ARTIGOS ORIGINAIS

 

Percepção de mulheres sobre a escolha da via de parto: estudo descritivo

 

Lizandra Flores Pimenta1, Lúcia Beatriz Ressel1, Carolina Carbonell dos Santos1, Laís Antunes Wilhelm1

1Universidade Federal de Santa Maria

 


RESUMO
Objetivo:Discutir a percepção das mulheres quanto à escolha da via de parto. Metodologia: Estudo qualitativo realizado em hospital de ensino e uma unidade básica de saúde do Rio Grande do Sul, de janeiro a março de 2011. Foram entrevistadas oito mulheres fora do período gravídico puerperal, e em idade fértil. Os dados foram analisados e interpretados conforme análise de conteúdo temática. Resultados e Discussão: Emergiu a categoria A percepção das mulheres na decisão sobre o tipo de parto, na qual foi significativo o entendimento das mulheres sobre o poder de decisão que os médicos têm em relação ao tipo de parto. Porém, algumas discordam dessa postura e apontam para a vontade da sua inclusão nessa decisão. Conclusão: Algumas mulheres discordam do poder unilateral do médico sobre o parto, defendendo que a decisão deveria ser compartilhada com elas, uma vez que são estas que sentem e passam pelo processo.
Descritores: Parto; Saúde da Mulher; Cultura; Enfermagem.


 

INTRODUÇÃO

O modelo de organização dos serviços públicos e privados apresenta variações que resultam em diferentes tipos de assistência e de relação entre os profissionais de saúde e as usuárias e, consequentemente, em experiências distintas entre as gestantes(1). Observa-se ainda a preferência, pelas mulheres, de parto vaginal na maternidade pública e pela cesariana na maternidade privada(2).

Isto reduz o campo da assistência e inviabiliza um lugar de poder diferenciado das usuárias na rede privada. Na medida em que a cesariana torna-se uma fonte de honorários e contas hospitalares mais altas para os médicos e para os hospitais que o parto vaginal, é de se esperar que encontremos mais cesarianas sendo realizadas em mulheres de maior poder aquisitivo e brancas(3).

A forma como se organizou a assistência obstétrica, a formação dos profissionais de saúde e a demanda de cesarianas pelas mulheres, que temem a imposição dos profissionais de saúde frente à via de parto, são fatores que influenciam na escalada de partos cirúrgicos em nosso sistema de saúde(4).

A percepção da dor no parto é considerada como um dos motivos que influenciam a mulher em sua preferência pela cesárea e está profundamente arraigada no imaginário popular como um evento associado à purgação feminina. Relaciona-se, neste sentido, à citação do Livro Bíblico em Gênesis, que se refere à Eva como o primeiro ser humano que pecou e acabou por corromper o resto da humanidade com sua transgressão, ouvindo de Deus: “e tu, mulher, parirás com dor os teus filhos”(5).

A ideia de que a mulher deve pagar no parto, por seus pecados, ideia propagada pela medicina e pela religião hegemônica, contrapõe-se à visão do parto como um momento prazeroso, que pode ser entendido como uma heresia e uma ameaça a um sistema de crenças que define o parto como um processo doloroso, que faz mal à saúde e à sexualidade feminina e que precisa ser controlado por aparatos médicos(6).

A dor e seus aspectos voluntários são influenciados por fatores sociais, culturais e psicológicos. Isso está muito imbricado ao significado pessoal de que a mulher atribui à dor do parto ao contexto de vida em que está inserida, às definições culturais da imagem corporal, da estrutura e funções do seu corpo(7).

A influência na decisão pelo parto cesáreo decorre do tipo de parto prévio em mulheres de classe social e renda alta. Da mesma forma, existe a necessidade urgente de estudos qualitativos para avaliar a preferência da mulher e do médico pela cesariana, e suas complexas interações. Estudos podem fornecer as bases para intervenções obstétricas efetivas e seguras visando a reduzir os atuais elevados índices de cesariana(8).

Em estudo que analisou as expectativas das mulheres em relação ao tipo de parto, a justificativa mais citada pelas mulheres para escolher o parto normal foi a recuperação pós-parto mais rápida e, para a cesárea, foi o fato de ter realizado cesárea em parto anterior sendo que as justificativas apresentadas por elas para a realização do parto cirúrgico não era coincidente com a indicação médica em 47,5% dos casos(9).

A mudança no modelo de assistência ao parto pode ser uma estratégia promissora para a reversão desse quadro já que independente do desejo inicial da gestante, a interação com o serviço de saúde resulta na cesariana como via final de parto(10).

Para obter autonomia, a mulher deve ter sua opinião incluída no momento de decisão sobre a via de parto e isso ocorre na medida em que ela é informada a respeito das evidências científicas disponíveis para indicação da melhor conduta na situação determinada(11).

Este é o modelo humanístico, que abarca uma corrente de pensamento na qual se adotam e propõem atitudes não convencionais para nortear a assistência obstétrica, e surge a partir dos questionamentos ao modelo biomédico, com grande influência do movimento feminista o qual tem desempenhado um papel fundamental, enquanto entendido como fórum de debate das questões da saúde e sua relação com a qualidade de vida e a condição de cidadania(12).

Ante o contexto apresentado, surge o interesse nesta temática impulsionando-nos a desenvolver esta pesquisa, com objetivo de discutir a percepção das mulheres quanto à escolha da via de parto. Consultando a literatura científica percebeu-se, ainda, a ausência de estudos culturais com mulheres fora do período gravídico puerperal, e em cenários que não sejam em maternidades e/ou hospital.

Dessa forma, o presente estudo traz reflexões que poderão repercutir na assistência de enfermagem prestada à mulher durante o período da parturição, uma vez que auxilia na compreensão das necessidades de cuidado com as parturientes, a partir da percepção das mulheres sobre o parto e o nascimento.

 

MÉTODO

A presente investigação constitui-se como uma pesquisa qualitativa do tipo descritiva. É comumente utilizada por pesquisadores sociais preocupados com a atuação prática(13). Para a obtenção da coleta de dados utilizou-se como instrumento uma entrevista semiestruturada. Os dados coletados foram objeto da investigação de acordo com a análise temática de Minayo(14).

Esta pesquisa foi realizada no município de Santa Maria - RS, na Unidade Sanitária Kennedy (USK) e no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). A USK foi escolhida devido ao fato de ser campo de aulas práticas e de estágio supervisionado para os alunos do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Quanto ao HUSM, é um hospital-ensino, fundado no ano de 1970, o qual serve como base de atendimento primário dos bairros que o cercam, para o atendimento secundário à população de Santa Maria e para o atendimento terciário da região centro e da fronteira gaúcha. O hospital constitui-se como centro de ensino, pesquisa e extensão no âmbito das Ciências da Saúde, além de centro de programação e manutenção de ações voltadas à saúde das comunidades local e regional.

Este estudo foi realizado com oito mulheres, em idade fértil, com história pregressa de parto vaginal ou cesariano; quatro mulheres foram captadas na USK e quatro no HUSM. Foram convidadas para as entrevistas mulheres que buscavam o atendimento no programa de planejamento familiar da USK e, no HUSM, mulheres que buscavam o atendimento nos serviços de ginecologia e obstetrícia. As participantes do estudo foram identificadas pela letra M, de mulher, e número referente à ordem de entrevista, (M1- M8), sendo caracterizadas no que se refere aos aspectos socioculturais de: idade, estado civil, escolaridade, região de moradia, número de filhos, ocupação e tipo de parto vivenciado.

Atentou-se para os critérios éticos e os princípios bioéticos da voluntariedade, para a realização de todas as atividades da pesquisa, que fundamentam a Resolução nº. 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, o qual prescreve a ética na pesquisa com seres humanos(15). O projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria sob o número CAAE nº 0317.0.243.000-10.

 

RESULTADOS

Quanto ao perfil dos respondentes, obtiveram-se os seguintes resultados: faixa etária de 22 e 35 anos; predomínio de mulheres casadas (n=6), uma divorciada e, uma solteira, porém em união estável no momento da entrevista; nível de escolaridade: três mulheres têm ensino fundamental completo, três cursaram o ensino médio completo, uma possui ensino médio incompleto e, apenas uma com curso superior; todas as participantes são moradoras da zona urbana do município de Santa Maria – RS; no que se refere ao número de filhos, o grupo em estudo apresenta uma média de dois filhos, sendo que a menor e a maior prole foi de um e de quatro filhos, respectivamente e; quanto à ocupação, duas são donas de casa, duas técnicas de enfermagem, uma enfermeira, duas empregadas domésticas e uma operadora de caixa de supermercado. O tipo de parto de maior incidência, relatado pelas mulheres, foi a cesárea, sendo que apenas uma mulher teve a experiência de ambos os tipos de parto.

Em decorrência da descrição e análise das falas das mulheres entrevistadas, emergiu a categoria Percepção das mulheres na decisão sobre o tipo de parto, cujos principais resultados foram discutidos a partir do estabelecimento do diálogo com o referencial teórico, buscando alcançar nesse movimento a compreensão de como a cultura influencia no processo de parturição da mulher.

Percepção das mulheres na decisão sobre o tipo de parto
Para compreensão do parto como um evento na vida feminina, perguntou-se acerca da decisão sobre o tipo de parto. A opinião das mulheres sugere unilateralidade da decisão por parte dos médicos, como se nota a partir das seguintes falas:

É o médico que tem o poder de decisão se vai ser parto vaginal ou cesárea. (M2)

Eu acho que deve ser a mulher, mas é o médico que decide. Eles dizem que é protocolo, que isso, que aquilo, mas sabe-se que não é assim. Só que não acontece isso né? (M3)

A cesárea geralmente é o médico que decide. Eu até queria parto normal, mas o médico disse que ia fazer uma cesárea, e fez cesárea. (M8)

Segundo um relato de uma entrevistada, não há o direito de escolha quanto ao tipo de parto para a mulher que faz o pré-natal na rede suplementar, sendo sua autonomia geralmente desrespeitada, quando deseja um parto normal.

Em nível de consultório (rede privada) é o médico. Não dá para escolher. (M6)

Não obstante a centralização do médico quanto à decisão da via de parto, algumas mulheres sentem necessidade de serem incluídas no processo de tomada de decisão, haja vista que os sentimentos e sensações serão percebidas por elas e não pelo profissional.
Deveria ser da mulher mais do que do médico, já que ela que está sentindo e sabendo o que está acontecendo. (M1)

 

DISCUSSÃO

Foi significativo o entendimento das mulheres sobre o poder de decisão que os médicos têm em relação ao tipo de parto. Porém, algumas discordam de que este profissional deva determinar unilateralmente a escolha e apontam para a vontade da sua inclusão nessa decisão.

Esta perspectiva direciona-se para a autonomia e a participação da mulher na decisão sobre a via de parto, embora o que se constate é a determinação total do médico sobre o desfecho da gestação.

Quando falamos da autonomia da mulher parturiente, falamos de um processo em que a cada momento se vai desconstruindo o léxico cientifico/técnico, para que a mulher e a família possam ser chamadas ao centro de decisão.

Porém, para isso, é importante oferecer toda a informação que ela necessita para se tornar um membro efetivo da equipe de saúde e, como tal, ter pleno poder e capacidade de decidir da forma mais vantajosa para todos, sobretudo para ela mesma e para seu bebê. Esse é sem dúvida um processo de grande complexidade, que, em uma aplicação absoluta, incita os profissionais de saúde a compreenderem que o respeito pela autonomia da mulher não constitui um dano na sua autonomia profissional, mas, antes, um incremento pela qualidade, participação e rigor ético obtido por meio desse processo(16).

Tal processo talvez seja de difícil compreensão para o profissional, quando este se alicerça na cultura biomédica ao redor de uma ideologia de progresso tecnológico, que, no contexto do parto, iniciou-se a partir da sua institucionalização, com o advento da era industrial(12).

Nas primeiras décadas do século XX, quando o parto passou a ser visto como um processo patológico que deveria ser controlado a fim de evitar a morte materna e perinatal, passa a ser marcado por rotinas, tais como episiotomias, cesáreas desnecessárias e utilização de fórceps profilático(17). O resultado dessa conduta intervencionista é a discrepância entre o desejo das mulheres e o que é realizado(18).

Um dos motivos alegados pelos médicos para essa prática é a mudança de perfil de risco das gestantes. Porém, um estudo realizado nos EUA, que relacionou o aumento das taxas de cesárea com a mudança de perfil do risco, constatou que as chances de uma mulher ser submetida a uma cesárea na primeira gestação, sem pertencer a um grupo de risco, subiu para 50%, comparado ao ano de 1996(19).

Entende-se que a questão de avaliação de risco e a indicação de se realizar uma cesárea sejam de competência médica. No entanto, a mulher deve receber informações sobre os riscos e benefícios da intervenção a fim de exercer sua participação ativa no processo.

Tal questão enfatiza o direito à informação e à formação de opinião das mulheres, para que tenham o direito de reivindicar aquilo que é benéfico para a sua saúde e a de seu bebê. Profissionais e mulheres podem até tomar uma decisão antecipada sobre o tipo de parto, porém esse fato não pode ser visto como uma simples questão de preferência, como no caso da cesárea antecipada ou eletiva, sem indicação, pois pode implicar em riscos e complicações futuras para mãe e para o bebê(11).

A escolha do tipo de parto pela mulher é apontada na literatura médica como um fator que tem contribuído para o elevado índice atual de cesariana(20).

A cesárea dá ao médico o máximo de poder, controle e condução no parto e exige, por sua vez, o mínimo de trabalho do útero e da mulher, criando o ponto de vista de que este procedimento cirúrgico fornece os melhores ‘produtos’, isto é, produz bebês perfeitos, semelhantemente à metáfora de produção, tal como acontece nas indústrias(3).

Logo, deu-se início a uma crença de que cesárea é uma ação protetora no nascimento do bebê. Isso pode estar relacionado à noção de que partos normais são traumáticos para o feto, e, então, os profissionais “aliam-se” ao bebê contra a destruição em potencial, causada pelo corpo da mãe no trabalho de parto e no parto, o que leva a ignorar aquilo que talvez seja o mais importante para a mulher e para a criança, que é a natureza de suas experiências no parto e no nascimento(3).

Entre os médicos obstetras, instituiu-se uma cultura pró-cesárea e, como consequência, parte deles não se encontra motivada nem capacitada para o acompanhamento do parto normal. Em contrapartida, as mulheres, dentro dessa cultura, têm dificuldade em fazer valer a sua decisão pelo tipo de parto, por sentirem-se menos capacitadas para escolher devido às questões técnicas levantadas e sustentadas por eles(12).

 

CONCLUSÃO

Acerca do poder de decisão exercido pelo médico e pela mulher quanto ao tipo de parto, constataram-se divergências de opinião entre as entrevistadas. Algumas afirmaram que o médico tem o poder total de decisão sobre a escolha do tipo de parto, porém algumas não estão de acordo com esta conduta, defendendo que se deveria levar em conta a opinião da mulher, uma vez que é ela quem está sentindo e passando pelo processo.

Infelizmente, esta cultura não é percebida pela maioria das mulheres que se encontra em uma situação de desigualdade e vulnerabilidade perante a soberana decisão médica, que desconsidera, por sua vez, o desejo da gestante.

Conforme expressam as entrevistadas, elas aceitaram a atitude por parte dos profissionais, mas sentiram que poderiam ter tomado uma decisão diferente. Elas incentivam a mudança das atitudes que colocam a mulher em posição desprivilegiada no parto.

Promover a autonomia da mulher é dever dos profissionais de saúde ao proteger o seu direito de escolha na via de parto. Com o resgate da autonomia, devolveremos o protagonismo na cena do parto e nascimento a quem o tem por direito.

 

REFERÊNCIAS

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2. Mandarino NR, Chein  MBC, Júnior FCM, Brito LMO, Lamy ZC, Nina VJS, et al. Aspectos relacionados à escolha do tipo de parto: um estudo comparativo entre uma maternidade pública e outra privada, em São Luís, Maranhão, Brasil.  Cad Saude Publica. 2009; 25(7): 1587-96.

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Recebido: 30/06/2012
Aprovado: 31/01/2013