ARTIGOS ORIGINAIS

 

Relações sociais na opção pelo parto domiciliar planejado: um estudo etnográfico institucional

 


Heloisa Ferreira Lessa1, Maria Antonieta Rubio Tyrrell2, Valdecyr Herdy Alves3, Diego Pereira Rodrigues3

1Primal Health Research Center
2Universidade Federal do Rio de Janeiro
3Universidade Federal Fluminense

 


RESUMO
Objetivo: Revelar, a partir do cotidiano, as relações sociais que envolvem a opção da mulher pelo parto domiciliar planejado.
Método: etnografia institucional.
Sujeitos: dezessete mulheres que planejaram e efetivamente pariram no domicílio assistido por médica ou enfermeira obstétrica, no período de janeiro de 2008 a dezembro de 2010. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, entre outubro e dezembro de 2010, e tratados por análise temática, tendo por referencial a Teoria de Dorothy Smith.
Resultados: emergiu a categoria As relações sociais e sua influência na opção pelo parto domiciliar planejado.
Discussão: Pensar nas relações de poder na escolha do parto domiciliar planejado é favorecer a livre escolha vivenciada pela mulher nas suas diferentes e distintas redes de apoio.
Conclusão: A valorização da mulher enquanto sujeito do processo de nascimento é essencial para o bem estar materno-fetal.
Descritores: Políticas Públicas de Saúde; Parto Normal; Parto Domiciliar; Enfermagem Obstétrica.


 

INTRODUÇÃO

A influência das relações de poder na opção das mulheres pelo parto domiciliar planejado em grandes centros urbanos é o foco da pesquisa. Trata-se de tema de interesse e em evidência, sobretudo em decorrência das demandas dos movimentos sociais, da Organização Mundial da Saúde e de setores organizados. Este cenário culminou em políticas públicas que favoreceram a atuação de enfermeiras obstetras, obstetrizes e médicos a assistirem partos domiciliares planejados nos centros urbanos, apesar da posição marginal em que o mesmo se encontra em nossa sociedade(1).

Dentre os partos no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde que vêm tomando medidas para a melhoria da qualidade dos serviços prestados às mulheres na questão do parto e nascimento, 98% ocorrem em ambiente hospitalar(2). O parto no modelo hospitalar, na maioria dos casos, baseia-se numa assistência medicalizada, no qual a utilização de intervenções desnecessárias são ainda frequentes.

Este cenário é confirmado por dados do Sistema de Informações de Nascidos Vivos evidenciando que, em 2010, a prevalência de cesáreas no Brasil foi de 52%. Em 2009, esta taxa foi de 58% no estado do Rio de Janeiro(3), e de 99,76% no município do Rio de Janeiro(4). A ideia corrente na sociedade brasileira, compartilhada inclusive por profissionais de saúde, é a de que o parto domiciliar, mesmo quando planejado, representa maior risco de desfechos maternos e neonatais desfavoráveis. Contudo, evidências científicas reportam que o parto domiciliar planejado, para mulheres de baixo risco obstétrico, é tão seguro quanto o parto hospitalar habitual, e deveria ser oferecido como opção às mulheres saudáveis que assim o desejassem(5-8).

Neste estudo, após a clarificação de seus significados, decidiu-se por trabalhar com o termo “opção” em detrimento do termo “escolha”. O esclarecimento etimológico desses termos é o de que opção é o ato, direito ou faculdade de optar, preferência e livre escolha; enquanto escolha refere-se ao ato ou efeito de escolher, opção, preferência, seleção(9). Adotar aqui o primeiro termo pareceu mais adequado, tendo em vista que sua conotação engloba a capacidade de livre escolha, condição básica de cidadania da mulher ao reconhecer o direito de preferir, como marca de poder e de autonomia, pelo parto planejado.

A partir do acesso à informação e consequente consciência plena dos direitos de cidadania, o empoderamento tem relação com o exercício do controle de nossos atos. É isto que promove a mudança de atitudes passivas para posturas ativas, ocasião em que o indivíduo é capaz de saber o que é melhor para si(10).

Em nossa sociedade a mulher vive imersa em uma cultura pró cesárea e de negação da sua condição de cidadã, na qual a inexistência da possibilidade da opção relativa ao local de parto não causa espanto nem revolta. No entanto, nos últimos dez anos tem ocorrido uma expansão significativa de movimentos de mulheres e profissionais de saúde, os quais têm buscado discutir alternativas ao modelo de atenção ao parto predominante no Brasil. A popularização da internet tem contribuído para o crescimento dessa forma de expressão social, possibilitando às usuárias encontrarem informações sobre modalidades de nascimento diferentes do modelo hospitalar(11).

Desse modo, tem-se como objetivo: revelar, a partir do cotidiano, as relações sociais que envolvem a opção da mulher pelo parto domiciliar planejado em grande centro urbano.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo etnográfico institucional (EI), método proposto pela socióloga canadense Dorothy Smith, que sofreu forte influência do posicionamento epistemológico desenvolvido no âmbito dos estudos feministas, da etnometodologia de Garfinkel e do materialismo marxista(12). A autora parte do princípio de que as mulheres são excluídas do poder de decisão da sociedade, que é dominado pelo pensamento masculino.

A escolha da EI se deu por considerar que os locais de partos, aqui representados pelas residências, estão vinculados ao contexto cultural e ao comportamento humano numa abordagem do movimento feminista. A EI está ligada às regras, à organização social de um determinado fato ou evento; assim, não estuda as instituições como tais. O que propõe é uma sociologia que parte da experiência das pessoas, e não de uma teoria. Combina teoria e método e foca nas conexões entre locais e situações da vida diária ou da prática profissional.

As relações sociais constitui o ponto central da análise e a EI oferece um caminho para explicar de que forma o cotidiano instituído nas residências se articula com as relações sociais do amplo processo social e econômico vigente. A etnografia propõe o estudo do cotidiano social fundamentado no seu locus, assim, optou-se por entrevistar as mulheres nos locais de indicação delas: o domicílio.
Optou-se pelo enfoque qualitativo, pois este permite o aprofundamento das relações sociais expressas no mundo dos significados e das relações humanas(13).

Para seleção das depoentes, inicialmente contatou-se os profissionais que acompanharam partos em domicílio na cidade do Rio de Janeiro, a saber: quatro enfermeiras obstétricas e dois médicos. Após reunião de apresentação da pesquisa, os profissionais solicitaram às mulheres autorização formal para indicação como participantes do estudo.

Estabeleceu-se contato com 65 mulheres que aceitaram participar e que pariram no domicílio no período de janeiro de 2008 a dezembro de 2010. Os critérios de exclusão adotados foram: partos que resultaram em natimortos ou em crianças com agravos.

Para seleção das mulheres elegíveis, realizaram-se sorteios até que se atingisse a saturação dos dados. Dessa forma, a amostragem final do estudo foi constituída por dezessete mulheres.

Os dados foram coletados nos domicílios das mulheres por meio de entrevistas semiestruturadas no primeiro semestre de 2011, gravadas em aparelho digital, e anotações realizadas no caderno de campo.

Os dados foram tratados por análise de conteúdo. Para tanto, os depoimentos foram transcritos na íntegra e validados pelas depoentes. A leitura cuidadosa do material resultou na identificação de 45 unidades de registro que fundamentaram a construção de três categorias temáticas: (i) Informação: um passo para a opção pelo parto domiciliar planejado; (ii) As relações sociais e sua influência na opção pelo parto domiciliar planejado; (iii) A opção pelo parto natural e a desmedicalização.

Neste artigo, apresentam-se as resultantes da categoria “As relações sociais e sua influência na opção pelo parto domiciliar planejado”, por meio das subcategorias: Uma forma diferente de encarar meu corpo, a vida e o mundo; A relação com o pai do bebê; A relação com a família e os amigos; A relação com o sistema de saúde e os médicos.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob Protocolo nº 078/2010, conforme prevê a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/12(15).

Para assegurar o anonimato e o sigilo das informações, a autoria dos depoimentos está codificada alfanumericamente (E1...E17).

 

RESULTADOS

Uma forma diferente de encarar meu corpo, a vida e o mundo
As participantes, por possuírem educação em nível superior, e majoritariamente contribuírem com o orçamento familiar, destacam-se do conjunto das mulheres da população. Relacionam-se com outras mulheres em diferentes ambientes e redes sociais, e parte delas declararam-se “diferentes” de suas famílias de origem. Em geral, também são reconhecidas como “diferentes” pelos familiares e amigos.

(...) A gente já tem uma cabeça meio revoltada com as coisas do jeito que são. A gente não engole muito esta industrialização toda. (E7)

Nos depoimentos a seguir, o que se percebe é o quanto a opção pelo parto domiciliar faz parte de uma forma de ver a vida.
(...) E como eu já trabalhava com coisas naturais, com alimentação natural, parecia natural eu querer parto em casa. (E11)

(...) Eu tenho uma ligação com a natureza, um pensamento para as coisas mais simples. E aí veio esta coisa do parto em casa. (E14)

Entre as mulheres que não fazem parte do grupo anterior com características homogêneas, emergem importantes aspectos que ajudam a identificar com maior percepção o grupo estudado; essas mulheres não se reconhecem como pessoas alternativas:
(...) As pessoas encaravam como modismo: ‘ela está querendo tirar onda’. Outras diziam que eu era hippie. Caramba, eu não sou hippie de jeito nenhum. (E4)

 

A relação com o pai do bebê
A participação do pai no processo da gestação aos cuidados com o bebê foi citada por quatorze mulheres. Com relação à opção pelo parto domiciliar, quatro citaram o pai como parceiro na opção pelo parto domiciliar, falando da comunhão de pensamento e da confiança entre eles, e partilhando da ideia que a mulher tem prioridade, pois irá ocorrer no seu corpo. As mulheres citam à construção dessa opção com o pai do bebê.

(...) Meu marido reagiu muito bem, ele pensa que se uma coisa é boa para mim é boa para ele também. (E5)

(...) Meu marido nunca, em momento algum, veio tentar me convencer de fazer o contrário. Ele até hoje fala que tem muito que me agradecer porque foi tão mágico e ele pôde viver aquilo tão de perto. (E9)

Nos depoimento a seguir, confirma-se a participação dos parceiros que compreendem o protagonismo da mulher no processo:

(...) Eu nunca tive que convencê-lo da decisão de ter o parto em casa. Se você acha que é isso, então tem que ser isso. (E2)

(...) Ele se colocou desde o princípio como um colaborador, e não como responsável por nada. Por isso é que ele nunca negou ou questionou esta possibilidade.  (E12)

Outros depoimentos demostram que o pai não concordou com a opção pelo parto domiciliar, mas no final acatou a ideia, o que reforça a questão do poder de decisão ser da mulher.

(...) No final meu marido demonstrou que ele tinha pavor deste negócio de parto em casa (...). Quando eu disse eu não quero, ele surtou! (...) Mas eu consegui superar este obstáculo. (E12)

(...) O pai, ele nunca quis o parto em casa. Até o fim ele nunca apoiou. Mas ele ficou nessa de que era uma decisão minha. (E8)

Dentre as mulheres entrevistadas, oito relataram que a família e os amigos expressaram apreensão com relação à saúde materna-fetal, alguns manifestando que tal opção era loucura, e que exporia a riscos desnecessários. Pode-se observar o que é comum: o círculo de pessoas, demonstrar amor e carinho através da preocupação com a saúde de mãe e filho. Ainda percebe-se que qualquer outra atitude que não seja usual, relativa ao local e ao tipo de parto, gera questionamentos e profundos enfrentamentos.

(...) E não só o meu marido, mas meus pais também (...) As pessoas que estavam preocupadas com o nosso bem-estar. Com que tudo saísse de uma maneira boa, que tudo corresse bem. (E17)

(...) O que houve foi repetições disso: você é maluca, você está colocando a vida do seu bebê em risco (...) Era sempre o mesmo, e as pessoas encaravam como modismo. (E4)

A questão central nos depoimentos confirmam o respeito e o apoio à opção; reconhecem o direito da futura mãe e do pai de decidir onde e como querem que seu bebê nasça; e deixam claro que na relação com os familiares próximos, sua forma de ser, apesar de diferente, merecia confiança por parte deles.

(...) Olha, minha mãe e meu pai já estão um pouco acostumados com essas minhas escolhas, eles aceitaram. (E9)

(...) Muitas pessoas falam que eu era corajosa, pois sou estrangeira, sozinha, sem falar direito o Português, como poderia fazer parto em casa? E foi esta reação, com muita admiração. (E5)

 

A relação com a família e os amigos
Dentre as entrevistadas, oito declararam não poder contar para a família e/ou amigos sua opção pelo parto domiciliar. Essa atitude não é simples, representa um grande desgaste na relação familiar, no trabalho e nas amizades. No entanto, as mães, muitas vezes, não encontram outra possibilidade, como demonstram os depoimentos a seguir:

(...) Bom, então a gente não contou para ninguém, neste período todo, a gente viu como as pessoas são preconceituosas. Eu fiquei quieta. Então, a gente só contou quando o bebê nasceu. (E3)

(...) Eu não podia falar para todo mundo que eu ia fazer o parto domiciliar; senão, eu arrumava encrenca (...) Era chamada de irresponsável (...) sabe? Eu não pude contar para minha família que eu ia fazer um parto domiciliar porque eu sabia que eu não teria sossego das minhas tias no meu ouvido. (E2)

Analisando os depoimentos percebe-se como é impactante a reação contrária do círculo social à opção pelo parto domiciliar. Por isso quando essas mulheres encontram outras mulheres com a mesma opção surge entre elas um profundo sentimento de irmandade que possui em si poder de transformação social(17).

 

A relação com o sistema de saúde e os médicos
A organização social, isto é, a forma como os sistemas de saúde são organizados, foi citada por 13 entrevistadas, relatando dificuldades enfrentadas durante sua gestação ou parto anterior, na relação com profissionais médicos e com os hospitais e maternidades.

(...) Teve greve durante o pré-natal; foi tudo muito ruim. (E4)

A greve reforça a insegurança a partir da descontinuidade e da queda na qualidade do atendimento.

(...) O atendimento lá caiu muito de qualidade. E aí foi uma consulta péssima, fiquei dez minutos lá dentro. Quatro homens tocando a minha barriga para medir o tamanho da barriga, sabe? Levantei e fui embora. (E11)

A sensação de homens tocando a barriga nos sugere a questão da invasão a partir da questão de gênero.
Nos casos a seguir, as mulheres se referem aos profissionais vinculados aos planos de saúde.

(...) Depois eu descobri um médico que fazia parto domiciliar, mas eu não queria um médico. Eu acho que, assim, médico é para quando você precisa de um. Não quando vai ter um bebê.  (E11)

Apesar da entrevistada reafirmar suas razões pela escolha do profissional médico, ela reconhece as limitações dele para exercer esta função. Remetendo-nos a ideia de parto como evento natural que não necessita da presença do profissional médico, responsável por patologias:

(...) Na quinta, ela (médica) ligou dizendo que se eu não fizesse a cesárea que ela estava mandando, meu filho ia nascer um vegetal. Eu fui firme e disse que não era mais paciente dela, depois, me tremia toda. (E4)

A decisão da mulher denota um empoderamento pessoal que lhe permite se posicionar frente ao profissional, afirmar o que deseja e como deseja apesar da afirmação de que o filho se tornaria um vegetal ser muito ameaçadora.

Cinco mulheres optaram pelo parto domiciliar após experiências negativas anteriores. O depoimento, a seguir, denota uma mulher que não argumenta ou discute, apenas observa os detalhes, e com base no que observa, toma sua decisão. As diferenças nos modelos de assistência obstétrica foram evidenciadas.

(...) ‘Não, doutor, mas eu não quero anestesia, episiotomia, eu não quero nada disso.’ E ele não aceitou (...) Eu sei que remédio é muito ruim para o bebê. (E7)

(...) O parto fica por conta da equipe médica. Então, quem vai parir assim da geração da minha mãe e da minha sogra vai para o hospital. Não existe processo e participação do pai, da mãe do bebê, não existe nada. (E12)

O depoimento seguinte ilustra a visão das mulheres sobre a vivência do parto no hospital e oferece suporte a sua opção.

(...) Porque eu não queria médico nenhum por perto, eu não queria ninguém me perturbando. Eu não queria luz, eu sabia que eu ia gritar para caramba, porque eu me conheço e eu sabia que lá eles não iam deixar, iam me criticar. (E15)

 

DISCUSSÃO

Para uma parte significativa do grupo, a opção pelo parto natural é coerente com seu estilo de vida, com suas crenças e valores. O modo como se vive surge como fator para a escolha do parto domiciliar, pois são famílias que possuem outros valores culturais e sociais como, por exemplo, a consciência em relação à importância da preservação ambiental(15,16). Mesmo nestes casos, as entrevistadas receberam forte pressão social contrária ao parto domiciliar.

Há famílias que optam pelo modelo naturalista, mas que na relação com o movimento naturalista diferem no sentido de possuir certa independência em relação ao que pensam e como agem. Evidenciando, assim, aspectos importantes nos seus valores acerca do parto domiciliar, instituído na visão humanizada perante a analogia da relação com o meio ambiente(8).

A opção pelo parto domiciliar em centro urbano, em geral, é visto pela sociedade como algo totalmente fora dos padrões. As relações de poder(15) são afirmadas através da fala e da escrita. O pensamento dominante é a segurança do parto hospitalar como norma, regra. No entanto, estas mulheres passam e ultrapassam este saber comum. Um conjunto de novas informações, de novos valores que vão permitindo romper o padrão dominante. O acesso à informação diferenciada é decisivo para a opção. Uma nova forma de consciência que começa a se esboçar a partir da vivência de outras mulheres, e que demarca a identidade da mulher e em alguns casos de sua família.

A participação do pai no processo da gestação aos cuidados com o bebê surge nos depoimentos, no entanto, com relação à opção pelo parto domiciliar foram poucos os que deram apoio efetivo e surgem como parceiros na decisão e comunhão de pensamento. Observa-se uma relação de poder entre o casal, na qual prevalece o poder de decisão da mulher. A mulher decide e o marido não tenta convencê-la do contrário, evidenciando que a decisão já havia sido tomada, o que representa apoio e companheirismo. Pode-se inferir, então, uma relação social em torno do parto, no qual o poder maior de decisão é da mulher.

Em nossa sociedade patriarcal as mulheres não fazem parte do aparato decisório. Mesmo no campo da saúde, onde são reconhecidas como detentoras do poder, a participação efetiva nas decisões não faz parte do cotidiano. Nesse sentido, fica evidente uma nova relação de poder que se estabelece na opção pelo parto domiciliar a partir da própria mulher(15).

A tomada de decisão pela mulher, não é uma possibilidade comum em nossa sociedade - a de prevalecer um desejo feminino, e não masculino, pois denota a inversão na relação de poder usual, comum entre homens, fortes, e mulheres, frágeis. Dispor sobre o próprio corpo, o próprio processo, exige um posicionamento pessoal de autonomia na relação com o pai. No entanto, aqui tem-se um paradoxo, pois, na nossa sociedade patriarcal, na divisão das tarefas, o cuidado da família ficou determinada como uma função feminina. Portanto, não se pode afirmar que existe aqui uma real inversão de gênero. A relação de poder, como forma de organização externa, delega às mulheres as questões ligadas à saúde(15).

Indo mais adiante nesta reflexão, parece significativo para a mulher, no processo de opção, o reconhecimento interno e externo a ela, de que a decisão pertence mais a mulher do que ao homem, pelo fato de que é a mulher quem vivencia o processo. Pode-se compreender como este autorreconhecimento faz parte do processo de individuação e empoderamento. É essa mulher que ao longo da gestação vai se informando, que após avaliar todos os prós e contras opta pelo parto domiciliar como uma alternativa à medicalização, ao desrespeito e à falta de aconchego, que são comuns ao parto hospitalar na nossa realidade de grande centro urbano brasileiro(17). Pode-se entender que esta mulher já possuía recursos internos, formas organizadas de consciência que moldaram a opção. Este caso permite analisar as relações sociais e o impacto na opção(15).

Diante de uma cultura tecnocrática nas questões relacionadas ao parto e nascimento, a base dos questionamentos realizados pela família e pelos amigos, parte da premissa de que o local de parto é o hospital, e quem assiste ao parto é o médico. Talvez esta frase exprima a cultura e as crenças nas quais a sociedade de um grande centro urbano, de maneira geral, está mergulhada.

Desse modo, a cultura pró-cesariana remete segurança para a família e o medo está sustentado pela escassez de conhecimento(18).

Após as primeiras reações contrárias, muitas vezes de forma agressiva, as mulheres decidiram não mais se expor para evitar confrontos. Nesse cenário, o desejo pelo parto domiciliar as coloca numa situação marginal, como a de quem faz algo errado, e porque não dizer, ilegal.

Observou-se, neste estudo, como é profundamente impactante a reação dos familiares e amigos; assim, pode-se redimensionar a importância, para estas mulheres, de conhecerem outras mulheres que acreditam e partilham do mesmo ideal. Um fenômeno que havia de ser identificado em outros episódios do cotidiano feminino, reconhecido como um sentimento de irmandade entre estas mulheres, que de tão massacradas por suas opções, acabam por se unir. Essa união tem em si o poder de transformação social(15).

No estudo, as mulheres alegaram que não foram ouvidas, nem respeitadas durante seu pré-natal nos serviços de saúde. Os prontuários, como textos mediadores da organização social, não apresentam espaços reais para as questões trazidas pelas clientes, tendo como origem sensações e sentimentos. A descoberta de que o que queremos ou o que negociamos no pré-natal convencional não é o que acontece, evidencia como no final da gestação não resta à mulher nenhum poder de barganha, nem possibilidade de impor seus desejos e planos. Significa dizer que o poder masculino, patriarcal, impede, nesse caso, a manifestação do conhecimento feminino.

Assim, as críticas quanto à rotina dos exames referido pelas mulheres reforça o aspecto negativo do fato de serem médicos, do sexo masculino, na sua maioria, os que prestam assistência. A sensação de invasão acentua-se na relação de gênero. Homens observando o toque vaginal, tocando na sua barriga e fazendo muitas perguntas. Para uma gestante já fragilizada, a participação desses médicos foi totalmente assustadora.

No setor privado dos grandes centros urbanos, as atuais taxas de cesarianas atingem níveis abusivos(11).

É através do medo que o domínio sobre as mulheres se estabelece como marca para a inviabilidade da redução da taxa cesáreas, pois a insegurança das mulheres frente ao parto e nascimento é permeado por estatísticas de morte materna(19). Num círculo social entre a zona sul e Barra da Tijuca, bairros do Rio de Janeiro tradicionalmente atendidos pelos planos de saúde, é necessária uma grande peregrinação para se acessar um profissional que tenha como base o parto fisiológico, que não realize intervenções desnecessárias.

A experiência negativa anterior à divergência profunda, o acesso à informação e o fato de estar conectada com grupos de mulheres na internet, parecem ser um suporte para o enfrentamento com o profissional e a tomada de posição. Com isso, muitas mulheres decidem pelo local de parto e o profissional que irá assisti-las no final de gestação(20). O tamanho da barriga, a certeza de que o bebê, de alguma forma, tem que nascer, une-se a um sentimento de onde e com quem ela irá se sentir segura para parir.

A atenção ao parto é ainda vista sob o modelo biomédico, como algo patológico que necessita de tratamento. A opção pelo parto domiciliar, ao contrário, vai ao encontro da valorização da mulher e das suas expectativas, numa visão de participação ativa no parto e nascimento. A insatisfação clara com a negação absoluta da participação da mãe e do pai no processo evidencia uma relação de poder que é questionada a partir da opção pelo parto domiciliar.

Evidencia-se uma diferença entre a assistência prestada pelo médico e pela enfermeira obstétrica/parteira. Para a mulher, o ser médico em si já significa não respeitar as individualidades da cliente. Parece que romper as relações de poder ou transformar esta relação em uma relação mais igualitária, é inviável para a parturiente na relação com o profissional médico.

As informantes apontam ser impossível receber respeito dos médicos num momento em que, pela redução neocortical, elas podem se comportar de maneira inesperada, o som, o grito como expressão máxima de uma animalidade que é profundamente rejeitada no ambiente hospitalar. A opção pelo domicilio surge, então, em parte, pela certeza de que não será possível ter uma ambiência que lhe permita vivenciar o processo da parturição sem intervenções.

A revelação das relações sociais se dá com a clarificação desse discurso de que as mulheres não somente tem conhecimento relacionado com a economia e administração doméstica, mas, sobretudo, da demonstração de que elas devem ser reconhecidas e percebidas como detentoras de um conhecimento científico e técnico que ultrapassa principalmente as funções de mãe e de cuidadora do lar.

Essa nova visão de mundo ou do mundo descoberto dá suporte para que a mulher possa diferenciar o mundo doméstico e o mundo do trabalho intelectual para, assim, fazer a diferença e estabelecer as convergências e divergências entre seu estilo de vida e seu modo de pensar e agir no seu destino, o que significa tomada da consciência política(19).

Essa tomada de consciência política serve na desconstrução da dicotomia estabelecida entre o saber intelectual masculino e o saber doméstico feminino, próprios da filosofia patriarcal e dominante da ideologia “machista”, que se traduz pela compreensão popular de que o homem é forte e é o chefe da família, e a mulher é frágil e é a cuidadora do lar e da família. Estes saberes e práticas dominantes produzem exclusão e subordinação, que, neste estudo, foram de certa forma rejeitados(20).

 

CONCLUSÃO

A vivência do parto domiciliar outorga às mulheres a autoridade necessária de quem possui conhecimento a partir da prática. Esta assertiva tem fundamento numa análise dos dados à luz da abordagem metodológica da EI. A ideia é a de que essa oferece um recurso de conhecimento para as pessoas que querem trabalhar por uma sociedade mais justa. Em todos os lugares e momentos da vida cotidiana, existe uma relação social da qual o ser humano participa sem, no entanto, ter consciência disso.

Esta pesquisa teve como aspecto inovador, a revelação do processo de opção de mulheres que construíram com esforço o direito de vivenciar seu processo de parto domiciliar, em um ambiente que lhes oferecesse segurança no município do Rio de Janeiro/Brasil.

O processo tem início a partir do acesso à informação. São distintas vertentes de informação: individual, contato pessoal e em redes sociais na internet. Uma informação diversificada e qualificada, com origem na experiência de outras mulheres, um conhecimento empírico e também um conhecimento científico. As mulheres passam por um intercâmbio de saberes/práticas. O parto domiciliar é, no nosso estudo, uma opção construída ao longo da gestação, a opção pelo domicílio é espontânea, consistente, pertinente e oportuna.

 

REFERÊNCIAS

1. Feyer ISS, Monticelli M, Volkmer C, Burico RA. Publicações cientificas brasileiras de enfermeiras obstétricas sobre o parto domiciliar: revisão sistemática de literatura. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):247-56.

2. Milfont PMS, Silva VM, Chaves DBR, Beltrão BA. Quality of care and satisfaction of women with natural childbirth: exploratory study. Braz J Nurs. [ cited Jan 01 2] 2011, 10(3). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3493/1099

3. Ministério da Saúde (Brasil). Caderno de informação de saúde (Série G. Estatística e informações em Saúde). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012.

4. Ministério da Saúde(Brasil). Indicadores de Saúde da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Ministério da Saúde; 2010.

5. Jonge A, Goes VD, Ravelli AC, Amelink-verburg MP. Mol BW, Nijhuis JG, et al. Perinatal mortality and morbidity in a nationwide cohort of 529n688 low-risk planned home and hospital births. BJOG. 2009; 116(9): 1177-84.

6. Boucher D, Bennett C, Macfarlin B, Freeze R. Staying home to give birth: why women in the United States choose home birth. J Midwifery Womens Health. 2009; 54(2):119-26.

7. Evers AC, Brouwers HA, Hukkelhoven CW, Nikkels PG, Boon J, Hillegersberg J, et al. A perinatal mortality and severe morbidity in low and high risk term pregnancies in the Netherlands: prospective cohort study. BMJ. 2010; 341(5639):1-8.

8. Birthplace in England Collaborative Group (England). Perinatal and maternal outcomes by planned place of birth for healthy women with low risk pregnancies: the Birthplace in England national prospective cohort study. BMJ. 2011; 24(343):7400-16.

9. Ferreira ABH. Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Positivo; 2011.

10. Malheiros PM, Alves VH, Rangel TSA, Vargens OMC. Parto e nascimento: saberes e práticas humanizadas. Texto Contexto Enferm. 2012; 21(2):329-37.

11. Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet. 2011; 377 (9780):1863-76.

12. Véras RM. Etnografia institucional: conceito, usos e potencialidades em pesquisas no campo da Saúde.  Sau & Transf Soc. 2011; 1(2): 58-66.

13. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 28ª ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2010.

14. Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução 466 de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União Poder Executivo 12 dez 2012; seção 1.

15. Smith DE. Institutional ethnography: a sociology for people. Toronto: Altamira Press; 2005.

16. Colacioppo PM, Kiffman M, Riesco MLG, Schneck C, Osava R. Parto domiciliar planejado: resultados maternos e neonatais. Rev de Enf Ref. 2010; 3(2): 81-90.

17. Smith DE. Institutional ethnography as practice. Lanham: Rowman & Littlefeild Publishers; 2006.

18. Lagomarsino BS, Van der Sand ICP, Girardon-Perlini NMO, Linck CL, Ressel LB. A cultura mediando preferências pelo tipo de parto: entrelaçamento de fios pessoais, familiares e sociais. Rev Min Enferm. 2013; 17(3): 688-94.

19. Ministério da Saúde (Brasil). Atenção a saúde do recém-nascido: guia para os profissionais de saúde – cuidados gerais. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011. 

20. Mccourt, C. Childbirth, midwifery and concepts of time. [ s ]:Berghahn Books; 2009.

 

 

Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido:22/01/2013
Revisão:19/03/2014
Aprovado:15/04/2014