ARTIGOS ORIGINAIS

 

Dor e processo de morrer: perspectivas a partir do método criativo e sensível

 

Franciele Roberta Cordeiro1, Margrid Beuter2, Camila Castro Roso1, Maria Henriqueta Luce Kruse1

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul
2Universidade Federal de Santa Maria

 


RESUMO
Objetivo: descrever as possibilidades de cuidado de enfermagem ao paciente oncológico em processo de morrer na ótica da equipe de enfermagem. Método: estudo descritivo, exploratório, de natureza qualitativa. Para a produção dos dados se utilizou o método criativo e sensível, por meio da dinâmica Almanaque. Os dados produzidos foram submetidos à análise de discurso francesa. Resultado: os discursos das profissionais de enfermagem apontam a preocupação com a dor e o conforto do paciente oncológico em processo de morrer, propondo a adoção de medidas farmacológicas, lúdicas e ações multidisciplinares para minimizar o sofrimento. Discussão: Na perspectiva da dor, a solidariedade e a sensibilidade aparecem como elementos motivadores para os profissionais na busca por estratégias que garantam a qualidade do processo de morrer. Conclusão: vislumbra-se a tentativa de proporcionar uma morte digna às pessoas com doença oncológica fora de possibilidade de cura, mesmo diante de limitações na abordagem para um cuidado integral.
Palavras-chave: Dor; Morte; Enfermagem Oncológica; Cuidados Paliativos.


 

INTRODUÇÃO

O câncer se destaca entre as doenças crônicas que têm merecido particular importância sob o olhar das políticas e das organizações de saúde, tanto no Brasil quanto no cenário internacional. A doença se caracteriza por progressivo avanço, em um curto período de tempo, e, em muitos casos, resulta em uma degradação funcional severa, não discriminando sexo, idade ou classe social(1).

A preocupação com a doença se evidenciou a partir da segunda metade do século XX, quando o panorama mundial de doenças infectocontagiosas deixou de ser a centralidade na atenção em saúde e prevaleceu um elevado número de pacientes com neoplasias, influenciando os avanços e descobertas dos tratamentos quimioterápicos, radioterápicos e de antibioticoterapia(2).

A incidência do câncer cresce no Brasil e no mundo paralelamente ao ritmo do envelhecimento populacional resultante do aumento da expectativa de vida. Esse cenário é reflexo das modificações econômicas e sociais que ocorreram no mundo nas últimas décadas, já que o processo de urbanização e industrialização cresceram devido à expansão do capitalismo, provocando significativas mudanças no estilo de vida da população(3). Estas modificações podem ser percebidas nos hábitos alimentares, os quais transitam de uma dieta baseada em produtos naturais para alimentos ricos em conservantes; na exposição a fatores externos como à radiação solar; na inalação de produtos químicos resultantes dos novos cenários urbanos; entre outras que aumentam os riscos para o desenvolvimento de doenças crônicas degenerativas, como o câncer(4).

Em 2008, a Agência Internacional para Pesquisa em Câncer, da Organização Mundial da Saúde (IRCA/OMS) estimou que havia 12 milhões de novos casos da doença no mundo, prevalecendo nos países em desenvolvimento. Dentre as neoplasias, as mais incidentes acometeram: pulmão (1,52 milhões), mama (1,29 milhões) e cólon e reto (1,15 milhões). Em relação às taxas de mortalidade, o câncer de pulmão destaca-se pela agressividade (1,31 milhões), seguido pelo câncer de estômago (780 mil óbitos) e pelo câncer de fígado (699 mil óbitos)(4). No Brasil, estima-se que o câncer de pele do tipo não melanoma (114 mil) está entre os mais incidentes na população, seguido pelos tumores de próstata (52 mil), mama feminina (49 mil), cólon e reto (28 mil), pulmão (28 mil), estômago (21 mil) e colo do útero (18 mil)(3).

Os dados relativos à sobrevida se relacionam diretamente com o estadiamento da doença e estilo de vida dos pacientes. A sobrevida dos pacientes com câncer é definida pela relação entre incidência e mortalidade, sendo estimada em aproximadamente 50% em cinco anos para todos os tipos de tumores(3). Tanto na perspectiva da cura como na sobrevida, a dor é um ponto nevrálgico no trabalho do profissional de enfermagem, tendo em vista as dificuldades de manejo por meio de medidas farmacológicas e complementares. Dentre estas dificuldades, destaca-se o uso de opioides e seus derivados que podem causar receio tanto por parte dos pacientes com medo de se viciarem nos medicamentos, como também pelos profissionais, em função das doses limítrofes entre sedação, analgesia e efeitos colaterais(5).

A dor é um sintoma prevalente nas pessoas com câncer. As queixas dos pacientes relacionam-se com a progressão da doença, não se restringindo aos aspectos físicos e de abrangência tumoral, já que envolvem a subjetividade de cada um. Aproximadamente 70% dos pacientes oncológicos referem algum tipo de dor durante o percurso da doença neoplásica, o que aponta para a importância da sua avaliação e manejo da analgesia, principalmente se tratando de opioides(5).

A dor é o resultado da interação entre os aspectos físicos e químicos em resposta a um determinado estímulo nocivo. Após ser “decodificado”, o estímulo associa-se aos aspectos humorais, culturais e emocionais do indivíduo resultando na percepção dolorosa(6). A dor ainda pode ser caracterizada de acordo com o tempo e intensidade de duração. A dor aguda é uma resposta imediata a algum reflexo ou exposição a um agente nocivo, como por exemplo, as dores de queimadura ou trauma. A dor crônica “representa um fenômeno de sensibilização nociceptiva, com redução do limiar à dor (alodinia), amplificação da resposta a estímulos nocivos (hiperalgia), e sensação de dor prolongada após estimulação”(7:3).

Em um levantamento na base de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) é possível identificar estudos sobre dor relacionados em sua maioria à área de oncologia pediátrica. Nessas produções se evidenciam vivências da equipe de enfermagem no cuidado a essas pessoas e o interesse pelas percepções da família que acompanha a criança com doença neoplásica. A partir deste levantamento foram identificadas tendências nas práticas de enfermagem que visam ao controle álgico. Destaca-se o desenvolvimento de técnicas que viabilizam maior absorção e eficácia da terapêutica proposta, como por exemplo, a hipodermóclise (via subcutânea como alternativa para hidratação e administração de medicamentos), que contribui significativamente para o controle não só da dor, mas de outros sintomas comuns à fase de terminalidade, como náuseas e vômitos.

As competências clínicas e habilidades práticas, nesses casos, exigem do enfermeiro um constante processo de atualização a fim de proporcionar um final de vida com dignidade. Entretanto, ainda são reduzidos os estudos que apontam os cuidados de enfermagem em relação à dor e ao conforto do paciente oncológico hospitalizado, especialmente integrando os aspectos biopsicossociais e suas repercussões na construção do conhecimento e do cuidado em enfermagem.

Frente a esse cenário, questiona-se: Como a equipe de enfermagem desenvolve o cuidado de enfermagem ao paciente oncológico fora de possibilidade de cura? Para  responder tal inquietação este estudo objetivou descrever as possibilidades de cuidado de enfermagem ao paciente oncológico em processo de morrer na ótica da equipe de enfermagem.

 

MÉTODO

Estudo descritivo e exploratório de abordagem qualitativa. Essa abordagem proporciona desenhos de pesquisa que se adéquam aos sujeitos investigados, as necessidades e inquietações do pesquisador, primando pela flexibilidade na pesquisa e permitindo o entendimento holístico para questões levantadas em diferentes cenários(8). Para a produção dos dados utilizou-se o Método Criativo e Sensível (MCS). O MCS minimiza os vieses causados pelas contraposições entre os mais diversos sentimentos humanos, assim, “a captação de impressões sensíveis é o modo como apreendemos as propriedades de um fenômeno ou objeto para que seja esquadrinhado através da análise crítica e do juízo apreciativo, ambas, tarefas do investigador crítico-sensível”(9:1).

Os sujeitos da pesquisa foram três enfermeiras e duas técnicas de enfermagem que atuam na área oncológica há mais de dois anos. O cenário do estudo foram as unidades de oncologia de um hospital público do sul do país, a citar: os ambulatórios de quimioterapia e

radioterapia, o centro de tratamento de crianças e adolescentes com câncer e o centro de transplante de medula óssea. A produção dos dados ocorreu no mês de fevereiro de 2011, no auditório de um centro de convivência de crianças com câncer, vinculado ao hospital de ensino que foi cenário do estudo.


Como técnica de produção de dados utilizou-se uma Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade (DCS) denominada “Almanaque”, que teve duração de aproximadamente 70 minutos. A DCS “Almanaque” consiste na produção de dados por meio de colagem de figuras e desenhos em folhas A4, que são realizadas após ser enunciada a questão geradora de debate. Os participantes foram orientados a escrever seus nomes no verso das colagens para a identificação e associação com os discursos transcritos para posterior análise. A dinâmica “Almanaque” constou de cinco momentos como preconizado pelo MCS, a seguir: Momento: os profissionais da equipe de enfermagem foram recepcionados pela pesquisadora e auxiliares de pesquisa. Os auxiliares de pesquisa contribuíram com a organização da dinâmica. Posteriormente, foi realizada uma técnica de relaxamento com o objetivo de descontraí-los; Momento: as participantes foram convidadas a sentarem em cadeiras dispostas em círculo com uma mesa central onde estavam os materiais a serem utilizados na dinâmica. Foram apresentados o objetivo da pesquisa e as etapas da dinâmica. Em seguida se leu a questão geradora de debate “Como é o cuidado de enfermagem ao paciente oncológico fora de possibilidade de cura na unidade em que você trabalha?” que permaneceu descrita em um cartaz no quadro da sala, para que todos pudessem lê-la durante o desenvolvimento da dinâmica; Momento: combinou-se com o grupo o tempo necessário (entre 15 a 20 minutos) para confeccionar o almanaque. Cada participante iniciou a sua produção individual; Momento: os participantes apresentaram o seu almanaque e ocorreu a discussão da qual emergiram as situações existenciais norteados pela questão geradora de debate; Momento: foi disponibilizado espaço para que o grupo manifestasse sua opinião validando coletivamente os temas. Após a concordância de todas as participantes, a dinâmica foi encerrada.

Os dados produzidos foram transcritos e submetidos à análise de discurso francesa, que procura identificar o que está para além da superficialidade do discurso, inserindo-o no contexto vivenciado pelos enunciantes, valorizando seus aspectos históricos e sociais(10). Como dispositivo teórico facilitador de análise, foi utilizado um quadro analítico que auxiliou na busca de sentidos dos discursos por meio da identificação dos processos parafrásticos, processos polissêmicos e efeitos metafóricos que determinam a formação do processo discursivo a ser analisado. O quadro foi organizado a partir das situações existenciais das enfermeiras e técnicas de enfermagem. A partir dessas situações foram elaborados o tema gerador, o subtema, a recodificação temática e o comentário analítico do processo interpretativo.

Destaca-se que a pesquisa seguiu os preceitos éticos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as pesquisas com seres humanos(11). A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa da instituição, sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n° 0334.0.243.000-10. A coleta de dados teve início após a aprovação dos órgãos competentes. A dinâmica foi gravada em áudio e fotografada, com autorização das participantes, mediante leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As participantes foram identificadas com as siglas E, para enfermeiras e TE para as técnicas de enfermagem, seguidas de numeração em sequência crescente, conforme a exposição de sua produção artística, a fim de preservar o seu anonimato.

 

RESULTADOS

Durante a dinâmica, diversos elementos relacionados ao cuidado com os pacientes fora de possibilidade de cura foram debatidos. Neste artigo se apresentam as análises das falas das participantes relacionadas à dor e ao conforto, pois estes foram apontados nas discursividades como preocupações durante a realização do cuidado.

No decorrer da dinâmica, as participantes relataram alternativas possíveis para a minimização da dor, destacando como principais medidas terapêuticas a utilização de medicações e o suporte para dificuldade respiratória:

(...)Euacreditoqueéencontrar,botaradisposiçãotudoqueagentetemdentrodohospital,prafazercomqueaquelacriança,aqueleadolescentequeestáemestágioterminal,sempossibilidadedecura,sesentiromaisconfortávelpossível.Quesejafeitamedicação,seprecisardeconfortodeO2.(oxigênio). (E1)

(...) primeiroeuacheiessafiguracomamedicação,umaseringacomaagulha,boteientãoparailustrar,naverdade,oqueaspessoasprocuramnumaunidadequandotãointernadas (...).Eunãoadmitoumacriança,umadolescentetáinternadoesentirdor,né?. (E1)

ComoaE1falouali,nãoadmiteumacriançatáinternadaepassardor,issorealmente,elenãoprecisapassardor.Agora,agentenãoprecisaacharqueagentetemquesalvaressacriança,daracuraquenãoestáem nossas mãos,nósnãosomosDeus,né?Édarosuportemedicamentoso,édarosuportedeaparelhagem. (E2)

(...)Umapreocupaçãoqueagenteteméemrelaçãoàdor(...).Agentevaiatrásdetodososserviçosquetêm disponíveis.Muitasvezes,opacienteprecisadeumexame,precisadealgumacoisa,agentevaiatrás,vaicomele,porquetusabesquecolocaropacientesozinhoédifícileàsvezeselenãovaiconseguirchegarlá.Ouprecisadaclínicadadoreàsvezesdemoratrêsmeses,entãoagenteacabaindo,acabainterferindo,entãoagentesepreocupamuitocomoalíviodadordopaciente,emamenizaradordele. (TE1)

A partir dos discursos se observa a preocupação com o alívio da dor dos pacientes em processo de morrer, seja no contexto de internação ou ambulatorial. A utilização da terapia farmacológica no alívio dos sintomas da dor foi a principal medida citada pelas profissionais. Observa-se também a angústia gerada pelos sintomas de morte iminente, principalmente relacionado ao desconforto respiratório. As profissionais apresentam como medida de conforto a oferta de oxigênio aos pacientes em processo de morrer. A relação intersetorial dentro da instituição é outro aspecto ressaltado nas falas, sendo o serviço da clínica da dor, a referência para pacientes e profissionais. Mesmo com as limitações e dificuldades para o acesso a esse serviço, as profissionais relatam articular com o setor, visando acelerar o atendimento às demandas do paciente. Apesar disso, há dificuldades na relação entre os profissionais para efetivar as medidas terapêuticas, especialmente com o médico, limitando as intervenções de enfermagem.

Eu acho que é uma grande dificuldade da enfermagem com o paciente terminal é assim, oh, como somos nós da enfermagem que ficamos (...) 24 horas com os pacientes e a gente passa a conhecer suas necessidades, frequência de dor, intensidade, se o paciente conseguiu dormir, ou não dormiu, se tem náuseas, com que frequência, se não tem, e os outros profissionais, em especial o médico, com quem a gente mais interage, né? Ele vem naquele momento só para as suas prescrições. (E3)

É o paciente que vomitou, que foi para casa sem um antiemético prescrito, que tá com dor e que tu vê ele com paracetamol sendo paciente terminal, e eu acho que nós da enfermagem temos essa dificuldade, porque daí a gente tem que correr atrás da medicação, tem que ligar para o médico (...). Porque a gente tá com um paciente com dor ali, ninguém se propõe a resolver aquele problema, a gente que tem que resolver todos os problemas. E outra coisa, não sei se é falha da formação da gente, seja técnico, auxiliar, graduação, a gente se acha juízes da situação, né?. Ah não, fulana lá tá com dor ou não tá, tá dependente da morfina. (E2)

Mesmo com o predomínio das medidas farmacológicas no manejo da dor, alguns profissionais destacaram estratégias complementares de cuidados, seja por meio da inserção do lúdico ou pelo acolhimento e a solidariedade compartilhada com os pacientes:

Oulevarumafelicidade,levarumabrincadeira,(...)quenãosãodaenfermagemquevão,mastemmuitopessoaldaenfermagemquevai,quebotaumnarizdepalhaço,vaivestidodisso,levaumpirulito,levaumpresente,levaumbrinquedo. (E3)

Coloqueitambémafiguradeumamãeabraçandoafilha,quemuitasvezesnóssomosmãesparaospacientes,eelesvêm,elesprecisamdeumabraço.Elesprocuramouviragente,elesprecisamdeumapalavraquetudigadeconforto,jáajudaummonte.Eaprenderassim,atambémouvireles,queàsvezessóofatodelesconversarem,delesbotarempraforajáamenizaaquelesofrimentodelesoumuitasvezesatécomtodooproblemapatológicoqueelestêm,temosdesajustesfamiliares,eagenteacaba,dentrodopossível,sempretentandoajudá-los,sempre,deumaformaououtra.(TE1)

As participantes destacaram que este momento pode ser vivenciado de maneira menos dolorosa por meio de atividades como as brincadeiras, a recreação ou até pelo abraço, a escuta e o diálogo. Nos discursos emerge a preocupação das profissionais com o conforto por meio de atividades que envolvem os cuidados com a higiene, a nutrição e o

acompanhamento sobre as eliminações urinárias e intestinais dos pacientes:

E como são pacientes fora da possibilidade de cura, quando eles chegam ali na radio (radioterapia), muitos deles já estão assim bastante debilitados, emagrecidos, sentem muita dor, chegam numa situação, assim, bem de dificuldade física e emocional e a gente acaba também abraçando muito disso, e é o momento que a gente diz calma mãe!  Vai dar tudo certo! (E2)

(...)Agenteficapreocupadacomopesodospacientesecomaalimentação.Entãoeusemprevejosecomeu,reforçandoaimportânciadolíquido,daalimentação. (TE1)

Umpacientecheganumacadeiraderodasetuvai,vamostentarcolocarnumamaca,vamosprovidenciarpratentardarumconforto (...),achoquenãotemmuitascondiçõesdefazerissonoambulatório(ambulatóriodequimioterapia).Eénessesentidoqueeudigo,assim,queeuachoquequandoeleentraali(ambulatóriodequimioterapia),seépaliativo,seépraaliviaradordele,queseja,éumdireitoqueeletemeagentetáalipratentarfazeromelhorporele. (TE2)

Ressalta-se nessas falas o envolvimento dos profissionais de enfermagem, representado pelo respeito e sensibilização com as dificuldades físicas, limitações emocionais e sociais.

 

DISCUSSÃO

Nos discursos das profissionais de enfermagem se notou a preocupação com a dor do paciente oncológico em processo de morrer e a prevalência das terapias farmacológicas como medida de conforto a esses pacientes. Por vezes, as enfermeiras se mostraram inseguros diante da dor e dos sintomas de morte iminente, resultando em ansiedade e dúvidas em relação às medidas adotadas no cuidado. Estudos(5,13) confirmaram a necessidade de avaliar e intervir na dor oncológica, apontando lacunas no registro, avaliação, sistematização e intervenção na dor com base em parâmetros específicos, visto que, na maioria das vezes, a equipe de enfermagem utiliza medidas terapêuticas e de avaliação de forma empírica e assistemática. Tal fato, muitas vezes é gerado pela indisponibilidade ou baixa capacitação dos enfermeiros para utilizarem instrumentos de avaliação da dor associada ao preconceito em relação ao uso intermitente ou fixo de medicações com duplo efeito, como os opioides. Assim, observa-se que cada equipe adota diferentes abordagens para a intervenção, fragmentando os cuidados e dificultando a avaliação das medidas implementadas. Neste estudo, as participantes expressaram intervir no controle da dor, porém não especificaram de que forma avaliam, sistematizam e registram esse sintoma. Relataram ainda, situações em que a equipe de enfermagem subestima a dor dos pacientes, relacionando a solicitação de medicações com a dependência às drogas, como a morfina, dificultando e limitando o manejo álgico.

Outro estudo(14) corrobora que a equipe de enfermagem apresenta dificuldades em avaliar e trabalhar com a dor do paciente oncológico indo ao encontro do que foi expressado pelas enfermeiras e técnicas de enfermagem desta pesquisa. “Este despreparo é atribuído à inadequação da formação, o que leva a não avaliação da dor de forma sistemática; leva a subestimarem a frequência de ocorrência da dor e a ignorarem o impacto devastador da dor para o indivíduo”(14: 88). Essa dificuldade em abordar e manejar a dor dos pacientes oncológicos não se restringe a equipe de enfermagem, estendendo-se aos demais profissionais de saúde. Entre essas dificuldades, destaca-se: a falta de conhecimento pelos médicos, mitos, concepções errôneas de doentes e familiares, política do sistema de saúde e legislação inadequada(15).

São reconhecidos os efeitos positivos que os opioides e demais analgésicos apresentam no tratamento e na sedação dos pacientes em processo de morrer, porém, tem sido relevante e pertinente a inserção de medidas não farmacológicas como a terapêutica para o controle da dor e a recreação como forma de cuidado a esses pacientes, sendo o teatro, a brincadeira, a conversa, a musicoterapia algumas técnicas possíveis de serem utilizadas para proporcionar o relaxamento tanto para o paciente como para o familiar(16).

No entanto, é importante valorizar a individualidade e a aceitação do paciente em relação às atividades propostas, sempre respeitando sua vontade. Se esse preferir o silêncio e o afastamento, deve-se proporcionar ambiente que o acolherá de maneira tão receptiva quanto o ambiente lúdico. Aliado à paliação da dor, o conforto pode ser considerado como o ato de fortificar, conceder, consolar, de forma a proporcionar bem-estar e prazer ao indivíduo. O ato de confortar repercute beneficamente para quem cuida e para quem é cuidado possibilitando o crescimento e desenvolvimento de ambos(17).

Convergindo com a literatura, a equipe de enfermagem em estudo busca atender as necessidades do paciente por meio dos recursos disponíveis, estabelecendo uma relação de confiança e segurança com os envolvidos no cuidado. Assim, para a obtenção do conforto é necessário um ambiente caloroso, atencioso, amoroso, que proporcione alívio, segurança, bem-estar, incluindo a presença de profissionais que transmitam segurança e empatia(12).

Morrer de forma digna é um direito de todos. Em tempos de volatilidade das relações, da liquidez dos sentimentos e da efemeridade dos valores, percebe-se andando pelos hospitais, as enfermarias cada vez mais solitárias. Solidão, entendida aqui, não somente como a ausência física de alguém, mas como o próprio distanciamento entre os seres humanos nas suas relações. No momento da morte, geralmente os pacientes se encontram acompanhados de seus familiares, os quais acabam se distanciando pela insegurança e ansiedade que a morte provoca. Além disso, as questões relativas à degradação do equilíbrio corporal, como o surgimento de lesões, os sintomas de vômitos e a perda do controle dos esfíncteres provoca repulsão e afastamento de familiares e profissionais pelas dificuldades em lidar com esses aspectos.

No caso dos pacientes oncológicos, a maioria dos tumores externos possui aparência e odores desagradáveis, o que faz com que o paciente sinta-se envergonhado e ele mesmo procure se afastar(18). A equipe de enfermagem deve estar atenta a essa demanda de cuidado, que muitas vezes passa despercebida e que interfere não somente nos sintomas físicos da doença, como também provoca uma ruptura de relações e afetos pela diminuição da autoestima do paciente e pela vergonha da doença.

Em oncologia, muitas vezes, os cuidados relacionados ao conforto exigem da enfermeira perspicácia e sensibilidade, visto que proporcionar conforto nessas circunstâncias vai além das dores físicas do paciente. O câncer carrega forte estigmatização social por ser associado à mortalidade. Quando cuidamos de pessoas fora de possibilidade de cura, os sentimentos de dor e angústia se sobressaem, pelas limitações decorrentes do agravamento do quadro clínico do paciente, bem como, pela aproximação da morte e os sentimentos que essa fase da vida desperta.

Dessa forma, conforto e dor estão intrinsecamente ligados. Frente a isso, fica evidente a necessidade da adoção de estratégias que estejam norteadas pela filosofia dos ”cuidados paliativos”, pois esse modelo traz consigo um cuidado respaldado em medidas terapêuticas de conforto, que viabilizam uma morte digna e tranquila. O conceito de cuidados paliativos tem sido amplamente usado na área da saúde, principalmente pela enfermagem e pela medicina, enquanto uma filosofia de cuidados respaldados nos princípios da bioética prestados junto aos pacientes com doença fora de possibilidade de cura e seus familiares, visando principalmente o respeito, a não maleficência, garantindo a dignidade do paciente no processo de morrer(19). Muito tem se discutido sobre cuidados paliativos na atualidade, porém, o que se percebe é que apesar desse movimento, a maioria das instituições hospitalares não adota essa filosofia, seja em forma de unidade de internação específica para esses pacientes, seja por meio de consultorias. Apesar da elevada demanda, constata-se a carência de recursos nessa área, na atenção hospitalar e domiciliar, em detrimento de investimentos em terapêuticas que utilizam tecnologias de alto custo para promover a cura, os quais proporcionam maiores recursos financeiros para as instituições.

 

CONCLUSÃO

Os discursos das profissionais de enfermagem apontam uma falta de preparo para trabalhar o manejo da dor durante o processo de morrer. Tal fato pode ser atribuído a pouca utilização dos instrumentos de avaliação da dor e outros sintomas, o que leva a não identificação dos mesmos nos pacientes.

Identifica-se a necessidade de políticas que proporcionem dignidade no processo de morrer, visto que a disponibilidade de recursos para alívio da dor, bem como, a inserção de estratégias lúdicas de cuidado no hospital ainda está permeada por normas e rotinas que restringem o desenvolvimento de ações de maior amplitude em relação aos aspectos biopsicossociais que compõe o indivíduo.

Por outro lado, as participantes deste estudo demonstram que os profissionais de enfermagem dispõem principalmente de medidas farmacológicas para o alívio da dor e para os desconfortos de morte iminente. Há uma discreta inserção da ludicidade no cuidado, desenvolvida tanto por profissionais de enfermagem quanto das demais áreas. A escuta, o acolhimento e as demonstrações de carinho pela equipe de enfermagem com o paciente foram valores destacados neste estudo, visto que esses são elementos considerados essenciais para a qualificação do cuidado de enfermagem em oncologia, além de ser decisivo na relação entre profissionais de enfermagem e paciente. Salienta-se a importância da inserção da filosofia dos cuidados paliativos para a melhoria da qualidade de vida de pacientes e familiares que enfrentam doenças fora de possibilidades de cura.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 12/07/2012
Aprovado: 08/03/2013