ARTIGOS ORIGINAIS

 

Prevenção de doenças sexualmente transmissíveis por mulheres homossexuais e bissexuais: estudo descritivo

 

 

Patrícia Maria Gomes de Carvalho1, Bibiana Sidartha Martins Nóbrega2, Jayce Lima Rodrigues2, Rejane Oliveira Almeida2, Fernanda Tavares de Mello Abdalla1, Lucia Yasuko Izumi Nichiata1

1Universidade de São Paulo
2Centro Universitário UNINOVAFAPI

 


RESUMO
Objetivos: identificar a percepção das mulheres homossexuais e bissexuais sobre a assistência nos serviços de saúde e as formas de prevenir as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST).
Método: estudo exploratório, descritivo e qualitativo, realizado com nove mulheres homossexuais e bissexuais. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada e tratados por análise temática.
Resultados: Estas mulheres reconhecem a busca por assistência e cuidados com a saúde como fundamental. Tem conhecimento sobre as DST, desconhecem doenças relacionadas às relações homossexuais e utilizam métodos inadequados e improvisados de prevenção das DST.
Discussão: mulheres homossexuais e bissexuais apresentam-se vulneráveis às DST e a outros agravos preveníveis.
Conclusão: Os profissionais de saúde têm dificuldade em escutar e acolher de forma adequada estas mulheres. Propõe-se um diálogo entre os serviços de saúde e esta população para identificar necessidades de saúde e promover ações para prevenção de doenças e promoção da saúde.
Descritores: Saúde da Mulher; Homossexualidade; Homossexualidade Feminina; Doenças Sexualmente Transmissíveis; Assistência à Saúde


 

INTRODUÇÃO

A implementação de políticas públicas que abordam a saúde da mulher no Brasil teve início nas ações de saúde relativas aos cuidados durante a gravidez e o parto, em 1930. Nesse período, tais políticas traduziam uma visão restrita à atenção materno-infantil, baseada em sua especificidade biológica e seu papel social de mãe e doméstica, responsável pela criação, educação e cuidado com a saúde da prole e demais familiares(1).

Em 1984, com a criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), o país deu início a estruturação de uma política ampliada de saúde reprodutiva, indo além do período gravídico(2).

Efetivamente em 2004, foi lançada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher com o intuito de expandir a atenção voltada à saúde da mulher, incorporando questões que tratam não apenas da saúde reprodutiva, mas também das relações de gênero e sexualidade(3).

A despeito dos avanços na área de saúde das mulheres, respostas às necessidades de homossexuais e bissexuais ainda foram pouco discutidas e incorporadas no cenário das políticas públicas de saúde. Como iniciativa de destaque vale citar a criação, em 2010, da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), cuja finalidade principal é promover maior equidade desta população no Sistema Único de Saúde (SUS)(4).

Os cuidados à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais ainda são invisíveis ou entendidos como meio para reprodução, entendimento este que advém da função social da maternidade heterossexual(1). Esta invisibilidade resulta na ampliação dos contextos de vulnerabilidade de mulheres que, quando recorrem aos serviços de saúde, não são orientadas adequadamente para o exercício da sexualidade autônoma, segura e protegida.

O reconhecimento da população lésbica e bissexual como sujeito de direitos a cuidados diferenciados em saúde induz a necessidade de se prestar uma assistência que respeite as especificidades dessas mulheres. Ao mesmo tempo, destaca-se que as melhorias na atenção à saúde também têm potencial para fomentar melhores condições de saúde e de qualidade de vida das mulheres lésbicas e bissexuais(5). Portanto, um primeiro passo nesta direção é tornar visíveis suas necessidades de saúde.

A literatura científica do Brasil, no que concerne aos cuidados em saúde das mulheres homossexuais e bissexuais, ainda é escassa e pouco se conhece a respeito da saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres. Buscando colaborar com a produção de conhecimento sobre a temática, este estudo tem como objetivos: identificar a percepção das mulheres homossexuais e bissexuais sobre a assistência nos serviços de saúde e as formas de prevenir as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e discuti-las diante do referencial de vulnerabilidade, na garantia de direito à saúde e da responsabilidade dos profissionais de saúde na assunção do seu compromisso com a equidade no acesso aos serviços assistenciais.

 

MÉTODO

Trata-se de estudo descritivo, de caráter exploratório e abordagem qualitativa, realizado com mulheres participantes de um grupo de apoio às LGBT. Este desenvolve ações de reconhecimento e luta pela garantia dos direitos homossexuais, e localiza-se em Teresina, Piauí. O estudo foi realizado no período de janeiro a abril de 2012. Participaram do estudo sete mulheres lésbicas e duas bissexuais. As participantes foram selecionadas por meio de amostragem aleatória, com base na conveniência e acessibilidade aos participantes. O estudo incluiu mulheres lésbicas e bissexuais que tinham idade igual ou superior a 18 anos, que estavam cadastradas e participando regularmente das reuniões do grupo e que aceitaram participar do estudo assinando um Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

Os dados foram coletados em local previamente estabelecido pelas participantes por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas em aparelho de mídia digital que duraram, em média, 20 minutos. Para tanto, um roteiro foi previamente elaborado pelos autores.

A análise dos dados seguiu o referencial teórico-metodológico da análise temática proposta por Minayo(6), que consistiu em várias leituras do material transcrito, cujo objetivo foi compreender o sentido das falas das mulheres participantes deste estudo. Foi extraído o conteúdo manifesto ou latente acerca das práticas relacionadas aos cuidados em saúde, particularmente sobre a prevenção das DST. Os dados coletados foram analisados obedecendo às seguintes fases: pré-análise (várias leituras das falas transcritas), exploração do material (agrupamento dos conteúdos gerais, releitura), tratamento (identificação de similaridades nos conteúdos, releitura e reclassificação dos temas) e interpretação dos resultados (classificação das categorias temáticas: percepção das mulheres homossexuais e bissexuais sobre a assistência nos serviços de saúde e; perspectiva dessas mulheres sobre as formas de prevenção relacionadas às DST).

Tomou-se a vulnerabilidade como referência conceitual na análise dos resultados. O termo vulnerabilidade foi proposto pelo Programa das Nações Unidas para a AIDS (UNAIDS) no início década de 90, e neste estudo é empregada como algo que vai além do conceito de risco; propõe a superação da abordagem biológica e comportamental;  construção e/ou apropriação de instrumentos para identificar e intervir na dimensão individual e coletiva do processo saúde-doença(7,8).

A pesquisa atendeu aos requisitos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(9), que trata das diretrizes para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos e teve autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade NOVAFAPI (parecer nº 0385.0.043.000-11). Para preservar o anonimato, as participantes foram identificados por códigos representados pela letra E (Entrevistado), seguido do número sequencial da entrevista E1... E9.

 

RESULTADOS

Foram entrevistadas nove mulheres entre 25 a 40 anos de idade, todas tendo como escolaridade o ensino superior completo, e que se encontravam inseridas no mercado de trabalho no momento da entrevista, sendo 02 advogadas, 04 professoras de ensino fundamental e/ou médio, de cursos de biologia; 01 bióloga, 01 administradora de empresa e 01 assistente social. Sete delas identificaram-se como de orientação sexual lésbica e duas como bissexuais. Cinco delas utilizavam o Sistema Único de Saúde (SUS) de forma exclusiva.

A percepção das mulheres homossexuais e bissexuais sobre a assistência nos serviços de saúde

Quanto à percepção sobre a assistência nos serviços de saúde, seis das entrevistas consideram que a procura pelo serviço de saúde se faz pela necessidade de prevenção de doenças, em geral associada à realização dos exames preventivos rotineiros da saúde da mulher, como o Papanicolau e o exame preventivo de câncer de mama. Consideram que estes exames devem ser realizados anualmente, sendo que três delas os realizam a cada seis meses e uma delas três vezes ao ano.

Na percepção das participantes deste estudo, há um constrangimento e desconforto na realização do exame ginecológico entre aquelas que não haviam tido experiência de penetração nas suas relações sexuais. Uma das entrevistadas associou o procedimento de introduzir o espéculo com a penetração do pênis na vagina:
Nós temos que ficar fazendo exame, é como se tivesse relação com homem, não gosto muito de ir ao ginecologista; tenho que fazer esses exames de mulher, colocar aquele ferro para examinar, eu tenho é medo. (E3)

Outra entrevistada relata que sua parceira ao vivenciar uma experiência ruim, deixou de realizar o exame em situações futuras, comprometendo seu cuidado:
Por medo de dizer ao médico que era lésbica, acabou fazendo o exame de prevenção sem nunca ter tido penetração sexual e causou trauma e nunca mais ela procurou o serviço de saúde. (E4)

Ainda que expressem medo e descontentamento em relação à realização dos exames, elas compreendem sua importância na prevenção das doenças:
Mesmo não gostando, faço o exame de prevenção, exames ginecológicos, para estar evitando doenças futuras; na verdade o maior cuidado que eu tenho é esse, manter sempre os exames de prevenção, eu sempre faço os exames preventivos. (E9)

Em outra fala observa-se a preferência pela busca de médico clínico geral, por não se sentir a vontade com o especialista:
Não gosto muito de ir aos ginecologistas, pois fico envergonhada. (E1)

As entrevistadas consideram que a assistência, tanto no serviço de saúde privado quanto público, é voltada às mulheres heterossexuais. O profissional que as atende, na maioria das vezes, não questiona sobre sua orientação sexual e quando percebe que trata-se de uma mulher de orientação homossexual, procura atender sem abordar diretamente o assunto. Sobre a atenção no sistema público, referiram que a assistência é pouco consistente e que não se sentem acolhidas:
Eu acho a assistência fraca, pois o pessoal do SUS não está preparado pra nos receber e nem nós nos sentimos a vontade pra falar com eles. (E2)

As mulheres participantes deste estudo avaliaram que há um despreparo dos profissionais de saúde no cuidado às mulheres lésbicas e bissexuais e que o profissional ginecologista, em particular, independente de ser um profissional do sexo masculino ou feminino, demonstra pouca ou nenhuma sensibilidade para lidar com estas situações de atendimento às necessidades desta população:
Avalio de forma ruim; o profissional não está pronto para atender nenhum público LGBT, ainda falta sensibilidade das ginecologistas e dos demais funcionários dos serviços de saúde, às vezes eles ficam nos olhando e nos julgando, nos tratam com discriminação. (E7)

Para as entrevistadas, muitas vezes é difícil revelar sua intimidade e abrir a informação sobre sua orientação sexual. Segundo ponderam, o medo do julgamento e da exposição ao preconceito e discriminação pelo profissional de saúde justificam o sigilo sobre a orientação sexual. Ao omitir esta informação, as mulheres podem receber orientações sem sentido:
Na consulta com o ginecologista ele sempre me trata como se fosse hetero, me recomenda camisinha, pílulas, aí saio de lá sem muita credibilidade nele. (E5)

Segundo uma das entrevistadas, o profissional de saúde deve ter sensibilidade para perceber se a mulher é homossexual ou heterossexual. Por outro lado, o profissional de saúde não deve presumir a orientação sexual de um indivíduo de acordo com suas características pessoais.
Não fico falando pra todos da minha opção sexual, tá na cara, não preciso falar, ele devia ver e me tratar diferente das mulheres. (E6)

A perspectiva das mulheres homossexuais e bissexuais sobre formas de prevenção relacionadas às DST

Especificamente sobre as DST, foi possível identificar que as entrevistadas sabem quais são elas, relatando conhecer nominalmente a sífilis, a gonorréia, as hepatites, a herpes genital e a Aids. Outras doenças, como a Tricomoníase, a Candidíase e o Condiloma Acuminado (Papiloma Vírus Humano/HPV), foram citados de acordo com sinais e/os sintomas:
Tem um monte que causa corrimento, mau cheiro e coceira e tem umas que são de feridas. (E8)

Identificou-se que, de fato, a relação sexual é reconhecida por todas como a via principal da infecção das doenças:
São transmitidas através das relações sexuais, algumas através do contato com a saliva. (E3)

Sobre as formas de preveni-las, foram citados os cuidados básicos de higiene em geral:
Me previno escovando os dentes uma hora antes [de ter uma relação] também lavamos as mãos e mantemos as unhas cortadas. (E2)

O preservativo masculino foi lembrado por todas, principalmente em situações em que há relação sexual com homens. Segundo se extrai das entrevistas, o uso de preservativo nas relações homossexuais não é uma prática comum, principalmente nas relações entre parceiras fixas. Tal fato também é comum em relações heterossexuais(10). O fato de passar a conhecer a parceira elimina, no imaginário, os riscos de se adquirir uma DST:
Agora tenho me relacionado mais com mulher, mas quando tinha relação com homem muitas vezes usava o preservativo, homem tem que ter mais cuidado, mas também tem que conhecer a pessoa, não pode ser com qualquer um. (E5)

Nas relações sexuais entre mulheres, o uso do preservativo é improvisado:
No ato da relação também costumo fazer barreirinha que é, tipo assim, colocar uma camisinha em formato de lençol em cima do órgão genital, acredito que isso nos protege um pouco, pois diminui o contato. (E7)

Eu sei que existe um kit, o kit prevenção, vem uma tesourinha, uma camisinha que você corta e usa, acho que tem a camisinha pra língua, basicamente isso. (E8)

 

DISCUSSÃO

Os resultados trazidos por este estudo evidenciam que mulheres homossexuais e bissexuais vivenciam situações em que se violam ou negligenciam seus direitos de acesso aos serviços de assistência à saúde de qualidade.

Em relação à percepção das mulheres homossexuais e bissexuais sobre a assistência nos serviços de saúde, constatou-se que se trata de uma rotina que está presente na vida das mesmas, porém esta procura está voltada para assistência médica com vistas à prevenção de doenças, em geral associada à realização de exames de rotinas.

A realização do exame ginecológico foi associada à situação de constrangimento e desconforto pelas mulheres sujeitos deste estudo, porém vale lembrar que o exame ginecológico é um procedimento invasivo da intimidade que não necessariamente é bem aceito pelas mulheres em geral, independente de sua orientação sexual, não parecendo ser esta uma particularidade das mulheres homossexuais(11).

Em estudo que abordou os conhecimentos das mulheres em geral sobre o exame do Papanicolau, justificativas como vergonha, incômodo em realizá-lo e falta de orientação na solicitação do exame pelo médico, foram apontados como barreiras para sua realização(12).

As entrevistadas manifestaram dificuldades em falar sobre sua sexualidade e avaliaram que há despreparo dos profissionais de saúde, que se apresentam com pouca ou nenhuma sensibilidade para lidar com as suas necessidades de saúde, especialmente no tocante à sexualidade.

A falta de ambiente propício e pessoal preparado para lidar com a exposição das necessidades de saúde de mulheres homossexuais e bissexuais pode fazer com que a resposta a elas sejam negligenciadas, tanto pelo profissional quanto pelas usuárias, uma vez que estas não se sentem à vontade para declarar sua sexualidade e falar sobre suas vivências(13). A dificuldade em revelar a orientação sexual nos serviços de saúde também foi constatada em outro estudo que encontrou cerca de 40% de mulheres nesta condição(14).

O medo de não ser compreendida pelos profissionais de saúde, de ser estigmatizada ou discriminada, afasta as mulheres homossexuais ou bissexuais dos serviços de saúde, contribuindo para o desconhecimento do próprio corpo e a baixa adesão às práticas de autocuidado, pontos fundamentais na prevenção de DST(15).

Esta é uma questão complexa, pois as mulheres deste estudo apontaram que quando há identificação quanto à orientação sexual na busca pelo serviço de saúde, observa-se ocorrência de desigualdade no acesso a estes serviços. Um estudo que aborda a temática mostrou que entre as mulheres que se identificam como lésbicas, 28% notaram tempo reduzido de atendimento nos serviços de saúde, com pouca atenção no atendimento do médico, e 17% afirmaram que o profissional médico deixou de solicitar exames considerados por elas como necessários(14).

Há diferenciação no atendimento realizado nos serviços de saúde no que diz respeito à realização do exame preventivo de câncer cérvico uterino, situação que denota discriminação e iniquidade. Entre as mulheres heterossexuais, a cobertura na realização deste exame é, em média, de 89,7%; caindo para 66,7% entre as lésbicas e bissexuais, mesmo consideradas mulheres com maior escolaridade e renda(14). Com isso, as mulheres homossexuais e bissexuais estão mais vulneráveis aos agravos que poderiam ser identificados precocemente, como o câncer de colo de útero e de mama, além de apresentar maior vulnerabilidade às DST.

Portanto, não revelar a orientação sexual pode contribuir para a invisibilidade das reais necessidades de saúde das mulheres homossexuais e bissexuais e, por outro lado, revelar traz implicações à qualidade de seu atendimento. Em ambas as situações identifica-se a vulnerabilidade na garantia do direito destas mulheres à saúde.

De fato, não há preparo profissional específico nos serviços de saúde para lidar com a população LGBT. Estudo abordando o tema concluiu que mulheres bissexuais e lésbicas não recebem apoio por parte dos profissionais de saúde para verbalizar suas orientações sexuais quando buscam assistência, e com isso ocorre uma atenção desqualificada(15).

Estudo que aborda o acesso a cuidados relativos à saúde entre mulheres que fazem sexo com mulheres constatou que, durante o atendimento, os profissionais de saúde não questionam qual a orientação sexual das mulheres, pressupondo que todas são heterossexuais; e, ainda, que alguns profissionais não acreditam que esta seja uma informação relevante para o atendimento, e que deve ser abordado apenas se a usuária se sentir a vontade para isso, justificando que a orientação sexual faz parte de sua intimidade(16).

Sobre a postura dos profissionais de saúde no atendimento à mulher, destaca-se que estes devem estar preparados para acolherem a todas as mulheres quando procuram pelos serviços de saúde, bem como para lidar com as dificuldades que possam surgir neste momento, independentemente da orientação sexual.

Reconhecer o exercício e o direito da sexualidade de lésbicas e bissexuais requer mudanças, o que não é tarefa fácil diante de uma sociedade em que o padrão heterossexual é hegemônico e influencia diretamente a conduta profissional para uma prática que pode gerar preconceito, e em algumas situações a discriminação.

Respeito à sexualidade é uma temática que deve ser discutida desde a formação nos cursos de graduação da área da saúde. Os profissionais de saúde devem ter em seus currículos, conteúdos a respeito do enfrentamento do preconceito relacionado à orientação sexual e à identidade de gênero, a fim de que não caiam em naturalizações(17). Lembrando que o exercício da tolerância com a diversidade, o respeito aos direitos e a humanização deve ser permanente, estendendo-se ao longo do percurso profissional dos trabalhadores da saúde, na perspectiva da educação permanente em serviço.

Considerar a mulher como sujeito de direito, independentemente de sua orientação sexual, pode ser a chave para abrir-se ao diálogo claro, franco, resgatando o genuíno sentido de cuidado entre profissional e usuário. Cabe ao profissional de saúde promover ambiente para que este diálogo ocorra. O profissional de saúde ao assumir sua responsabilidade com a equidade no acesso de lésbicas e homossexuais aos serviços de saúde, assume o cuidado do outro em seu sentido mais claro, que é o sentido de promoção da autonomia, da cidadania, da dignidade, da promoção dos seus direitos de saúde, reprodutivos e sexuais(13, 15).

Neste estudo, as perspectivas das mulheres homossexuais e bissexuais sobre formas de prevenção relacionadas às DST não indicaram intervenções que podem compor as estratégias de prevenção adequadas às DST, como por exemplo, o uso de luvas descartáveis e soluções antimicrobianas tópicas em gel, que possibilitam diminuir a transmissão por secreção vaginal e a orientação de que mulheres que usam brinquedos sexuais vaginais devem usar preservativos masculinos(18).

Constatou-se que no imaginário das mulheres, os homens ainda estão mais vulneráveis à infecção das DST e que por isso acabam se prevenindo mais rotineiramente quando das relações com eles. Na questão do HIV/Aids, até a década de 1990, no Brasil, a possibilidade de infecção pelo HIV por parte das lésbicas foi pouco cogitada. Esta invisibilidade também teve estreita relação com a forma como foi pensada a propagação do vírus, pautada na ideia de que a ausência de penetração e de contato com fluidos corporais fariam da lésbica pouco vulnerável à infecção por HIV, em sentido inversamente proporcional ao homem homossexual, no início da epidemia(13).

A trajetória da epidemia do HIV/Aids mostra que os homens são mais acometidos pelo vírus que as mulheres, mas que esta proporção já vem diminuindo ao longo dos anos(19). Neste estudo identificou-se a ideia de que as mulheres sentem-se menos vulneráveis às DST nas relações homossexuais. Portanto, a realização de ações educativas particularmente voltadas para mulheres homossexuais são fundamentais para o enfrentamento das DST e do HIV/Aids.

As relações sexuais entre mulheres apresentam maior risco para desenvolvimento de vaginoses, tricomoníase, herpes genital e lesões por HPV, tal fato deve-se à troca de secreções vaginais durante a masturbação alternada, com o uso e compartilhamento de brinquedos sexuais e com o tribadismo (vagina com vagina)(18).

Sobre as formas de prevenção das DST, destaca-se que não há, na rede de saúde, preservativo específico para sexo oral, principalmente para uso no sexo entre mulheres.

Como estratégias para a prevenção das DST durante as relações sexuais entre mulheres destacam-se as orientações sobre o uso de um kit de prevenção proposto pelo Ministério da Saúde (MS), o qual contem uma tesoura pequena, luvas e cortador de unhas. Aponta-se também o uso de películas para o sexo oral, que podem ser adaptadas de preservativos, películas com plástico protetor ou luvas como estratégias eficazes para a prevenção(20). Destaca-se que tais ações são importantes para minimizar os riscos das DST, porém não atendem as necessidades dessas mulheres, uma vez que a manipulação antecipada desses materiais pode denunciar a intenção da relação sexual e mecanizar o encontro.

Para além dos cuidados de prevenção em termos de uso de métodos de barreira nas relações sexuais femininas, sejam elas homossexuais, bissexuais ou heterossexuais, considera-se importante resgatar aspectos mais amplos que envolvem a prática de prevenção das DST/HIV, como por exemplo, as práticas de prevenção e promoção da saúde que estão pautadas nas ações de educação em saúde. A exposição às DST e HIV não é resultado exclusivo da vontade e grau de esclarecimento das mulheres, uma vez que seus comportamentos são frutos de um conjunto de condições estruturais e contextuais, que em primeira instância as colocam em maior ou menor vulnerabilidade a estes agravos.

Nessa perspectiva, as intervenções para prevenir DST e HIV/Aids devem abarcar respostas mais potentes, envolvendo, sobretudo, o desenvolvimento de processos emancipatórios destas mulheres, tomando a autonomia como conceito chave(7).

Analisando as práticas preventivas e educativas voltadas para o enfrentamento das doenças como as DST e o HIV/Aids, destacam-se a ineficiência de práticas que valorizam o medo, o susto e que afastam as pessoas do problema(8).

Conhecer os riscos é outra atividade importante, mas estes devem ser vistos de forma limitada. Isto é, os riscos envolvidos na transmissão do HIV entre mulheres homossexuais e bissexuais são evidentes e mensuráveis, descritos em estudos epidemiológicos, no entanto, não são suficientes para identificar aspectos subjetivos e de significação envolvidos nas relações, não somente sexuais(8).

As práticas educativas se mostram como estratégias valiosas para a prevenção das DST e HIV/Aids, porém deve-se ter o cuidado de valorizar o conhecimento que as pessoas já possuem sobre o problema.

O profissional deve compreender que ninguém ensina nada a ninguém, mas todos aprendem juntos, e que os modelos de comunicação unidirecionais e autoritários da transmissão de informações não são efetivos na educação(8). O profissional deve sair da posição de detentor do saber para mediador do saber, a fim de compartilhar e construir conhecimento. Não se pode esperar que apenas informar ou transmitir conhecimento sobre prevenção às mulheres, sejam elas de orientação homo ou bissexuais, redirecionará seus comportamentos para prevenção.

As práticas preventivas das DST e HIV/Aids não devem restringir-se à informação, mas sim a um diálogo que deve estar presente nas relações entre sujeitos. O sujeito não é o sujeito individual, e sim um indivíduo que participa de toda a construção de identidades.

As estratégias de prevenção com lésbicas e bissexuais devem estar voltadas à identificação da subjetividade que compõe seus contextos de vida. Um dos desafios é exatamente definir os contextos intersubjetivos geradores de vulnerabilidade às DST, e, de modo articulado, definir estes contextos favoráveis para a redução destas vulnerabilidades, contribuindo para a prevenção.

 

CONCLUSÃO

Há a percepção de que o exame do Papanicolau é fundamental para o diagnóstico precoce do câncer de colo de útero, e isto é reflexo de anos de ações das políticas públicas na área da prevenção na saúde da mulher. Porém, a assistência nos serviços de saúde ainda é frágil e insuficiente. Um grande desafio para o cuidado à saúde continua sendo o combate à discriminação e ao preconceito nas suas mais diversas formas.

Na relação entre o profissional e a mulher homossexual e bissexual, não há uma concreta aproximação da realidade dessas mulheres, o que dificulta respostas às suas necessidades de saúde. Mulheres homossexuais e bissexuais estão vulneráveis e invisíveis para os serviços de saúde. Ainda existem dificuldades a serem superadas na tentativa de melhorar o relacionamento, tanto por parte dos profissionais quanto das mulheres. É fundamental ampliar nos currículos dos cursos da área da saúde estas discussões, pois os profissionais precisam estar abertos para a diversidade sexual, conhecer e respeitar as práticas sexuais e especificidades de cada indivíduo.

O uso do preservativo não é identificado como fundamental nas relações sexuais entre mulheres e os métodos utilizados de prevenção não são adequados, contribuindo para o aumento da vulnerabilidade às DST.

As ações na área de prevenção às DST/Aids para mulheres lésbicas e bissexuais devem ser ampliadas, no sentido de possibilitar acesso à informação qualificada e dispor de insumos adequados para a prevenção.

O pouco conhecimento destas mulheres sobre a prevenção e a prática do sexo seguro é resultado da vulnerabilidade individual e social instaurada pelo preconceito e pelo modelo heterossexual instalado. A ausência de políticas públicas específicas, efetivas e disseminadas em todos os serviços de saúde fortalece a vulnerabilidade no âmbito programático.

Faz-se necessário integrar os profissionais de saúde com os grupos de mulheres homossexuais e bissexuais a fim de estabelecer um diálogo, na tentativa de identificar as necessidades de saúde das mulheres. Os serviços de saúde devem promover ações voltadas a esta população, tanto nas questões de educação em saúde quanto nas práticas de prevenção de doenças e promoção da saúde.

Ao destacar a perspectiva dos sujeitos e de seus contextos de intersubjetividade foi possível identificar algumas condições de vulnerabilidade na garantia dos direitos das mulheres lésbicas e bissexuais, tendo como horizonte a transformação da assistência à saúde. O estudo buscou dar visibilidade ao tema na perspectiva de que seja garantido o exercício pleno da cidadania deste grupo populacional.

 

REFERENCIAS

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20. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Conjugalidades e prevenção às DST/AIDS. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde; 2011.

 

 

Autores:
Patrícia Maria Gomes de Carvalho: Concepção da pesquisa, revisão de literatura, análise dos dados, relatório final da pesquisa e adequação do artigo às normas do periódico.
Bibiana Sidartha Martins Nóbrega: Concepção da pesquisa, revisão de literatura, coleta dos dados e análise dos dados.
Jayce Lima Rodrigues: Concepção da pesquisa, revisão de literatura, coleta dos dados e análise dos dados.
Rejane Oliveira Almeida: Concepção da pesquisa, revisão de literatura, coleta dos dados e análise dos dados.
Fernanda Tavares de Mello Abdalla: revisão crítica do artigo, adequação do artigo às normas do periódico.
Lucia Yasuko Izumi Nichiata: revisão da literatura, análise dos dados e revisão crítica do artigo.

 

 

Recebido: 05/02/2013
Revisado: 25/11/2013
Aprovado: 02/12/2013