ESTUDO DE CASO
Prática social e pedagógica do enfermeiro-preceptor: um estudo de caso
Verônica Caé da Silva1, Ligia de Oliveira Viana2, Claudia Regina Gonçalves Couto dos Santos2
1Ministério da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro
2Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
Objetivo: Descrever a prática pedagógica desenvolvida pelo enfermeiro-preceptor junto ao graduando de enfermagem.
Método: Estudo de caso realizado em 2011, no Hospital Escola São Francisco de Assis, cujos sujeitos foram 14 enfermeiros-preceptores que acompanharam os graduandos da Escola de Enfermagem Anna Nery. Utilizaram-se os documentos oficiais e entrevistas para coleta dos dados qualitativos, descritivos e, a análise se deu por categorias temáticas. Protocolo do CEP EEAN/HESFA nº114/2010.
Resultados: As ações de ensino ocorreram principalmente na consulta de enfermagem e o preceptor pouco participou do planejamento e avaliação das atividades dos estudantes. Houve preocupação com a organização do serviço e distribuição de número de alunos por setor.
Discussão: Destacou-se a relação de poder e a dimensão política na prática social do sujeito, assim como a dicotomia entre teoria e prática.
Conclusão: O enfermeiro-preceptor não participou de todas as etapas constituintes da prática pedagógica, mas, realizou atividades que exigiram tal participação.
Descritores: Preceptoria; Educação em Enfermagem; Ensino.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a educação formal está organizada legalmente em Educação Básica, com educação infantil, ensino fundamental e médio, e Educação Superior. Cada entidade do governo deve assumir responsabilidades em respeito ao direito da população à escola, ao saber sistematizado. Como rege a Lei nº 9.394/1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a educação que acontece na instituição escolar destinada para todos os cidadãos deve estar atrelada ao mundo do trabalho e à prática social(1).
As instituições escolares que oferecem Curso Superior de Enfermagem devem formar enfermeiros como membros da área de conhecimento da saúde, capazes de exercerem sua prática no interior dos diversos espaços profissionais, enquanto cidadãos brasileiros comprometidos com o desenvolvimento da sociedade.
Durante o Curso de Graduação em Enfermagem, o aluno vivencia disciplinas de trabalho de campo e estágio, pois, se faz necessária, para conclusão do mesmo, a articulação entre os conhecimentos teóricos e práticos. Desta construção profissional participam diversos agentes sociais, tais como os professores, os próprios alunos, os usuários do serviço de saúde, seus familiares e os profissionais dos serviços, principalmente os enfermeiros, futuros colegas de profissão.
O preceptor é o profissional, com vínculo empregatício no serviço de saúde, que participa da supervisão e orientação de estagiários para a construção do conhecimento, com seus saberes e modos de ação. Portanto, o enfermeiro-preceptor é considerado um agente da prática pedagógica, sendo esta reconhecida como parte de um processo social e de uma prática social maior que compreende a esfera educativa não somente no âmbito escolar, mas, na dinâmica das relações sociais que produzem aprendizagens(2).
Na tentativa de alcançar uma forma de trabalho educativo que conduza à crítica e a transformação do aluno de enfermagem em um profissional competente e hábil para atuar na sociedade, tanto o professor quanto o preceptor devem preocupar-se com o quê ensinar, para quem e como ensinar. Em suma, devem refletir sobre como realizar uma efetiva prática pedagógica, que é também descrita como o ensino de um determinado conteúdo(3).
A prática pedagógica como um evento social presente no mundo inteiro, não permanece restrita aos espaços de discussão teóricos, ocorre entre os sujeitos na vivência do cotidiano. Neste sentido, cabe destacar que a “interrelação entre os sujeitos pode favorecer a construção contínua dos conhecimentos interdisciplinares que promove uma formação social mais crítica e solidária”(4:8).
Alguns componentes são essenciais para que a prática pedagógica não se torne reprodutivista, e cumpra seu papel na transformação da realidade, são eles: planejamento, objetivos, conteúdos, estratégias, recursos didáticos e avaliação. Estes não são estáticos, compartimentalizados e nem devem ser construídos de modo unilateral, ao contrário, todos devem ter sua participação assegurada.
Para refletir a respeito da possibilidade da prática pedagógica - que se estabelece entre o enfermeiro do serviço de saúde e o aluno durante a realização de atividades -, como trabalho de campo e ou estágio, foi formulada a seguinte questão norteadora: como se dá a prática do enfermeiro no desenvolvimento das ações de preceptoria junto aos graduandos em estágio curricular? Para tal, traçamos como objetivo: descrever a prática pedagógica desenvolvida pelo enfermeiro-preceptor junto ao graduando de enfermagem do quarto ao oitavo período curricular.
MÉTODO
Estudo de natureza qualitativa, exploratório e descritivo. O estudo de caso foi a estratégia metodológica utilizada, que permitiu a investigação do objeto de pesquisa “sobre um fenômeno contemporâneo no contexto da vida real”(5: 22).
No presente, o fenômeno estudado caracterizou-se como único, representativo ou típico de uma instituição. Justificou-se o estudo de caso pela singularidade da unidade, pois, foi estudada a preceptoria realizada junto aos graduandos da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), a primeira Escola de Enfermagem do Brasil implantada no modelo da Enfermagem Moderna, nos moldes de Florence Nightingale; além de ser a escola de uma universidade que utiliza novas metodologias, com a orientação curricular sob a forma de integração em três sentidos, a saber:
O cenário da pesquisa foi o Hospital Escola São Francisco de Assis (HESFA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os sujeitos foram 14 enfermeiros que atuam como preceptores dos alunos de graduação da EEAN do quarto ao oitavo período curricular. Os entrevistados foram chamados de “informantes-chave” e, aos quais se garantiu a preservação do anonimato, mediante utilização de codinomes.
Para execução da coleta de dados, consideraram-se os princípios do uso de mais de uma fonte, conforme preconizado para estudos de caso e que propiciou o “desenvolvimento de linhas de convergência de investigação e um encadeamento de evidências”(5:123).
Como primeira fonte de coleta de dados, utilizaram-se documentos oficiais (total de 19) do curso de graduação da EEAN, do HESFA, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Ministério do Trabalho e Emprego, do Conselho Federal de Enfermagem e da Associação Brasileira de Enfermagem, importantes instituições que norteiam a prática pedagógica do enfermeiro-preceptor.
A aplicação de um roteiro de entrevistas semiestruturadas, realizadas de fevereiro a junho de 2011, serviram para coleta dos dados descritivos, como segunda fonte. Para a realização das entrevistas (total de 14) solicitamos aos informantes-chave à leitura e assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido individual.
Para análise, foi utilizada uma abordagem que ocorreu juntamente com a coleta dos dados, que “demonstra o caráter flexível do método qualitativo”(6:53). A partir da base conceitual - Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) - e das referências teóricas sobre prática pedagógica e preceptoria na formação do enfermeiro, categorizaram-se os diferentes núcleos encontrados.
Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado intitulada “Preceptoria - Nexos com a Pedagogia Histórico-Crítica de Saviani: o Caso da Escola de Enfermagem Anna Nery”, aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da EEAN/HESFA, registrada sob o Protocolo 114/2010, segundo os preceitos da Resolução 196/1996(7).
RESULTADOS
A organização da prática pedagógica e as relações firmadas entre e pelos agentes sociais
A principal atividade de ensino e aprendizagem realizada junto aos graduandos da EEAN no HESFA é a consulta de enfermagem. Os enfermeiros-preceptores descrevem o ensino da consulta, no âmbito ambulatorial, conforme preconizado pela Lei nº 7.498/1986 (8) e, atendem à Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), esclarecendo algumas de suas etapas: histórico, exame físico, prescrição e avaliação de enfermagem.
Assim sendo, respondem ao artigo 4 das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem(9), que trazem como competências e habilidades desejadas para formação do enfermeiro a atenção à saúde e a tomada de decisão.
A consulta de enfermagem é feita comigo, onde é feito todo o exame físico, toda a parte de coleta de dados, a anamnese. A gente faz uma leitura do prontuário desse paciente, encaminha […] eu mostro para eles o serviço. (Fé)
Os preceptores, preocupados com a valorização da enfermagem no cotidiano do trabalho, fazem questão de firmar a sua presença no mundo e de que os alunos compreendam o que é ser um enfermeiro na atualidade, distinguindo-o das outras profissões da área da saúde.
É uma forma de você prestar uma assistência que ela não é médica. Mas, é atendendo necessidades do indivíduo, e isso é muito importante. Na consulta de enfermagem você consegue fazer todo esse levantamento. […] O aluno acompanha tudo. (Fidelidade)
Eu deixava muito claro que [...] “o enfermeiro do setor Y”, ela trabalha com pessoas, ela trabalha com o conceito de subjetividade [...] o aluno ele começava a ter informação do que significava ser um “enfermeiro do setor Y” e o porquê ele é importante dentro de uma instituição. (Alegria)
Quando o informante-chave Alegria afirma que o enfermeiro é importante dentro da instituição, ele faz um movimento de defesa de sua categoria profissional, do seu espaço conquistado no trabalho, da importância de levar esta informação a outros, com compromisso e responsabilidade.
O pouco tempo de permanência dos graduandos da EEAN no setor, realizando atividades práticas e, consequentemente, em contato com o enfermeiro-preceptor, dificulta a interação, o estabelecimento de confiança e a possibilidade de mais aprofundadas discussões sobre o mundo do trabalho da enfermagem. Pode-se verificar, no depoimento, que este fato leva à decepção tanto dos preceptores quanto dos alunos, que não propiciam novos atendimentos ao mesmo usuário para avaliar a implementação de um cuidado e a prescrição que fizeram, por exemplo.
Eu acho que eles passam muito rápido. E a gente vê isso muito também quando eles vêm e ficam com a gente “ah, você volta?”, “não, não volto mais”. Então, às vezes, eles ficam um pouco chateados. Então, às vezes, dentro da escala, tem uns que só vêm uma única vez. (Bondade)
Os informantes-chave, apoiados no tempo abreviado de estada dos alunos no setor, explicam o porquê permitem somente a observação atenta da assistência de enfermagem, sendo contraditórios:
Então, na verdade, eles [os alunos] fazem mais uma observação do nosso trabalho. Eles não ficam um tempo que permita eles desenvolverem nenhum tipo de atividade. (Bondade)
Não deixamos o aluno fazer, mas ele está sempre observando, está sempre ali por perto e nós sempre estamos explicando alguma coisa. (Sabedoria)
A prática pedagógica, desta forma, obscurece a percepção do educador e do próprio educando do processo de ensino e aprendizado, no sentido de movimento do abstrato para o concreto, do saber do senso comum para o saber elaborado, que deve ser propiciado nos espaços de formação universitária. Um caminho indicativo para a solução desse impasse pode ser vislumbrado na fala seguinte:
Mas, quando eu tenho aluno de graduação, é ação educativa ou eles assistem. Quando estão no 4º período só assistem a consulta de enfermagem ginecológica, quando estão no último eu deixo realizar, sob a supervisão, a consulta de enfermagem. (Afabilidade)
Sob esta perspectiva, o aluno (do 4º ao 8º período do curso) saiu da prática social (que é comum a ele e ao preceptor), passou pela etapa da problematização e já está instrumentalizado para realizar a ação esperada, podendo fazer a catarse. Sendo estes reconhecidos como os passos do método da Teoria da PHC de Saviani(10), apresentados na seção discussão do presente artigo.
Constata-se nos depoimentos, que é inevitável uma organização quantitativa de alunos no setor, para que o enfermeiro-preceptor assegure um atendimento de qualidade ao usuário e torne mais fácil o ensino e aprendizado dos que estão sob sua supervisão.
Em campo de estágio, vem mais ou menos de 06 a 07 alunos. Vem no mesmo momento, mas, nós geralmente dividimos esses alunos em 02 salas, 03 ficam e depois 03 voltam. (Fé)
Quanto à presença do docente no campo, enfatiza-se que não deve ser razão para o distanciamento do preceptor, pelo contrário, pode ser um momento de ganho adicional para o aluno, que aproveita a experiência e o saber de dois enfermeiros, um, que ele já reconhece da sala de aula e outro que ele passa a conhecer. Infelizmente, esta parceria no cenário de ensino e aprendizagem por vezes não acontece, pois,
Normalmente é ele [o docente] que permanece. Eu só estou presente quando ele não pode estar. Quando ele não pode estar o aluno realiza com a gente. (Fidelidade)
Um fato marcante, presente em alguns depoimentos, é a valorização daquele que faz, o qual se pode chamar de enfermeiro assistente - o preceptor, diferenciada da valorização do que ensina a fazer, o enfermeiro docente - o professor.
E, às vezes, esse professor ele não está dentro, não está inserido mais na prática, é aquele professor que está só na academia, um pouco mais afastado. E aí, assim, nós que estamos com a mão na massa, na linha de frente. Então, faz uma diferença enorme. Assim, é aquela dicotomia da teoria e da prática. Então, quando chega aqui na prática temos é que mostrar mesmo, que ensinar mesmo. (Ciência)
Muitas vezes o enfermeiro quando assume o cargo efetivo de 40 horas semanais como docente da EEAN não pode ter outro vínculo profissional, pois, lhe é exigido legalmente dedicação exclusiva às atividades acadêmicas. Caso lecione uma disciplina totalmente teórica por algum período letivo, realmente estará distante da assistência direta ao cliente, o que pode comprometer seu desempenho futuro, no retorno da supervisão do graduando no campo. Na verdade, o professor não se esconde na academia, na sala de aula, pois, também responde a uma norma instituída.
Alguns agentes sociais conseguem fazer a articulação necessária à prática pedagógica que realizam com o graduando, já que, querendo ou não, intencionalmente ou não, a relação entre teoria e prática se faz presente.
E a prática, ela trás pra você uma flexibilidade muito grande, onde você tem que ter o conhecimento teórico, e em cima disso você tem que ter o critério de onde eu vou inserir o que eu estou pensando ou o que eu identifiquei como diagnóstico, como levar ele a querer fazer aquilo ou pelo menos ter o interesse de pensar sobre aquilo. (Fidelidade)
Obteve-se, e é significativo registrar, resposta positiva acerca da permanência do professor no setor junto ao informante-chave:
É fundamental a presença dos professores [...] nós estamos sempre discutindo, trocando informações. Nós tentamos saber dos cursos que estão acontecendo para fazermos. Então, tem uma troca importante também minha como enfermeira e com os professores da Anna Nery. (Brandura)
Logo, a presença do enfermeiro-preceptor ao lado do professor permitirá melhorar a qualidade da formação e, consequentemente, a presença do professor, no espaço de prática, poderá ser vista como um catalizador de mudança.
Planejamento e avaliação da prática pedagógica: a expressão dos enfermeiros-preceptores
Durante as entrevistas, identificou-se que há um acordo entre os enfermeiros-preceptores e os professores, tanto para adequação do número de alunos no setor quanto para própria chegada do mesmo. Porém, este se estabelece fora de um espaço-tempo previamente agendado entre ambos, o que evidencia uma falta de cuidado com o planejamento das atividades pedagógicas de caráter prático.
Os professores antes de encaminharem os alunos, fazem uma ambiência na unidade, passam com eles, mostram o setor e falam “olha, vocês vão estar aqui” e me comunicam “X, eu vou encaminhar para você”. Claro que tem um acordo, já que eu não posso ficar com vários alunos, eu fico no máximo com 02 alunos. (Cura)
Quando questionados a respeito da participação no processo de planejamento das atividades práticas que os alunos realizam no setor, quase foram unânimes em responder que não participam deste processo.
Não. Não, com quem organiza não. [...] quando eles vêm, eles já comunicam o que eles vêm fazer […] comunicam, mandam a planilha, mas, não participamos não. (Caridade)
Mas, assim, o planejamento é basicamente uma execução do professor. Só se torna um planejamento da unidade, na ausência do professor. (Fidelidade)
Um dos informantes-chave consegue enxergar no aluno de enfermagem um indivíduo em processo de desenvolvimento pessoal e construção profissional e, de alguma maneira, externa a sua necessidade de participação no planejamento das atividades práticas, para conhecer e contribuir mais com os objetivos da formação, como já aconteceu em outros momentos, pois, acompanha os alunos da EEAN há 15 anos no HESFA.
Tem uma coisa que eu acho que é ruim, em termos de não ter essa participação. A partir do momento que a “X” saiu, eu passei a não ter essa participação. A visão da pessoa era outra, como se diz,“olha, se você não tem o mestrado, eu sou o professor, você é o enfermeiro”. Não vou dizer que foram essas palavras, mas, eu entendi claramente. (Alegria)
A lógica da reprodução também se expressa, de forma marcante, na fala de uma enfermeira-preceptora:
Não. Eles [os docentes] já têm, eles já vêm previamente com uma estrutura e eu posso até opinar, mudar alguma coisa, mas, geralmente a gente já está um pouco acostumado a receber e a trabalhar daquele jeito. Então, eu não vejo necessidade de estar interferindo nisso, não. (Brandura)
Depreende-se, a partir do depoimento de Bradura, que uma prática pedagógica que não reclama revisão e análise periódicas, que se acomoda e, por vezes, teme a mudança, é perturbadora. Afinal, é difícil retirar os entraves para a construção de um currículo dinâmico, no cotidiano do cuidado em saúde diante do cliente, família, comunidade e, inclusive, de outros profissionais do serviço.
Os relatos ainda evidenciam que os enfermeiros-preceptores dos alunos da EEAN permanecem afastados do processo de avaliação.
Avaliação por escrito, da minha parte, não. O professor sempre pergunta “e aí, está tudo bem?” e como é que foi o aluno, assim, verbalmente. Eu passo o que aconteceu, agora quem vai fazer essa avaliação mesmo é o professor. (Sabedoria)
A pergunta que parece emergir é: como avaliar se eu desconheço o que é esperado que o aluno alcance e as habilidades que ele deve desenvolver? Quando os enfermeiros-preceptores não participam do planejamento, realmente não tem condições de saber o que vão exigir do aluno, se excluem do processo avaliativo da prática pedagógica.
DISCUSSÃO
Com base nos resultados, foi possível identificar que os enfermeiros do estudo ao descreverem a consulta de enfermagem (como principal atividade realizada na preceptoria), considerando as etapas da SAE e a importância do ser humano em toda a sua dimensão, demonstram o desvelo em ensinar aos alunos ações relacionadas aos aspectos subjetivos do indivíduo, como o acolhimento e a escuta ativa.
Deste modo, distanciam os modelos assistenciais centrados na solução dos problemas de saúde de ordem física (os chamados biomédico ou hospitalocêntrico), do modelo de vigilância à saúde, com o enfoque na integralidade, equidade, humanização e direito à informação. Trilham o percurso descrito na missão do hospital cenário e das políticas públicas de saúde e educação nacionais.
Dos objetivos da preceptoria de enfermagem em um dos serviços do HESFA, consta a introdução, orientação e acompanhamento dos graduandos no processo de trabalho do setor, com a instrumentalização “para a construção de uma visão crítica acerca dos diferentes modelos assistenciais”(11).
Evidencia-se, portanto, um dos passos da PHC de Dermeval Saviani(10), a instrumentalização. Há o interesse dos enfermeiros-preceptores em conduzir o graduando a um olhar crítico para realidade em que estão inseridos. Para tanto, precisam problematizar sobre os modelos de assistência à saúde no Brasil.
No estudo, é possível identificar com clareza a relação de poder e a dimensão política da prática social do enfermeiro num espaço institucionalizado de construção coletiva do cuidado, o HESFA.
Sendo a enfermagem uma profissão marcada por lutas no campo das ciências da saúde - vale lembrar que, no Brasil, discute-se a jornada de trabalho de 30 horas semanais, a precarização das condições de trabalho, a fragilidade do vínculo trabalhista com a ausência de concurso público e contratações temporárias, a visibilidade e exposição da profissão na mídia televisiva, entre outros -, o aluno precisa também, no campo de prática durante o curso, encontrar com profissionais que conseguem apresentar a realidade do mundo do trabalho, que é um local “habitado por disputas micropolíticas e tecnológicas”(12:108), muitas vezes já sinalizadas pelos docentes na sala de aula.
O enfermeiro-preceptor que consegue estabelecer uma discussão em nível político, social e de classe com o graduando, está indo ao encontro do que Saviani(10) propõe com a problematização: ajudar o aluno a refletir sobre questões da sua prática, sem reservas, com transparência, trazendo os fatos reais do cotidiano profissional.
O pouco tempo que alguns graduandos permanecem no setor leva à interrupção do processo educativo que, por vezes, o enfermeiro-preceptor vem estabelecendo com o mesmo, instrumentalizando-o. Este pode ser um fator complicador para o desenvolvimento do aprendizado do estudante e uma barreira ao alcance da cartase, da PHC de Saviani(10), na qual espera-se a “efetiva incorporação dos instrumentos culturais, modificados para elementos ativos de transformação social”(13:231).
Na tentativa de minimizar sofrimentos como esse (estagiar somente uma manhã em dado setor, por exemplo), a escola durante a organização do calendário e na divisão da quantidade de dias efetivos do aluno no campo de prática, deve ter cuidado com o prosseguimento da atividade, de forma que aconteça no tempo necessário para alcance dos objetivos traçados. Inclusive, permitindo que o aluno avance da condição de observador para executor das ações junto à clientela.
Sobre a preocupação em redistribuir o número total de alunos no setor, a partir da análise da Lei nº 11.788/08(14), assinala-se que os preceptores do HESFA, considerada parte cedente do estágio, agem corretamente. Na assistência de enfermagem em nível ambulatorial, devem realmente orientar e supervisionar no máximo dez estudantes.
É notório que os enfermeiros-preceptores - pelo relacionamento cordial que têm com os docentes, pelo tempo que já recebem os alunos no serviço, por saber que as duas instituições são da UFRJ, por reconhecer que a direção do HESFA também é composta por docentes da EEAN e, até pelo respeito à tão renomada instituição de ensino - acolhem os alunos sem impor grandes obstáculos.
Entretanto, apesar da cordialidade, viu-se que existe um grande desafio a ser enfrentado no encontro entre os profissionais do serviço e da academia: trata-se da questão dos valores. O preceptor anseia pelo reconhecimento de suas ações, ele não é um agente passivo, uma figura ilustrativa na unidade de saúde. Saviani ensina que valor é uma relação de não indiferença entre o ser humano e os elementos com que ele se depara, e que as pessoas não podem ser tratadas como objetos, visto que são capazes de tomar decisões, avaliar e comprometer-se, num vínculo colaborativo.
O fato de não ser indiferente à pessoa dos outros, o fato de reconhecer o valor do outro, sua liberdade, indica que o homem é capaz de transcender sua situação e também suas opções pessoais para se colocar no ponto de vista do outro, para comunicar-se com ele, para atuar em comum com ele(15).
O embate entre os que estão na sala de aula e os que estão na assistência de enfermagem, presentes nos depoimentos dos informantes-chave, mostra a complexidade das relações nos cenários de prática. Esta pode ser amenizada por meio da criação de espaços de comunicação onde “os profissionais do serviço devem sentir-se co-responsáveis pela formação dos futuros profissionais, assim como os docentes devem considerar-se parte dos serviços de saúde.”(16: 359).
Identificou-se, no estudo, que o enfermeiro-preceptor tem a intenção de propiciar ao graduando, sob sua supervisão, a união entre os conteúdos aprendidos na teoria e na prática. Mas, precisa se unir e planejar com os profissionais da universidade um trabalho que resulte na ocorrência de um processo de ensino e aprendizado completo ao graduando da EEAN. Quando não ocorre esta articulação ou se dá de forma fragilizada, pode-se registrar uma desatenção ao que está proposto na Resolução COFEN nº 371/2010(17), que garante ao enfermeiro do serviço a participação na formalização e planejamento do estágio dos estudantes.
Há uma necessidade de se repensar e resgatar a efetiva prática pedagógica desenvolvida pelo enfermeiro-preceptor, proposta em documentos legais já existentes, mesmo que estes apontem a necessidade de ajustes. Alguns estudiosos da área afirmam que ainda “são poucos os cursos onde o preceptor participa diferentemente desde o planejamento até a avaliação”(18:243) das atividades dos estudantes, seja em ensino clínico, trabalho de campo ou estágio.
A compreensão dos variados papéis pedagógicos dentro do processo de ensino e aprendizagem só facilitam a aproximação entre teoria e prática e esta conduta deve partir dos sujeitos que dessas realidades fazem parte. Com efeito, a atitude de aproximação ente o docente e o preceptor só tem a auxiliar o aluno em seu processo de formação, de elaboração do pensamento crítico e transformador.
CONCLUSÃO
Concluí-se que o enfermeiro-preceptor não participa de todas as etapas constituintes da prática pedagógica, sendo explícita a sua ausência no planejamento e na avaliação formal do desempenho dos graduandos que passam pelo seu setor. Porém, ficou comprovado que realiza atividades que requerem tal participação.
A transformação que se espera dos cenários de saúde pública do país, assim como das condições de trabalho e valorização do profissional enfermeiro, só se estabelecerão no contato efetivo e na relação dialógica com todos os agentes sociais - preceptores, alunos, docentes e tantos outros – interessados na melhoria do sistema.
O lugar do planejamento, organização, desenvolvimento e avaliação das atividades que os graduandos de enfermagem realizarão deve ser amplo o suficiente para que todos possam expressar seus anseios, criticar, apontar sugestões e indicações, enfim, participar.
O enfermeiro-preceptor desempenha um papel importante na formação dos graduandos de enfermagem e, deve ser respeitado como um sujeito essencial na prática pedagógica que acontece todos os dias nas unidades cuidadoras, com atividades de prevenção, promoção, recuperação e reabilitação da saúde da população que vive no imenso território brasileiro.
REFERÊNCIAS
1. Brasil. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília/DF; 1996.
2. Souza MA. Prática pedagógica: conceito, características e inquietações. IV Encontro Ibero-Americano de Coletivos Escolares e Redes de Professores que fazem Investigação na sua Escola. [ Cited 2010 December 08 ] Available from: http://ensino.univates.br/r4iberoamericano/trabalhos/trabalho024.pdf.
3. Foresti MCPP. Sobre prática pedagógica, planejamento e metodologia de ensino: a articulação necessária. [ Cited 2011 May 15 ] Available from: http://www.fmb.unesp.br/projetopedagogico/docs/Sobre%20a%20pr%C3%A1tica%20pedag%C3%B3gica,%20planejamento%20e%20metolodologia%20de%20ensino.pdf .
4. Mourão LC, L'Abbate S. Implicações docentes nas transformações curriculares da área da saúde: uma análise sócio-histórica . Online Brazilian Journal of Nursing [ serial on the Internet ]. 2011 November 5; [ Cited 2012 November 11 ] 10(3): [about ##p.] 2011. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3423/1136 .
5. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 4ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2010.
6. Santos CRGC. O ensino do aluno de graduação em enfermagem – componentes ideológicos da pedagogia histórico-crítica: o caso da Escola de Enfermagem Anna Nery. 2007. 168p. Tese (Doutorado em Enfermagem), Escola de Enfermagem Anna Nery, UFRJ, Rio de Janeiro; 2007.
7. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 1996.
8. Brasil. Lei nº 7.498 de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem e da outras providencias. Brasília, 1986. [ Cited 2009 June 28 ] Available from: http://www.portalcofen.gov.br/2007/materias.asp?ArticleID=22§ionID=35.
9. Brasil. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3 de 07 de Novembro de 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília: 2001. [Cited 2010 November 03] Available from: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf.
10. Saviani D. Escola e democracia. 39ª ed. Campinas, SP: Autores Associados; 2007.
11. HESFA. Manual de organização – regimento interno: serviço de enfermagem da UCB. HESFA: Rio de Janeiro, 2009. [ Cited 2011 October 02 ] Available from: http://pt.scribd.com/doc/18132672/090723Manual-de-organizacaoRegimento-InternoUCB.
12. Ribeiro VMB. Formação pedagógica de preceptores do ensino em saúde. Juiz de Fora: UFJF; 2011.
13. Ramos M. Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ; 2010.
14. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Cartilha esclarecedora sobre a lei do estágio: Lei nº 11.788/2008 – Brasília: MTE, SPPE, DPJ, CGPI; 2008.
15. Saviani D. Ética, educação e cidadania. [ Cited 2012 November 15 ] Available from: http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/saviani.pdf.
16. Albuquerque VS, et al. Service-learning in the Context of the Changes in the Undergraduate Education of Health Professionals. Revista Brasileira de Educação Médica.[ Cited 2012 November 13 ] 32 (3): 2008. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n3/v32n3a10.pdf.
17. Brasil. Resolução COFEN nº 371/2010. Dispõe sobre a participação do enfermeiro na supervisão de estágio de estudantes dos diferentes níveis da formação profissional de enfermagem. Brasília: DF; 2010. [ Cited 2010 November 01 ]. Available from: http://site.portalcofen.gov.br/node/5885.
18. Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA. Ensino – trabalho – cidadania: novas marcas ao ensinar integralidade no SUS. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: ABRASCO; 2006.
Participação dos Autores:
Todos os autores participaram das fases do projeto, elaboração e finalização do presente artigo.
Recebido:12/11/2012
Revisado:21/10/2013
Aprovado:25/02/2014