor do parto normal como sinônimo de sofrimento(14).
O conhecimento é socialmente construído e acessível por meio da tipificação que pode ser expressa em situações positivas e negativas. A tipificação constitui-se em uma elaboração objetiva que pode ser expressa mediante a linguagem significativa, sendo reconhecida e compreendida por aqueles que vivenciam uma situação semelhante(12).
Nesse sentido, o medo e a dor são tipificações sobre o parto normal que, se trabalhadas pelos profissionais de saúde, podem ser superadas, levando a mulher a decidir pelo parto que lhe trará maiores benefícios.
Um estudo realizado com gestantes no último trimestre de gravidez no sistema público e privado de saúde de Joinville, Santa Catarina, revelou que a cesárea a pedido da mulher foi fortemente influenciada pelo medo da dor do trabalho de parto. Entre outros fatores, revelou o medo do próprio desempenho no trabalho de parto, de comprometer o bem-estar fetal, do desconhecido e imprevisível, considerando o conhecimento da história de outras mulheres parturientes(13).
Contrapondo-se aos resultados da presente pesquisa, um estudo com primigestas do estado de Goiás, Brasil, mostrou, a partir da experiência com o parto normal, que a maioria das participantes considerou a dor como um fenômeno natural inerente ao parto e de domínio feminino, sendo desmitificado o sentido de dor como fenômeno de sofrimento. Este sentido foi construído quando houve a legitimação de cada parturiente como agente ativo no parto. Foi identificado que a dor do parto faz parte da natureza da mulher, sendo um elemento importante para a dinâmica de parturição e para a revelação da força da mulher e de seu empoderamento(14).
Ainda no que tange à decisão pela cesariana, emergiu dos discursos que as mulheres, apesar do desejo de passar pela experiência do parto normal, optaram por cesariana sob a influência de pessoas significativas, como mães e maridos.
De modo semelhante, um estudo transversal sobre a trajetória das mulheres na definição pela cesárea, realizado em duas maternidades do estado do Rio de Janeiro, apontou a influência do parceiro na decisão da mulher. Ademais, foram componentes significativos no processo decisório da mulher o medo e as histórias prévias atrelados ao parto normal(8).
Com relação à participação do médico no contexto da decisão pela cesariana, a mulher revela que este profissional acatou a sua decisão por esse tipo de parto. Reitera que a participação deste profissional, explicitando os benefícios do parto vaginal e/ou incentivando-a a realizá-lo, não a fez mudar de decisão. Isso foi corroborado por um estudo com gestantes atendidas por convênios de saúde, o qual revelou que, no processo de negociação entre a mulher e o médico obstetra favorável ao parto normal, prevaleceu a posição da mulher pela cesárea(15).
Existem, por outro lado, profissionais adeptos à realização da cesariana, os quais, muitas vezes, são procurados pela mulher para realizar esse tipo de parto, o que foi evidenciado por uma depoente no presente estudo. Há ainda casos que a mulher não está decidida pela realização da cesariana e que o médico a influencia nessa decisão. Uma pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro com mulheres primíparas, assistidas no setor privado de saúde, evidenciou a influência, ora explícita, ora sutil, do médico na decisão da mulher pela cesárea. A relação de confiança entre as mulheres e o obstetra, construída ao longo do pré-natal, tornou a mulher mais influenciável à cesariana – tipo de parto de predileção do profissional – por medo da ocorrência de um fato negativo, caso insistissem em tentar o parto vaginal(16).
No cotidiano dos serviços de saúde, observa-se que, na maioria das vezes, as mulheres não recebem, por parte do obstetra, informações claras sobre as vantagens e desvantagens dos diferentes tipos de parto(8). Mesmo quando o profissional fornece informações à gestante, o diálogo entre médico-paciente sobre as questões relacionadas aos tipos de parto tem se mostrado insuficiente para instrumentalizá-la na tomada de decisão(13), o que a torna mais vulnerável a influências alheias, sejam de membros da sua família ou do profissional que a assiste.
Ressalta-se, nesse contexto, a importância do estabelecimento da relação face a face entre o profissional e a mulher, sendo tal relação permissível para uma interação autêntica e recíproca entre ambos.
Esta reciprocidade é percebida quando objetos reais ou potencialmente comuns são escolhidos e interpretados de maneira idêntica pelos sujeitos no mundo social(12). Nesse sentido, apesar de estarem posicionados biograficamente em diferentes situações, a mulher e o médico obstetra, mediados por uma relação recíproca, voltam-se do mesmo modo para a compreensão do que envolve a situação do parto e nascimento, viabilizando um diálogo inteligível e congruente entre ambos.
Isso denota a importância de proporcionar às mulheres uma experiência positiva de parto, independentemente do tipo, por meio de uma relação que gere segurança e informação suficiente às mulheres no processo de parto e nascimento(17).
É importante salientar que, ainda que a mulher avalie positivamente a cesariana e opte por ela, o medo pode permanecer, estando este atrelado à anestesia e ao pós-operatório, como evidenciado nos discursos. Este achado vai ao encontro do que foi explicitado em um estudo com mulheres que foram submetidas à cesariana. Estas associaram a este tipo de parto a ocorrência de reações anestésicas e de dificuldades na recuperação pós-operatória(10).
Ao refletir sobre sua experiência com a cesariana, as mulheres geralmente avaliaram-na como positiva. Isso é evidenciado na literatura, que aponta que, mesmo com as possíveis complicações obstétricas, a mulher pode considerar a experiência da cesárea positiva(17). Ademais, a ausência da dor no trabalho de parto coloca a cesárea como um procedimento cirúrgico desejável, que possibilita a realização da laqueadura e o desfrutar com segurança do parto(10).
Quanto às necessidades de cuidado apontadas pelas participantes, ressaltam-se aquelas relacionadas à amamentação e cuidados com o recém-nascido. Um estudo realizado no interior de São Paulo, com 60 mulheres submetidas à cesariana em maternidades do Sistema Único de Saúde, apontou que todas apresentaram limitações para a realização de atividades cotidianas no pós-operatório. Destas, 40% apresentaram dificuldades relacionadas à amamentação. É importante destacar que esta puérpera apresenta uma condição particular, relacionada à maior necessidade de se movimentar para cuidar do recém-nascido e de si(18).
Tendo em vista a experiência majoritariamente positiva com a cesariana, a mulher explicita o desejo de, em caso de ter mais filhos, ser novamente a ela submetida, em função da recuperação satisfatória e da ausência de dor no momento do parto. A experiência da parturição, seja ela positiva ou negativa, fornece subsídios para a decisão de seus próximos partos. As positivas reforçam a escolha pela mesma via de parto e as negativas, ao contrário, repercutem em outra escolha para o próximo parto. Por exemplo, se as mulheres sentem-se satisfeitas com a cesárea, a tendência é repetir o procedimento na próxima gestação; caso a experiência da cesárea seja traumática, tendem a mudarem de opinião em decisões futuras(13).
Estudo realizado na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, revelou a crença das mulheres de que a decisão pelo tipo de parto deve ocorrer a partir da escolha informada que inclua o conselho de seus médicos. Esta evidência traz, novamente, à tona a influência do médico na decisão da mulher, uma vez que, mesmo não desejando a cesariana, às mulheres estavam repetindo o procedimento porque, segundo as informações repassadas por seus profissionais, elas tinham problemas obstétricos que as impossibilitariam optar pelo parto normal(19).
A expectativa de não ter mais filhos caso tenha que se submeter a outra cesariana foi revelada por uma das participantes após a experiência negativa com a cirurgia. Sua decisão anterior pela cesariana se deu por influência de pessoas próximas, tendo sido submetida à cirurgia com o ideário do parto vaginal ainda entendido como a melhor opção de parto. Esta evidência está em conformidade com um estudo que levantou a possibilidade de a mulher se sentir frustrada por ter experienciado a cesariana, quando, na realidade, desejava o parto normal(16).
Além disso, as mulheres que tiveram problemas de saúde e complicações obstétricas no período pós-parto são menos propensas a fazer a mesma escolha para o nascimento do próximo filho, pois refletem sobre suas experiências e fazem outras escolhas(20). Por outro lado, algumas mulheres, mesmo após enfrentarem dificuldades no parto, não o consideram como uma experiência negativa. Isso demonstra que dar à luz é uma experiência individual e pode não estar atrelada à sua história obstétrica(17).
Uma vez que este estudo foi realizado com mulheres vinculadas a um convênio de saúde de uma determinada realidade sociocultural, traz uma perspectiva de compreensão da experiência da mulher com a cesariana, o que inviabiliza a generalização dos resultados.
CONCLUSÃO
A compreensão da vivência da mulher primípara com a cesariana mostra que o medo do parto vaginal, visto como causador de dor e sofrimento, perpassa a trajetória da mulher da gestação ao puerpério. Esse medo influencia sua expectativa em relação ao próximo parto, fazendo com que ela continue elegendo a cirurgia como opção.
Considera-se relevante a participação do profissional de saúde na instrumentalização dessa mulher, no intuito de desmitificar tabus e crenças que envolvem o parto normal. Quanto à cesariana, é importante a orientação acerca das reações advindas desse tipo de parto e suas implicações no pós-parto, no que diz respeito à recuperação cirúrgica e as dificuldades no cuidado ao recém-nascido. Essa instrumentalização pode ser um caminho para fazer valer o respeito à autonomia da mulher na decisão sobre o tipo parto que lhe proporcionará maior segurança.
A abordagem teórico-metodológica da fenomenologia social contribuiu no sentido de compreender a experiência da mulher que se submeteu à cesariana, sob uma perspectiva que valoriza a dimensão social circunscrita na vivência dessa mulher.
Aos profissionais de saúde e pesquisadores, ressalta-se a necessidade de atentarem para os fatores que envolvem a decisão pela cesariana e os desdobramentos dessa decisão na vida da mulher, em especial, no que tange ao cuidado com o recém-nascido. Nesse sentido, cabe investir em ações assistenciais consoantes às demandas apresentadas pela mulher, desde a gestação ao período puerperal.
REFERÊNCIAS
1. Machado Junior LC, Sevrin CE, Oliveira E, Carvalho HB, Zamboni JW, Araújo JC, Marcolin M, Caruso P, Awada PF, Giunta RZ, Munhoz W, Sancovski M, Peixoto S. Associação entre via de parto e complicações maternas em hospital público da Grande São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2009; 25(1): 124-132.
2. Ministério da Saúde (Brasil). Secretária de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Gestação de alto risco-Manual Técnico. 5. Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.
3. Gibbons L, Belizán JM, Lauer JA, Betrán AP, Merialdi M, Althabe F. The Global Numbers and Costs of Additionally Needed and Unnecessary Caesarean Sections Performed per Year: Overuse as a Barrier to Universal Coverage. World Health Organization. [ Internet ]. 2010 July 09; [ Cited 2013 February 14 ] Available from: http://www.who.int/healthsystems/topics/financing/healthreport/30C-sectioncosts.pdf
4. Amorim MMR, Souza ASR, Porto AMF. Indicações de cesarianas baseadas em evidências: parte I. FEMINA, 2010; 38(8):415-22.
5. Herculano MMS; Veloso LS, Teles LMR, Oriá MOB, Almeida PC, Damasceno ALC. Óbitos maternos em uma Maternidade Pública de Fortaleza: um estudo epidemiológico. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(2):295-301.
6. Essen BN, Binder P, Johnsdotter S. An anthropological analysis of the perspectives of Somali women in the West and their obstetric care providers on caesarean birth. J Psychosom Obstet Gynaecol. 2011; 32(1): 10–8.
7. Mazzoni A, Althabe, F, Liu NH, Bonotti AM, Gibbons L, Sánchez AJ, Belizán JM. Women’s preference for cesarean section: a systematic review and meta-analysis of observational studies. BJOG. 2011; 118(4):391–9.
8. Dias MAB, Domingues RMSM, Pereira APE, Fonseca SC, Gama SGN, Theme FMM. Trajetória das mulheres na definição pelo parto cesáreo: estudo de caso em duas unidades do sistema de saúde suplementar do estado do Rio de Janeiro. Ciênc. saúde coletiva. 2008; 13(5): 1521-34.
9. Ramvi E, Tangerud M. Experiences of women who have a vaginal birth after requesting a Cesarean section due to a fear of birth: A biographical, narrative, interpretative study. Nurs Health Sci. 2011; 13(3): 269–74.
10. Velho MB, Santos EKA, Brüggemann OM, Camargo CV. Vivência do parto normal ou cesáreo: revisão integrativa sobre a percepção de mulheres. Texto contexto enferm. 2012; 21(2): 458-66.
11. Domingos SRF, Merighi MAB, Jesus MCP. Experience and care for spontaneous abortion: phenomenological study Online Brazilian Journal of Nursing [ serial on the Internet ]. 2011 October 17; [ Cited 2012 April 8 ] 10(2). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3236
12. Schutz A, Luckmann T. Las estructuras del mundo de la vida. 2ª reimp. Buenos Aires: Amorrortu; 2009.
13. Pereira RR, Franco SC, Baldin N. A Dor e o Protagonismo da Mulher na Parturição. Rev Bras Anestesiol. 2011; 61(3): 376-88.
14. Almeida NAM, Medeiros M, Souza MR. Sentidos da dor do parto normal na perspectiva e vivência de um grupo de mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde. Rev Min Enferm. 2012; 16(2):232-40.
15. Pires D, Fertonani HP, Conill EM, Matos TA, Cordova FP, Mazur CS. A influência da assistência profissional em saúde na escolha do tipo de parto: um olhar sócio antropológico na saúde suplementar brasileira. Rev Bras Saude Mater Infant. 2010; 10(2): 191-7.
16. Cardoso JE, Barbosa RHS. O desencontro entre desejo e realidade: a indústria da cesariana entre mulheres de camadas médias no Rio de Janeiro, Brasil. Physis Rev Saúde Coletiva. 2012; 22(1): 35-52.
17. Størksen HT, Garthus-Niegel S, Vangen S, Eberhard-Gran M. The impact of previous birth experiences on maternal fear of childbirth. Acta Obstet Gynecol Scand. 2012.[ Epub ahead of print ].
18. Sousa L, Pitangui ACR, Gomes FA, Nakano AMS, Ferreira CHJ. Mensuração e características de dor após cesárea e sua relação com limitação de atividades. Acta paul. enferm. 2009; 22(6): 741-7.
19. Romero ST, Carol C. Coulson CC, Galvin SL. Cesarean delivery on maternal request: western North Carolina perspective. Matern Child Health J. 2012; 16:725–34.
20. Shorten A. Shorten B. The Importance of Mode of Birth After revious Cesarean: Success, Satisfaction, and Postnatal Health. J Midwifery Womens Health. 2012; 57(2): 126-32.
Contribuição dos autores: Concepção e desenho: todos; Análise e interpretação: todos; Escrita do artigo: todos; Revisão crítica e aprovação final do artigo: Maria Cristina Pinto de Jesus.
Recebido: 21/02/2013
Revisado:16/03/2014
Aprovado:16/03/2014