ARTIGOS ORIGINAIS
Percepção da equipe de enfermagem frente aos cuidados paliativos oncológicos: estudo fenomenológico
Waleska Christina Brandão Pereira da Silva1, Rose Mary Costa Rosa Andrade Silva2, Eliane Ramos Pereira2, Marcos Andrade Silva3, Aline Miranda da Fonseca Marins4, Marta Sauthier4
1Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro
2Universidade Federal Fluminense
3Hospital Federal de Bonsucesso
4Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
Introdução: Este artigo tem como foco o desvelamento do fenômeno da percepção acerca da assistência de enfermagem aos pacientes em fase de paliação diante do desafio da terminalidade humana.
Objetivos: Compreender a percepção da equipe de enfermagem frente ao cuidado paliativo em oncologia a partir do referencial fenomenológico em Merleau-Ponty; indicar as implicações desta percepção na práxis da enfermagem.
Método: estudo descritivo, de abordagem qualitativa tendo como base a perspectiva teórico-metodológica da Fenomenologia de Merleau-Ponty. Utilizou-se a técnica de entrevista aberta com 21 profissionais de enfermagem de uma instituição privada de assistência oncológica.
Resultados: Cuidado paliativo configura-se como desafio para a equipe de enfermagem por abarcar um encontro de intersubjetividades entre profissional e paciente em situação de terminalidade. Medidas de conforto constituem alicerces da excelência do cuidado humanizado.
Conclusão: Ressalta-se a importância de valorizar a instância do humano por meio de ações que visem à humanização das práticas em saúde.
Descritores: Equipe de Enfermagem; Serviço Hospitalar de Oncologia; Cuidados Paliativos.
INTRODUÇÃO
O processo assistencial encontra-se em um contexto não plenamente ajustado aos princípios que devem reger os cuidados aos pacientes em fase de paliação de acordo com a preconização da Organização Mundial de Saúde no que tange aos aspectos da subjetividade humana, na medida em que se deve priorizar, sobretudo, a qualidade de vida de pacientes e familiares através da humanização do cuidado e minimização do sofrimento.
A Agência Internacional para Pesquisa em Câncer, através do relatório “World Cancer Report 2008”, relatou que o impacto global do câncer mais que dobrou nos últimos 30 anos. Em 2008 ocorreram cerca de 12,4 milhões de novos casos de câncer levando a 7,6 milhões de óbitos no mundo. De todas as formas de incidência do câncer a maior foi o câncer de pulmão com 1,52 milhões de novos casos, seguido pelo câncer de mama, que apresentou 1,29 milhões de casos novos, e câncer de cólon e reto com 1,15 milhões de novos casos. Em relação à mortalidade o câncer de pulmão foi à principal causa de morte, 1,31 milhões, seguido pelo câncer de estômago, com 780 mil óbitos e pelo câncer de fígado, com 699 mil óbitos. O relatório World Câncer Report 2008 ainda enumerou que o câncer mais comum nos homens foi o câncer de próstata, seguido pelo câncer de pulmão, estômago, cólon e reto. Já nas mulheres, o de maior ocorrência foi o câncer de mama, seguido pelo câncer de colo do útero, cólon e reto, estômago e pulmão(1).
Nesse sentido, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) estimou, em 2011, que no Brasil ocorreram cerca de 489.270 novos casos de câncer, sendo os tipos mais incidentes os cânceres de próstata e de pulmão nos homens e os cânceres de mama e do colo do útero nas mulheres. Estima ainda que os cânceres mais incidentes para os homens serão câncer de pele não melanoma, 53 mil novos casos, câncer de próstata, 52 mil novos casos, câncer de pulmão com 18 mil novos casos, câncer de estômago com 14 mil novos casos e câncer de cólon e reto com 13 mil novos casos. Já nas mulheres os cânceres mais incidentes serão o câncer de pele não melanoma com 60 mil novos casos, câncer de mama com 49 mil novos casos, câncer de colo do útero com 18 mil novos casos, câncer de cólon e reto com 15 mil novos casos e câncer de pulmão com 10 mil novos casos(2).
Este trágico cenário evidencia claramente a necessidade de desenvolvimento de ações que visem à promoção da saúde, que detectem precocemente o câncer, ações na assistência aos pacientes, ações específicas para a formação de equipes para o tratamento do câncer, bem como na pesquisa e na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS).
O INCA relata que a maioria dos pacientes com câncer não consegue se curar e a qualidade de vida desses pacientes diminui muito, ocasionando, assim, a necessidade de recorrer aos hospitais para minimizar os sintomas que não podem ser controlados em sua própria residência, daí a necessidade de intervenção da equipe de enfermagem. Atuação esta, que se manifesta desde as diversas fases do processo de adoecimento, diagnóstico e tratamento, até nos estágios mais avançados da doença(3).
Nesse contexto, os profissionais da equipe de enfermagem oncológica podem ser afetados pelo sofrimento dos pacientes e de seus familiares, e o envolvimento faz com que os sentimentos dos pacientes se misturem com as suas próprias emoções, vivenciando assim o sofrimento e a dor sofrida pelo paciente. Este envolvimento pode influenciar a atuação da equipe, comprometendo os cuidados da enfermagem e levando o profissional a sérios problemas, entre eles, depressão, insatisfação, estresse e até mesmo provocando um adoecimento.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu os princípios que devem reger os cuidados paliativos com o doente terminal, sendo que para esta instituição é fundamental reafirmar a importância da vida, considerando o morrer como um processo natural, devendo-se também estabelecer um cuidado que não acelere a chegada da morte, nem a prolongue com medidas desproporcionais, a chamada obstinação terapêutica. Além disto, deve-se proporcionar alívio da dor e de outros sintomas penosos, integrar os aspectos psicológicos e espirituais na estratégia do cuidado, oferecer um sistema de apoio para ajudar o paciente a levar uma vida tão ativa quanto lhe for possível antes que a morte lhe sobrevenha. E, ainda, oferecer um sistema de apoio à família para que ela possa enfrentar a doença do paciente e passar pelo período de luto com menos sofrimento(4).
Analisando a relação profissional de enfermagem e paciente oncológico em fase terminal, percebe-se que as relações humanas são estabelecidas à base do trabalho da Enfermagem. Refletindo acerca deste fato, a partir do interesse na área oncológica e movida por inquietação e necessidade de ampliação de conhecimentos teóricos e científicos acerca destes pacientes e suas necessidades, idealizou-se a realização deste estudo direcionado para a percepção da equipe de enfermagem quanto aos cuidados paliativos na assistência prestada ao paciente oncológico terminal.
A condição humana é notoriamente frágil e passageira, visto que em certos momentos nos encontramos muito bem de saúde e em momentos seguintes podemos estar dependentes de um hospital e de equipamentos para podermos sobreviver, envolvendo, para tanto, profissionais de enfermagem para a realização dos cuidados(5). É primordial que o cuidado seja praticado por estes profissionais de forma digna e humanizada. Esta observação causa grande inquietação, pois ao relacionar à necessidade de humanização da assistência oferecida ao paciente oncológico terminal, deve-se utilizar para tal os cuidados paliativos.
Assim sendo, a morte é sempre um desafio para quem recebe treinamento para manter a vida. E quando se aceita atuar junto a pacientes terminais, deve-se conscientizar de que não se é onipotente e que é dever da enfermagem cuidar, independente do quadro clínico e do sucesso ou insucesso do tratamento(2). Na verdade, todos os dias estes profissionais têm a vida de uma pessoa nas mãos, mas sempre devem lembrar que além da vida se tem a sua dignidade.
Por outro lado, sabe-se que não é tarefa fácil lidar com pacientes em fase terminal, pois desperta a consciência de que as pessoas amadas também irão morrer um dia e que diante de tal fato se é totalmente impotente. No entanto, tem-se muito a aprender com esses pacientes, sendo que eles nos ensinam que o melhor é viver a vida com a compreensão de que cada dia é único e que não se deve guardar nada para uma ocasião especial, pois a ocasião especial é agora. Assim, o estudo objetiva compreender a percepção da equipe de enfermagem frente ao cuidado paliativo em oncologia, a partir do referencial fenomenológico em Merleau-Ponty; e, indicar as implicações desta percepção na práxis da enfermagem.
O estudo justifica-se frente à proposta de integralidade e humanização da assistência preconizada no Programa Nacional da Humanização da Atenção Hospitalar (PNHAH), instituído em maio de 2000 que visa à garantia de acesso e qualidade da atenção do SUS e também na Política Nacional de Atenção Oncológica que estabelece a promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos como garantia integral do usuário ao serviço de saúde(6).
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa tipo descritiva, de abordagem qualitativa, utilizando-se o método fenomenológico em Merleau-Ponty ancorado no princípio de que o desvelar do fenômeno só será possível através da compreensão da percepção da equipe de enfermagem frente aos cuidados paliativos voltados aos pacientes oncológicos.
A pesquisa foi realizada com enfermeiros e técnicos de enfermagem que trabalham em uma instituição da rede de saúde privada na cidade do Rio de Janeiro, atuando ativamente com pacientes oncológicos em estágio terminal em setores clínicos e cirúrgico desta unidade.
A coleta de dados ocorreu entre maio a setembro de 2012. O critério para a seleção dos sujeitos foi a disponibilidade voluntária em participar do estudo e funcionários que trabalham no mínimo há um ano na assistência aos pacientes em fase de paliação, tendo em vista a investigação requerer vivência profissional junto a pacientes oncológicos em fase terminal. Como critérios de exclusão, não constaram na pesquisa os técnicos de enfermagem e enfermeiros com experiência inferior a um ano, funcionários de férias ou licenciados. Cabe ressaltar que a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense sob o registro CEP CMM/HUAP nº 364/11, atendendo aos preceitos éticos da pesquisa com seres humanos.
Assim, os sujeitos foram convidados nos seus setores de atuação e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi lido e assinado pelos sujeitos que concordaram em participar da pesquisa.
A pesquisa contou com a participação total de 21 profissionais, sendo 15 (71,4%) técnicos de enfermagem e 06 (28,6%) enfermeiros. O local para a coleta de dados foi escolhido no próprio setor de atuação, porém, obedecendo ao critério de privacidade e individualidade a cada um dos participantes do estudo.
A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista aberta, mediante um roteiro composto de perguntas abertas. A entrevista foi iniciada com a questão norteadora de cunho subjetivo que permitiu um diálogo aprofundado requerido pela investigação: “Conte para mim qual a sua percepção em relação ao cuidado de enfermagem ao paciente em paliação”. Além disso, utilizou-se a observação de campo como subsídio para que fosse possível entender a percepção da equipe de enfermagem na assistência aos pacientes em fase de paliação.
As entrevistas foram gravadas utilizando-se um gravador MP3, que permitiu registrar as falas na íntegra para que o entrevistador possa concentrar sua atenção no profissional de enfermagem, observando a emoção, linguagem não verbal, postura, gestos, expressões, bem como o ritmo e entonação da voz. Com a repetição de conteúdos nos relatos dos sujeitos, deu-se por encerrada a etapa de entrevistas.
As entrevistas foram transcritas em sua totalidade e na íntegra, respeitando-se as construções das frases, os erros gramaticais e as pausas ocorridas durante a fala. De posse dos relatos transcritos dos funcionários e das observações de campo, foi realizada a análise compreensiva e interpretativa dos significados emergidos dos discursos e das observações de campo permitindo-se construir as categorias de análise, que se constituem na estrutura situada do fenômeno (essência). As informações foram analisadas de acordo com a trajetória fenomenológica(7), que consiste em três momentos: descrição daquilo que se manifesta para a consciência enquanto vivências; redução enquanto postura de colocar entre parêntesis a nossa atitude natural diante das coisas e a compreensão fenomenológica dos invariantes do fenômeno abordado. Com efeito, faz-se uma análise descritiva e compreensiva e busca-se o sentido do todo. Em seguida formam-se as unidades de significado e depois se efetua a passagem da linguagem do dado bruto para a científica e finalmente apresenta-se a síntese das unidades de significado e tem-se o sentido da experiência(8).
Os dados apurados foram analisados e interpretados, visando a sua articulação em categorias mais amplas que se relacionem com os conceitos de percepção fundamentada na Fenomenologia Existencial de Maurice Merleau–Ponty.
A fim de minimizar possíveis riscos psicológicos para os participantes da pesquisa, tendo em vista a relação de enfrentamento dos sujeitos da pesquisa com o processo assistencial de finitude dos pacientes, foi possível contar com a contribuição de uma psicóloga do hospital para eventuais intercorrências. No entanto não houve necessidade de intervenção psicológica no momento da coleta de dados.
A interpretação dos dados obtidos foi desvelada de acordo com a fenomenologia existencial, traduzida pelo pensamento de Maurice Merleau-Ponty. Esse processo foi finalizado com o estabelecimento e elucidação de duas importantes categorias discutidas no estudo.
RESULTADOS
Na caracterização social dos 21 participantes da pesquisa, foi possível estabelecer que 15 (71,4%) dos entrevistados eram técnicos de enfermagem, dentre os quais, 13 do sexo feminino e dois do sexo masculino. Os profissionais enfermeiros totalizaram 06 (28.6%), sendo quatro do sexo feminino e dois do sexo masculino.
A partir da análise dos dados, vislumbrou-se a essência do fenômeno em questão que envolve os profissionais diante da percepção em relação ao cuidado de enfermagem ao paciente em paliação, categorizando medidas de conforto como relevância do estudo.
A categoria apreendida representa perspectivas do fenômeno estudado e refletem como os profissionais da investigação expressam essas percepções diante da paliação, enquanto vivenciando o mundo-da-vida profissional. Assim, foi possível a apreensão das percepções do profissional de enfermagem acerca do cuidado paliativo, entendidas como ações de conforto ao paciente terminal e como um encontro de intersubjetividades.
Cuidado paliativo como medidas de conforto
Analisando as falas da equipe de enfermagem foi possível identificar e trazer à luz da discussão esta categoria na pesquisa. Indiscutivelmente, técnicos e enfermeiros acreditam que o conforto seja o alicerce de uma excelência na assistência e um cuidado humanizado pautado na qualidade de vida do paciente. Os resultados da pesquisa nesta categoria apontaram para a relevância de medidas abrangentes de conforto:
Eu acredito que a minha percepção frente ao paciente ao cuidado de paliação seja promoção da melhora desse paciente, melhora não, do conforto ao paciente visando o melhor atendimento para ele, para o paciente. (Profissional 02)
Bom, a visão que eu tenho hoje de um cuidado paliativo frente a esses pacientes, são cuidados não somente, estritamente voltado para a enfermagem, mas proporcionar o conforto ao paciente o máximo que puder. Por exemplo, não somente uma mudança de decúbito, mas também uma conversa, mas também uma atenção, mas também um ouvir, abranger os familiares, estar orientando os mesmos acerca do paciente de como cuidar, de como voltar atenção a esses pacientes, porque o cuidado paliativo é uma visão muito além de um simples cuidado de enfermagem, envolve a parte social, envolve a parte espiritual, envolve principalmente a família. (Profissional 11)
De acordo com que foi recebido do paciente em paliação, paciente já fora de possibilidade dado pelos médicos, ao entrar no quarto e dar os cuidados de enfermagem, procura-se promover mais conforto ao paciente, um bem estar... Em minha opinião, já não tem mais o que se fazer. (Profissional 18)
Apesar dos profissionais da equipe de enfermagem relatarem o conforto, o bem-estar, o carinho e a paciência, dentre outros, como sendo parâmetros imprescindíveis para a qualidade de vida dos pacientes em cuidados paliativos, as falas dos profissionais desvelam que os cuidados prestados aos pacientes em fase de paliação ficam restritos ao corpo físico e aos cuidados prestados de forma mecanizada.
É um paciente que a gente está acostumado a tratá-lo mecanicamente, né? E na maioria das vezes a gente já chega fazendo o paliativo fazendo com que a dor dele minimize. (Profissional 17)
O técnico de enfermagem mesmo sabendo que às vezes falta paciência, a gente tem que proporcionar esses cuidados, carinho, conforto ao paciente e a família também. Porque o paciente vai e a família acaba ficando. (Profissional 19)
Os profissionais de saúde que participaram deste estudo reconhecem que o conforto e humanização na assistência aos pacientes que se encontram em cuidados paliativos são imprescindíveis para alcançar uma qualidade de vida digna e respeitosa a esses pacientes. Porém, a evidência que é desvelada no fenômeno é um conflito importante entre as falas dos profissionais e a prática assistencial observada, tendo primazia nos procedimentos com o corpo físico, na medida em que o discurso dos sujeitos destoa da vivência na práxis.
Cuidado Paliativo: o encontro de intersubjetividades
O encontro intersubjetivo se dá entre dois sujeitos. No verdadeiro encontro intersubjetivo o sujeito se torna responsável pelo outro e essa responsabilidade se chama amor ao próximo, amor em que o momento ético domina(9). Essa perspectiva pode ser apreendida no estudo identificando-se que a percepção da equipe de enfermagem frente aos pacientes em paliação, correspondente a um mesmo padrão de relevância quanto a um cuidar pautado no respeito, dignidade, humanização e na escuta qualificada. Apesar de existirem programas e protocolos que direcionam a qualidade desse estudo, podemos perceber que, a equipe de enfermagem tem a preocupação em realizar os cuidados com qualidade e respeito aos direitos do paciente. Porém, a assistência ainda é prestada de forma mecanizada e voltada fortemente para o cuidado ao corpo físico e as rotinas inerentes ao processo de trabalho.
É importante, no entanto, perceber que essa inquietude, no desvelar do fenômeno, acontece essencialmente por existirem aspectos que envolvem pessoas. A busca de um novo olhar para desvendar e entender o fenômeno estudado consiste não só no preparo e embasamento técnico-científico dos profissionais, mas, também, na vivência do outro e na abordagem vivencial da prática profissional.
A minha percepção é ter o máximo possível de cuidado, de carinho, de atenção. Mesmo sabendo que o paciente não tem chance, que mais para frente vai falecer, a gente tem que ter carinho com o paciente e com a família, fazer os cuidados. Tem que promover conforto, tem que ter paciência. (Profissional 19)
Eu creio sim que é muito importante os cuidados, paliativos que seja, mas é muito importante, muito válido sim, não largar simplesmente o paciente no leito e deixar ele lá largado e ir embora sem ninguém do lado, sem uma pessoa para dar uma palavra de conforto. Eu acho que é muito, mas muito importante mesmo. (Profissional 12)
Bom, além do cuidado que a gente tem que prestar de enfermagem né, acho que o paciente está precisando de muita atenção, né? O paciente está carente. É preciso que a gente tenha uma palavra amiga com ele, procurar entender o lado dele. Às vezes ele não está querendo só o lado da enfermagem, às vezes é um paciente sozinho que não tem ninguém e que acaba precisando de uma palavra; que a gente compreenda, às vezes não é a dor em si que ele está sentindo, ele tá precisando desse cuidado; que a gente dê mais atenção. (Profissional 07)
Nesta perspectiva, o sujeito da equipe de enfermagem na convivência e na experiência de cuidado com pessoas em processos de paliação adquire um saber para si mesmo e para outrem estabelecendo o encontro intersubjetivo, relacionando o cuidado à conforto.
Isso porque as medidas de conforto viabilizam interações compreensivas no cuidado com o corpo do paciente, numa perspectiva subjetiva de sua existência, a partir da percepção do ser humano em sofrimento, propiciando-se a humanização por meio desse encontro de intersubjetividades estabelecido pelos entrelaçamentos que se firmam no cuidado. Isso vem a corroborar com a premissa da fenomenologia em desvelar o fenômeno da percepção em relação ao conhecimento do corpo, dos sentimentos, dos comportamentos, das relações estabelecidas com o outro no mundo dinâmico e que sofrem transformações a todo o momento.
DISCUSSÃO
No cuidado paliativo, o desafio primordial é possibilitar ao paciente uma vida com mais qualidade diante da própria morte. Para isso, deve-se respeitar e colocar em prática os princípios dos cuidados paliativos. Diante do cenário gerador de sofrimento em que se encontra o paciente em cuidados paliativos, se faz relevante a implementação de uma política de assistência pautada no respeito à dignidade do doente associada com o apoio psicológico. “O olhar do paciente, como sujeito de uma vida e história e não como prisioneiro de uma doença”(10).
A palavra ‘conforto’ nos impulsiona a referenciarmos o corpo e a fala como sujeitos da percepção. Em Merleau-Ponty afirma-se que: “O Cogito deve revelar-me em situação, e é apenas sob essa condição que a subjetividade transcendental poderá, como diz Husserl, ser uma intersubjetividade”(7:198).
Nesse sentido, a intersubjetividade apreendida na relação entre profissional de enfermagem e paciente é vivenciada em uma determinada situação do cuidado, e nessa interação cotidiana a equipe relaciona o significante ‘conforto’ ao cuidado paliativo, uma vez que se percebe da práxis laboral a experiência que remete ao encontro intersubjetivo, ou seja, entre os sujeitos e as suas subjetividades.
Para que haja uma compreensão efetiva de um fenômeno vivenciado, a perspectiva merleaupontyana esclarece que é preciso se considerar algumas palavras-chaves: percepção, intencionalidade e consciência. Como afirma Merleau-Ponty, há que se ir “até a raiz da subjetividade com suas ideias em relação ao corpo-sujeito, ressalvando a intencionalidade e a significação”(11).
Na verdade, a filosofia de Merleau-Ponty entra em cena para atribuir significados sobre os fenômenos da percepção, uma vez que a compreensão da relação tempo e espaço no cotidiano do enfermeiro é mediado pelas relações corporais enquanto ser-no-mundo. Nesse sentido, ao compreender as interações estabelecidas com o corpo, consciência e experiência, e estas relacionadas com o ser no mundo, embasadas pela fenomenologia à luz de Merleau-Ponty, fica evidenciado que os cuidados aos pacientes, dispensados pela equipe de enfermagem durante todo o processo assistencial, são realizados de forma unidirecional. Nesse processo, não se tem compreensão do corpo físico que ocupa lugar no espaço e que estabelece relações o tempo inteiro entre si e constitui o sujeito como ser no mundo que o cerca.
Na verdade, essas relações estabelecidas entre o paciente e os profissionais de saúde não são percebidas pela consciência, trazendo à redução fenomenológica, ou seja, colocar essa experiência entre parênteses e liberar o olhar para se estar disponível à compreensão daquilo que se mostra à consciência. Assim sendo, “mais uma vez, meu olhar humano só põe uma face do objeto, mesmo se, por meio dos horizontes, ele visa todas as outras (percebo sob diferentes ângulos o objeto central de minha visão atual)”(7:107). Isso porque nossa visão, nossa percepção se dá em perspectivas, em perfil; ao enxergarmos um fenômeno estamos diante de um viés dele por ser inesgotável e por se dar a cada vez à experiência. Em outras palavras, o fenômeno é apreendido pelo sujeito em perspectiva porque este é o seu modo de se revelar, na medida em que ele acolhe, em cada momento, uma face do objeto, ou seja, aspectos do cuidado enquanto fenômeno percebido em sua prática.
A compreensão do corpo se estabelece na relação do ser humano e através do próprio corpo, como um espaço expressivo e inesgotável em relação às totalidades das partes do corpo. É importante ressaltar que nenhuma experiência é igual a outra. As experiências são únicas e acontecem entre as relações e interações entre os seres humanos.
O cuidar, em cuidados paliativos, é uma arte, em que as relações humanas assumem um papel de destaque e permitem a preservação da qualidade de vida da pessoa mesmo numa situação complexa, proporcionam uma morte tranquila e promovem um processo de luto(12). Assim, a significação e a compreensão dos cuidados paliativos tem uma amplitude que transpassa a própria palavra. O desvelar das dimensões do fenômeno “cuidados paliativos” tem como base a promoção da dignidade, da proteção, do conforto, do alívio da dor, do sofrimento físico, espiritual e psicológico, a comunicação aberta com o paciente, a ação interdisciplinar, o apoio familiar, o cuidado humanizado e um plano terapêutico individualizado.
A expressão de sentimentos por parte dos pacientes é um ponto extremamente positivo para o enfrentamento da morte(13). “Se por um lado a situação de terminalidade inviabiliza a tão sonhada cura, por outro ela abre a possibilidade de um aprofundamento dessa relação humana”(14:73). Entretanto, não é tarefa fácil do profissional de saúde, compreender todo esse contexto e quebrar alguns paradigmas assistenciais de saúde consolidados ao longo dos tempos.
Na perspectiva de Merleau-Ponty, estamos em certa medida revelados, ou seja, sempre expostos à percepção de outrem e, por isso, somos intersubjetividade: ”A subjetividade transcendental é uma subjetividade revelada, saber para si mesma e para outrem, e a este título ela é uma intersubjetividade”(7:485).
Assim, não se deve ignorar o mundo objetivo, muito pelo contrário, o existir da percepção e sua subjetividade só torna-se possível porque o mundo objetivo existe, nos permitindo “perceber” as coisas nos diversos olhares e ângulos ao longo dos tempos. É através da consciência e do mundo objetivo que vivenciamos nossas experiências, compreendemos a subjetividade e vinculamos a percepção ao campo fenomenológico. Convém destacar que devemos estar abertos a perceber o outro em sua dimensão existencial, atentando que “a posição absoluta de um só objeto é a morte da consciência, já que ela imobiliza toda a experiência, assim como um cristal introduzido em uma solução faz com que ela instantaneamente se cristalize”(7:109).
Enfim, a vivência do processo de morte na clínica traz a possibilidade de finitude como parte inalienável da existência, o que implica em aprender a conviver com a constante dualidade vida-morte no cotidiano do cuidado. No âmbito do cuidado paliativo, a multiforme abordagem transdisciplinar, evoca um trabalho conjunto em prol da morte digna, “fundado no êxtase de profundas reflexões e concentrado na serenidade das atitudes que valorizam a dimensão humana do sujeito em processo de morte e morrer”(15:4989).
CONCLUSÃO
Ressaltamos, inicialmente, que o estudo apresentado trouxe um recorte da assistência de enfermagem aos pacientes que se encontram em cuidados paliativos e a percepção da equipe de enfermagem no cuidado prestado a esses pacientes. Consideramos apenas as falas dos sujeitos do estudo, que foram técnicos de enfermagem e enfermeiros. Assim, nossos resultados e conclusões se limitam a esses profissionais e à metodologia aplicada.
Nas universidades não se evidencia, atualmente, uma grade curricular adaptada para preparar os profissionais de enfermagem para trabalhar com pacientes em paliação. Desta forma, existe um “despreparo” desses profissionais no campo de trabalho que, consequentemente, reflete na prática assistencial.
É preciso que a equipe de enfermagem integre-se a uma assistência multidisciplinar, em que não haja vaidades e sim uma percepção que seja concretizada através da compreensão do paciente, interpretação das suas percepções e, por conseguinte, na transformação da realidade apresentada. Para tanto, se faz necessário não só o conhecimento técnico, através das especializações e atualizações nas grades das instituições de ensino, mas também aprender a lidar com a instância do humano mediante iniciativas que visem à humanização das práticas em saúde.
Sugere-se que as equipes de enfermagem que assistem aos familiares e aos pacientes sob cuidados paliativos oncológicos, prestem cuidados que tenham como foco fundamental o apoio ao cuidador, apoio emocional, espiritual, esclarecimento de valores, sobretudo aqueles relacionados à finitude, recebendo qualificação específica nos serviços para promoverem a redução da ansiedade e, como enfermeiros, zelarem pela proteção dos direitos dos pacientes.
REFERÊNCIAS
1. World Health Organization. World Cancer Report, 2008. International Agency for Research on Cancer: Lyon; 2009.
2. Ministério da Saúde [ BR ]. Instituto Nacional de Câncer. Estimativa 2010: incidência do câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2009.
3. Organização Mundial Saúde. Organização Pan Americana da Saúde. Cuidados Paliativos: Guias para el manejo clinico. 2ª ed. [ S.l. ]: OPAS; 2004.
4. Aranha MLA, Martins MHP. Filosofando: introdução à Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Moderna; 2009. Cap. 35: A morte. p. 331-4.
5. Ministério da Saúde [ BR ]. Secretaria de Assistência à Saúde.Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar.Brasília: Ministério da Saúde; 2001.
6. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da Percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.
7. Giorgi A. The descriptive phenomenological method in psychology. A modified Husserlian approach. Pittsburgh: Duquesne University Press; 2009.
8. Lévinas E. Entre Nós. Petrópolis: Vozes; 2005.
9. Ministério da Saúde [ BR ]. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): MS; 1996.
10. Terra MG, Gonçalves LHT, Santos EKA, Erdmann AL. Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty como referencial teórico-filosófico numa pesquisa de ensino em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm. 2009 Set; 30(3): 547-51.
11. Guedes JAD, Sardo PMG, Borenstein MS. A enfermagem nos cuidados paliativos. Online Braz J Nurs [ periódico na internet ].2007 Ago [ Acesso em 15 Mar 2012 ] 6(2). Disponível em: http://www.objnursing.uff.br//index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2007.740/198.
12. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estud psicol. 2006; 11 (2): 209-16.
13. Pontes AC, Espíndula JA, Valle ERM, Santos M. Bioética e profissionais de saúde: algumas reflexões, Bioethikos. 2007; 1(1): 68-75.
14. Silva RMCRA, Pereira ER, Silva MA, Teixeira ER, Refrande SM, Pereira PCR. Morte como fenômeno transdisciplinar na prática em saúde: reflexão existencial a partir de Norbert Elias. Rev enferm UFPE on line. 2013; 7(esp):4984-92.
Recebido: 06/12/2012
Revisado:16/01/2014
Aprovado: 17/01/2014