ARTIGOS ORIGINAIS

 

Conhecimento da rotina laboratorial por profissionais da Atenção Básica: estudo descritivo

 

Carla Vitola Gonçalves1, Nalú Pereira da Costa Kerber1, Ana Paula Backes1, Carolinne Borges Alves1, Vanessa Andréia Wachholz1, Flávia Seles Oliveira1

1Rio Grande Federal University

 


RESUMO
Objetivo: Avaliar o conhecimento e interpretação da rotina laboratorial pelos pré-natalistas da rede básica de saúde.
Método: Estudo avaliativo realizado entre setembro de 2010 e fevereiro de 2011, por meio de entrevistas com 15 médicos e 14 enfermeiras.
Resultados: 100% dos profissionais apresentavam conhecimento sobre quais exames laboratoriais devem ser solicitados. Em contrapartida, a interpretação desses exames não foi satisfatória, sendo referidos: valores incorretos de glicemia e hemoglobina; interpretação e condutas errôneas frente ao Rh negativo e a positividade do VDRL, anti-HIV, HBsAg e toxoplasmose.
Discussão: Os achados deste estudo são preocupantes, uma vez que a excelência da assistência pré-natal depende tanto da solicitação dos exames, quanto da qualidade das consultas, possibilitando intervenções oportunas, para adequação do desfecho gestacional.
Conclusão: A interpretação dos exames básicos do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento constitui um importante ponto de fragilidade da assistência pré-natal no município do Rio Grande, RS.
Descritores: Cuidado Pré-natal; Qualidade da Assistência à Saúde; Avaliação em Saúde.


 

INTRODUÇÃO

A assistência pré-natal compreende um conjunto de procedimentos que objetiva prevenir, diagnosticar e tratar eventos indesejáveis à gestação, ao parto e ao recém-nascido. Sua ausência e/ou deficiência está relacionada a maiores índices de morbimortalidade materna e perinatal(1,2). São fatores indispensáveis nesta assistência: a organização do serviço, capacitação dos profissionais e a utilização de recursos adequados e disponíveis, garantindo-se, no entanto, o atendimento integral e os requisitos básicos para promoção e prevenção das principais afecções(3).

Para organizar e definir essa assistência pré-natal, o Ministério da Saúde (MS) criou, em 2000, o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN)(1), o qual orienta que na 1ª consulta sejam solicitados os seguintes exames: dosagem de hemoglobina e hematócrito (Hb/Ht); grupo sanguíneo e fator Rh; sorologia para sífilis (VDRL); glicemia em jejum; exame sumário de urina (Tipo I); sorologia anti-HIV e; sorologia para toxoplasmose (IgG e IgM, quando houver disponibilidade para realização). Estes exames devem ser repetidos próximo à 30ª semana e deve ser incluída a sorologia para hepatite B (HBsAg). Além disso, este manual apresenta as condutas preconizadas frente aos resultados dos exames citados.

Segundo o MS, essa qualidade do atendimento pré-natal está comprometida, pois ainda existe uma alta incidência de sífilis congênita no país, com estimativa de 12 casos/1000 nascidos vivos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)(4). A sífilis, se diagnosticada precocemente, é uma doença facilmente tratável sem deixar sequelas. Isso indica a grande falta de alicerce teórico-prático pelos profissionais responsáveis e sua deficiente capacitação, pois frente aos avanços da medicina contemporânea, parece anacrônico o fato de uma doença, que apresenta agente etiológico bem definido, formas conhecidas de transmissão, longo período de incubação e tratamentos que possibilitam excelentes índices de cura, continuar registrando novos casos(1,5).

Optou-se, portanto, pelo estudo do conhecimento dos exames laboratoriais pelos profissionais de saúde, visto que não se questiona a importância desses procedimentos para que se consiga realizar uma assistência pré-natal efetiva. A realização de intervenções oportunas em todo período gestacional, sejam elas preventivas ou terapêuticas, visa assegurar a assistência à gestante em todos os níveis de complexidade do sistema de saúde(1,6). Além disso, vários estudos ressaltam a importância do conhecimento acerca dos exames laboratoriais e sua interpretação como reflexo da qualidade pré-natal prestada às gestantes(1,2,3,6-9).

Alguns estudos abordando a avaliação da qualidade dos serviços, sendo que na sua maioria limitam-se a descrever indicadores como cobertura, número de consultas pré-natais e número de partos(2,3,7-9).

Em vista dessa marginalização significativa acerca da avaliação do conhecimento mínimo necessário por parte dos profissionais envolvidos e, por conseguinte, dos resultados efetivos alcançados em virtude das atitudes tomadas frente à rotina pré-natalista, tem-se por objetivo avaliar o conhecimento e interpretação da rotina laboratorial preconizadas no PHPN pelos pré-natalistas da rede básica de saúde.

 

MÉTODO

Trata-se de estudo descritivo, realizado no município do Rio Grande, o qual localiza-se na planície costeira sul do estado do Rio Grande do Sul, e cujo sistema de saúde é constituído por 32 unidades básicas (UBS) e dois hospitais gerais. A cobertura pré-natal no ano de 2010 foi de 95,5%, sendo o SUS responsável por 60% destes atendimentos.

O presente estudo apresenta abordagem quantitativa, que é adequada para a realização de avaliação de serviços. A população alvo foi composta por profissionais de saúde (médicos e enfermeiras) que realizam atendimentos pré-natais nas UBS da rede pública do município estudado. Das 32 UBS do município, apenas 18 oferecem atendimento pré-natal. O atendimento é realizado por 22 médicos e 16 enfermeiras, totalizando 38 profissionais. No entanto, em três UBS ocorreu a recusa de nove profissionais em participarem do estudo, de modo que a amostra foi composta por profissionais: 15 médicos e 14 enfermeiros. 

Neste estudo optou-se pela entrevista dos médicos e das enfermeiras responsáveis pelo atendimento de pré-natal nas UBS do município. Este usa como referência o Manual Técnico de Pré-Natal e Puerpério, do Ministério da Saúde(1), no qual as competências de cada um destes profissionais estão estabelecidas. Como competência da enfermeira e do médico, o referido manual aponta que esses devem intercalar as consultas de pré-natal; solicitar exames e orientar o tratamento conforme as normas técnicas e operacionais; orientar as gestantes quanto aos fatores de risco; identificar as gestantes de risco e as encaminhar para a unidade de referência; realizar coleta de citopatológico; fornecimento do cartão da gestante devidamente atualizado a cada consulta. Quanto às competências da gestante, a mesma deve portar o Cartão da Gestante devidamente atualizado a cada consulta. Portanto, tanto o médico como a enfermeira podem solicitar exames da conduta pré-natal, bem como devem ter domínio sobre as condutas a serem tomadas frente aos resultados destes exames.

As informações foram coletadas por meio de um amplo instrumento padronizado e pré-codificado que continha questões sobre o conhecimento da rotina básica preconizada pelo manual técnico do Ministério da Saúde – Pré-natal e Puerpério: Atenção Qualificada e Humanizada - em relação à solicitação e interpretação dos exames laboratoriais e às condutas diante dos resultados destes. As entrevistas foram realizadas entre setembro de 2010 e fevereiro de 2011 por duas acadêmicas de enfermagem e duas acadêmicas de medicina que demonstraram interesse em participar do estudo. As respostas aos questionamentos eram possibilitadas nas opções: espontânea ou induzidas. A forma espontânea de resposta era quando o entrevistador lia apenas a pergunta sem informar alternativas possíveis. No caso da resposta induzida, esta opção era marcada após o indivíduo ter dado como encerrada a sua resposta espontânea e o entrevistador ler as alternativas que este não tinha citado anteriormente.

O treinamento das estudantes consistiu da leitura do questionário e do manual de instruções, aplicação do questionário em duplas e perante o grupo de pesquisa. Em seguida, foi realizado estudo piloto. O controle de qualidade foi realizado mediante repetição de 10% de parte das entrevistas pelo coordenador da coleta de dados. A digitação dos questionários foi realizada utilizando-se o programa Epi-Info 6.04. Todos os questionários foram duplamente transcritos por diferentes digitadores com posterior comparação e correção destas digitações. A análise descritiva dos dados foi realizada com os programas do software SPSS (PASW Statistics Base Serie: 10112665).

O protocolo de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde (CEPAS) da Universidade Federal do Rio Grande 63/2010. Além disso, garantiu-se a confidencialidade dos dados, a participação voluntária e a possibilidade de deixar o estudo a qualquer momento, sem necessidade de justificativa.

 

RESULTADOS

Entre os 29 profissionais entrevistados, 86,2% eram do sexo feminino; idade média de de 43 anos (±7,8). Quanto à formação profissional, 51,7% eram médicos e 48,3% enfermeiros, tinham em média 17 anos de formados e realizavam consultas de pré-natal há 7 anos, em média.

Na tabela 1, observa-se que o conhecimento por parte dos pré-natalistas sobre quais os exames laboratoriais devem ser solicitados na consulta pré-natal mostra-se estar de acordo com as normas estabelecidas pelo PHPN. Dos 29 profissionais entrevistados, 100% responderam corretamente de forma espontânea à necessidade de solicitar Hemograma, Glicemia de Jejum, Anti-HIV, VDRL (sorologia de sífilis) e exame comum de urina. Em relação à tipagem sanguínea, fator Rh e HbsAg, 96,6% responderam espontaneamente; sobre os exames de urocultura, toxoplasmose IgG e IgM, 93,1% também relataram de forma espontânea pedi-los em sua rotina pré-natal. Ao ser questionado se o exame parasitológico de fezes deveria ser solicitado, este teve apenas 24,1% de respostas afirmativas contra 75,9% de negativas, sendo uma conduta correta, visto que no PHPN não consta como obrigatório a solicitação deste exame. E a ultrassonografia obstétrica foi referida como conduta obrigatória do pré-natal espontaneamente por 69% dos entrevistados.

 

Na tabela 2 é analisada a conduta desses profissionais frente à interpretação dos exames da rotina pré-natal. Dos 29 profissionais entrevistados, 82,8% responderam que o valor de hemoglobina menor que 11 é diagnóstico de anemia; 93,1% solicitariam Coombs indireto quando a gestante fosse Rh negativo; 72,4% responderam que valores menores de 90mg/dl indicam glicemia de jejum dentro dos valores da normalidade.

Quanto à rotina da sífilis, apenas 13,8% referiram a conduta correta frente ao exame de VDRL reagente (solicitar teste confirmatório (FTA-Abs) ou tratar gestante e parceiro), em contrapartida, 93,1% relataram fazer uso de penicilina para o tratamento de sífilis e 93,2% responderam positivamente sobre realizar o tratamento conjunto do parceiro sexual.

Em relação a outras sorologias, 93,1% encaminham ao serviço de referência quando o anti-HIV é reagente e 65,6% quando o HBsAg é reagente; 65,6% desses profissionais relataram nenhuma conduta com o exame da Toxoplasmose for IgG reagente e IgM não reagente. No entanto, na presença de IgM reagente para toxoplasmose apenas uma pequena parcela (6,9%) respondeu tratar a gestante com espiromicina, sendo que 27,5% ou não sabem qual conduta tomar ou simplesmente não tomam nenhuma. Além disso, quando o exame de toxoplasmose IgG e IgM apresenta-se como não reagente, apenas 58,7% dos entrevistados respondeu orientar a paciente e repetir os exames. Em relação ao período em que os exames devem ser repetidos, 86,2% afirmaram ser entre 24 e 30 semanas de gestação.

 

DISCUSSÃO

Utilizou-se como referência para discussão em vários momentos o PHPN (2005)(1) e o Manual de Pré-natal: Gestação de alto risco (2010)(6). Uma limitação deste estudo foi a recusa por parte de alguns profissionais (médicos e enfermeiros) em participar da pesquisa, totalizando, ao final, 76,3% de entrevistas com os profissionais envolvidos na atenção pré-natal nas UBS do município do Rio Grande.  

Na presente pesquisa, os profissionais entrevistados apresentaram um conhecimento de 100% sobre a rotina laboratorial a ser solicitada. Porém, o conhecimento sobre a interpretação dos exames pré-natais e a conduta a ser seguida frente aos seus resultados demonstrou a falta de preparo dos profissionais para realização do atendimento de forma adequada. Quando avaliamos a interpretação de exames como valor de hemoglobina, glicemia de jejum e solicitação do coombs indireto para as gestantes Rh negativo pode-se observar que nem mesmo estes exames alcançaram a totalidade de rotinas corretas.  

A anemia por deficiência de ferro é a deficiência nutricional mais prevalente na gestação. Os limites de referência para hemoglobina são menores nas pacientes grávidas em razão da hemodiluição fisiológica da gestação, sendo considerada anemia níveis de hemoglobina abaixo de 11 g/dL. A deficiência de ferro está correlacionada com o aumento da mortalidade e morbidade materna, parto prematuro e baixo peso ao nascer(10). A alta prevalência de anemia gestacional em países em desenvolvimento, dieta pobre em alimentos contendo ferro e o baixo custo do ferro medicamentoso, em comparação com os testes necessários para o rastreamento laboratorial da anemia, constituem alguns fatores apontados para justificar a implantação de programas de suplementação de ferro a todas as gestantes. Também deve-se levar em conta os riscos postulados da anemia ferropriva em gestantes, tais como: fadiga aumentada, redução do desempenho laboral, estresse cardiovascular, resistência reduzida à infecção e baixa tolerância à perda de sangue no parto(11). No presente estudo, 17,2% dos participantes informaram valores superiores ao 11g/dl de hemoglobina para diagnóstico de anemia. Este fato pode levar ao uso excessivo de ferro, que está relacionado à possível efeito deletério e teratogenese(10).

Apesar de todos os profissionais referirem à solicitação da tipagem sanguínea e do fator Rh como rotina obstétrica, 6,9% deles não associaram a presença de Rh negativo à solicitação do coombs indireto. A principal causa da aloimunizacão materno-fetal é a falha na administração da imunoglobulina anti-D. Apesar das recomendações em relação à profilaxia com imunoglobulina serem divulgadas e conhecidas, esta patologia ainda afeta cinco a cada 1.000 gestações. Além disso, a presença de coombs indireto positivo indica encaminhamento imediato da gestante para o pré-natal de alto risco(1,6).

Em relação ao rastreio do diabetes gestacional, este aparece como sendo um exame solicitado pelos entrevistados, denotando sua importância. No Brasil, a prevalência do diabetes gestacional em mulheres com mais de 20 anos, atendidas no SUS, é de 7,6%, e destas, 94% dos casos apresentam apenas tolerância diminuída a glicose e 6% apresenta diabetes pré-gestacional(6). A hiperglicemia materna está relacionada à cetoacidose, maior risco de infecções, à malformações e macrossomia fetal, parto cirúrgico e à síndrome da angústia respiratória no recém-nascido(12). Segundo o Ministério da Saúde, todas as gestantes, independentemente de apresentarem fator de risco, devem realizar uma dosagem de glicemia no início da gravidez. O rastreio é considerado positivo nas gestantes com nível de glicose plasmática de jejum igual ou superior a 85mg/dL e/ou na presença de qualquer fator de risco para o diabetes gestacional. Na ausência de fatores de risco e glicemia de jejum < 85mg/dL, considera-se rastreamento negativo e deve-se repetir a glicemia de jejum entre 24 e 28 semanas de gestação(9). Nesta pesquisa foi usado como ponto de corte para rastreio negativo o valor de 90mg/dl, mesmo assim, 27,6% dos participantes referiram valores superiores a este como normalidade glicêmica. Isto implica em uma menor solicitação de testes de tolerância a glicose durante o período diabetogênico, e, por consequência, em menor número de diagnósticos de tolerância diminuída a glicose.

Entre as rotinas investigados nesta pesquisa, os exames referentes às infecções de possível transmissão vertical foram as que apresentaram maior índice de interpretação e conduta incorretas pelos pré-natalistas. Por exemplo, a sífilis, uma doença de fácil e acessível diagnóstico e tratamento, com alto índice de morbimortalidade materno-fetal, apresentou 86,2% de respostas incorretas dos participantes frente a um VDRL positivo. Além disso, alguns profissionais (6,8%) relatam não saber se deviam ou não tratar o parceiro. Fato semelhante foi encontrado em um estudo, o qual observou que apenas 21,1% dos obstetras apresentavam conhecimento básico adequado em relação à interpretação dos resultados dos exames de sífilis(5). No Brasil, a prevalência de sífilis em parturientes encontra-se em 1,6%, sendo quatro vezes maior que a infecção pelo HIV. Em 2005, cerca de 50 mil gestantes foram infectadas, com estimativa de 12 mil casos de sífilis congênita. Em 2009, no país, a maior proporção dos casos de sífilis congênita ocorreu em crianças cujas mães tinham realizado pré-natal (75,5%). Dentre as gestantes que fizeram o pré-natal, 55,4% foram diagnosticadas com sífilis durante a gravidez e, destas, 53,7% não tiveram seus parceiros tratados. Esse agravo é considerado um claro marcador da qualidade da assistência à saúde no pré-natal(4).

No Brasil, estima-se que 0,4% das gestantes sejam soropositivas para o HIV, o que se traduz em aproximadamente 12.635 gestantes/parturientes portadoras do HIV/crianças expostas ao ano(4). A maior parte dos casos de transmissão vertical do HIV (cerca de 65%) ocorre durante o parto, e os 35% restantes ocorrem intra-útero, principalmente nas ultimas semanas de gestação, havendo ainda o risco adicional de transmissão pós-parto por meio do aleitamento materno. A taxa de transmissão vertical do HIV, sem qualquer intervenção, situa-se em torno de 25,5%. No entanto, diversos estudos demonstram redução da transmissão vertical do HIV para níveis entre 0 e 2%, por meio de intervenções preventivas, tais como: o uso de antirretrovirais combinados; o parto por cirurgia cesariana eletiva para pacientes com carga viral desconhecida ou superior a 1000 cópias; o uso de AZT na parturiente e no recém-nascido e; a não amamentação(13). Em nossa pesquisa foi verificado que ainda há profissionais (6,9%) que, diante de um resultado positivo para HIV, relatam não saber a conduta. No município do Rio Grande existe serviço de referência para o pré-natal de gestante HIV, sendo que até o momento desta pesquisa acreditava-se ser de conhecimento de todos os profissionais da saúde. Por isso, é preocupante o fato de passar despercebido pelos gestores de saúde que alguns profissionais não saibam como proceder frente a uma gestante com o resultado do anti-HIV positivo, visto a magnitude e a importância de tal infecção. 

Em relação ao teste de hepatite B, 24,1% dos profissionais entrevistados não sabiam o que fazer com o resultado do teste de HBsAg reagente, apesar do município do Rio Grande disponibilizar, através da Secretaria de Saúde, a aplicação da vacina e da imunoglobulina nas primeiras 12 horas do nascimento. O Programa Nacional de Imunização indica a vacina contra hepatite B, após o primeiro trimestre de gestação para as grávidas que apresentam sorologia negativa. Sendo assim, fica clara a obrigatoriedade da triagem da hepatite B no pré-natal. Essa estratégia visa contribuir para a redução da transmissão vertical da hepatite B e da tendência de cronificação (70% a 90%) que ocorre na contaminação em idade precoce(14). Outra medida importante para prevenção da transmissão vertical da hepatite B é o uso de vacina e da imunoglobulina nos recém-nascidos de mãe com HBsAg positivo. Tal medida pode reduzir a transmissão em até 95% dos casos(1,6). Assim, o dado encontrado nesta pesquisa é surpreendente, pois reflete a falta de conhecimento e de comunicação entre os profissionais pré-natalistas e os gestores de saúde, além de indica falha no processo de capacitação desses profissionais.

Outra infecção investigada neste estudo foi a toxoplasmose que, apesar de não fazer parte da rotina obrigatória do pré-natal(1), encontra-se inserida na rotina do município, tendo em vista que o estado do Rio Grande do Sul apresenta alta prevalência desta doença. Estudos realizados em Porto Alegre mostram uma prevalência de 38 a 40% de grávidas com IgG e IgM negativos, portanto com risco de contágio e transmissão vertical. Nestes estudos, a taxa de infecção aguda na gestação foi de 2,4 e 2,6%(15,16). Uma vez que a toxoplasmose, durante a gravidez, pode causar abortamento, crescimento intrauterino retardado, morte fetal, prematuridade e malformações torna-se fundamental a sua prevenção(1,6)

A prevenção da toxoplasmose deve ser realizada por meio da orientação das gestantes com IgG e IgM negativas sobre as formas de contato da doença. De modo que se deve alertar par: não ingestão de carne crua (principalmente porco e embutidos), não contato com gatos (principalmente filhotes) e sempre que mexer com terra, usar luvas(1,6). De acordo com os dados desta pesquisa, apenas 58,7% dos participantes referiram orientar as gestantes com exame de toxoplasmose IgG e IgM negativos sobre as formas de contágio da doença. Além disso, 27,5% dos entrevistados não sabiam qual conduta tomar frente ao exame de toxoplasmose IgM reagente. Salienta-se que os pré-natalistas do município, além de não efetuarem a prevenção da toxoplasmose de forma efetiva, visto que a orientação é a única forma de prevenção, não sabem como tratá-la quando esta já foi contraída.

Quando indagados sobre o exame de urina e a urocultura, todos os profissionais confirmaram a sua solicitação. Talvez por ser a infecção urinária o problema mais comum durante a gestação, atingindo 16 a 20% das grávidas(6). Ressalta-se que, embora a urocultura não faça parte da rotina obrigatória do MS, é a única forma de diagnosticar a bacteriúria assintomática que tem como complicação a pielonefrite e o trabalho de parto pré-termo.

Tanto a OMS(17) como o Ministério da Saúde do Brasil(1) não preconizam o exame de ultrassonografia como rotina pré-natal, mas, neste estudo, observou-se clara priorização da ecografia obstétrica.

Existe evidência científica de que a realização precoce da ultrassonografia durante a gravidez relaciona-se com uma melhor determinação da idade gestacional, detecção precoce de gestações múltiplas e malformações fetais clinicamente não suspeitas(6,18,19). No entanto, estudos confirmam que o uso da ultrassonografia como rotina em gestantes de baixo risco e após o segundo trimestre de gestação não apresenta evidências de impacto na mortalidade e morbidade neonatal(18,19). Ressalta-se que a ultrassonografia é um exame bastante desejado entre as gestantes, portanto os pré-natalistas muitas vezes solicitam o exame cedendo à pressão da paciente.

Até mesmo em relação ao momento para realização da segunda rotina laboratorial durante o pré-natal, os profissionais demonstraram desconhecimento. Segundo o MS, os exames devem ser novamente solicitados na 28ª semana de gestação. Para ampliar a margem de resposta, esta pesquisa usou uma tolerância de 24 a 30 semanas, mas apenas 86,2% das respostas se enquadraram nesta faixa.
Os achados deste estudo são preocupantes, uma vez que a excelência da assistência pré-natal depende tanto do atendimento a critérios quantitativos de solicitação de exames, por exemplo, quanto da qualidade do conteúdo das consultas, de modo a possibilitar intervenções oportunas, para que os desfechos maternos e neonatais sejam adequados(20).

 

CONCLUSÃO

Conclui-se que a interpretação dos exames básicos do PHPN constitui um importante ponto de fragilidade da assistência pré-natal no município do Rio Grande. O fato de a gestante ir a todas as consultas propostas e apontar disponibilidade em realizar todos os exames solicitados, não significa que os mesmos estejam sendo efetivamente avaliados, uma vez que isso depende invariavelmente da conduta do profissional. Para garantir um atendimento e um acompanhamento adequado à gestante é preciso avaliar o conhecimento dos profissionais e, sobretudo, como esse está sendo aplicado na prática.

O maior desafio em avaliar a qualidade do pré-natal, enfocando os profissionais e seus possíveis equívocos, e não os prontuários ou as carteiras da gestante, é responsabilizá-los como principal fator influente na relação saúde-doença para a mulher e a criança, independente das condições econômicas ou culturais da grávida. Por isso a importância de capacitar todos os profissionais envolvidos, médicos e enfermeiras, em tempo hábil e, principalmente, fazer com que a informação técnica sobre o que é preconizado pelo MS seja parte de suas condutas.  

Os dados obtidos nesse estudo podem subsidiar o planejamento de intervenções e tomada de decisões ligadas à melhoria da qualidade da atenção pré-natal na rede de serviços municipais. Tal proposição poderá contribuir para a redução da mortalidade materna e perinatal, considerada um indicador sensível da adequação da assistência obstétrica e neonatal e do impacto de programas de intervenção nesta área, pela relação estreita que guarda com a assistência prestada à gestante e ao recém-nascido.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 06/11/2012
Revisado: 06/08/2013
Aprovado: 03/09/2013