ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

Expectativas de usuários sobre ações de saúde mental: um estudo fenomenológico

 


Marcio Wagner Camatta1, Christine Wetzel2, Jacó Fernando Schneider2

1Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
2Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 


RESUMO
Objetivo: compreender as expectativas de usuários em relação às ações voltadas para saúde mental desenvolvidas na Estratégia Saúde da Família. Método: abordagem qualitativa, com referencial da fenomenologia social. Foram realizadas entrevistas com 16 usuários em duas unidades de saúde da família de Porto Alegre/Rio Grande do Sul. Resultados: os usuários buscam acessar serviços e insumos ofertados pela equipe e estabelecer uma relação social. Discussão: Os usuários buscam a unidade para atender alguma demanda, a qual é ofertada pela equipe por meio de determinados serviços, seja para prevenir doenças e complicações, seja para promover e recuperar a saúde, ou mesmo para estabelecer relação social com os profissionais. Conclusão: o atendimento dessas expectativas é fundamental para garantir o acesso dos usuários aos serviços de saúde, em diferentes níveis de complexidade, e para fortalecer a implicação dos profissionais e usuários com o cuidado por meio do reconhecimento da interação social como dispositivo terapêutico. 
Palavras-chave: Saúde Mental; Atenção Primária à Saúde; Programa Saúde da Família; Enfermagem; Pesquisa Qualitativa.


 

INTRODUÇÃO

Desde a década de 1980, o campo da saúde mental brasileiro está em processo de transformação mediante implementação de políticas de saúde mental que visam o redirecionamento do modelo de atenção hospitalocêntrico (asilar) para o comunitário (psicossocial). Tal transformação tem acelerado a constituição de serviços de saúde mental na sociedade, tais como os Centros de Atenção Psicossocial, bem como tem influenciado a organização dos serviços de saúde em geral, dentre os quais se destaca o papel da Estratégia de Saúde da Família (ESF)(1).

Tanto a reforma psiquiátrica quanto a ESF tem almejado a reorientação de modelos assistenciais no campo saúde, sendo a primeira voltada para o campo da saúde mental e a segunda para o campo da atenção primária em saúde (APS). De qualquer maneira, o desafio da reorientação desses modelos envolve não só o campo político e organizacional dos serviços, mas também a transformação das práticas dos profissionais(2).

Tradicionalmente, a lógica de organização dos serviços de saúde está pautada em dados epidemiológicos(3), a partir dos quais, profissionais e gestores em saúde propõem e implementam ações individuais e coletivas em saúde. Sem desconsiderar a epidemiologia enquanto ferramenta de trabalho e gestão, permitir aos usuários opinar sobre suas expectativas e interesses pode servir como uma importante estratégia para implicá-los no processo de construção de uma assistência de qualidade e que atenda aos seus interesses(4).

Os usuários (sujeitos em sofrimento psíquico) têm reconhecido a relevância do papel da equipe da ESF em realizar o cuidado em saúde mental no território, especialmente por ter um enfoque na família e não somente no indivíduo(5). Assim, a satisfação dos usuários com a ESF está relacionada ao atendimento de suas necessidades mediante o cuidado à família, o olhar integral do profissional de saúde ao realizar visita domiciliar, exame físico, solicitar exame laboratorial, fornecer medicação e pela qualidade na relação entre a equipe e comunidade, estabelecendo paulatinamente o vínculo(2).

A concepção de que ações de saúde mental seja sinônimo de ações psiquiátricas é muito comum, tornando esses termos quase que indissociáveis entre os entrevistados de muitos estudos(6), o que pode dificultar a construção de maneiras mais criativas de atenção em saúde mental, potencialmente produtoras de subjetividade, inclusão social e cidadania.

No entanto, reconhece-se que ações típicas da psiquiatria podem transformar-se em ações de saúde mental, e vice-versa. As ações de saúde mental na comunidade devem voltar-se para a prevenção e promoção da saúde e o atendimento do usuário doente (intervenção sobre a doença)(6).

Nessa perspectiva, as ações que caracterizam a saúde mental comunitária incluem ações direcionadas à indivíduos (curar, promover a melhora, evitar recaídas, promover fatores de proteção e governar fatores de risco); à grupos e à comunidade (prevenção da doença e promoção da saúde por meio da identificação de grupos vulneráveis) e; às instituições (humanização das práticas de saúde com envolvimento de todos os sujeitos sociais)(6).

Identificar as expectativas de usuários em relação às práticas de saúde realizadas no cotidiano das equipes da ESF pode ser uma importante maneira para transformar o trabalho dos profissionais que atuam nesse contexto, pois as reflexões provocadas podem servir de subsídios para a revisão da organização e do processo de trabalho dessas equipes.

Este artigo tem por objetivo compreender as expectativas de usuários em relação às ações voltadas para saúde mental desenvolvidas por equipes da ESF.

 

MÉTODO

Este estudo é de abordagem qualitativa, com a utilização do referencial da fenomenologia social de Alfred Schutz, o qual busca trabalhar com o significado das motivações que sujeitos sociais atribuem às suas ações no mundo da vida(7).

A identificação dos significados particulares dessas motivações possibilita a revelação das características típicas de uma dada ação social(8), o que permite a construção do típico da ação desses sujeitos (usuários), ou seja, conhecer como eles costumam agir frente ao fenômeno em estudo: expectativas em buscar atendimento na ESF. 

O estudo foi realizado em duas Unidades de Saúde da Família (USF), com a atuação de três equipes mínimas da ESF (médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde - ACS), localizadas em um bairro de Porto Alegre. Esta escolha foi intencional, por se tratarem de unidades que são campos de estágio, de disciplinas de cursos de graduação na área de saúde, de uma universidade pública a qual os pesquisadores possuem vínculo. As USFs foram implantadas há mais de dez anos e a maioria dos profissionais atua nessas equipes há pelo menos cinco anos.

Do ponto de vista socioeconômico, a população da área de abrangência das unidades é marcada pela situação de violência, tráfico de drogas, desemprego, condições precárias de vida e pobreza. Essas USFs possuem aproximadamente 2.625 famílias cadastradas, representando uma população de 9.287 pessoas (43% de crianças e adolescentes, 50% de adultos - 20 a 59 anos - e 7% de pessoas idosas) sendo quase toda a população adscrita dependente exclusivamente dos serviços públicos de saúde.

Foram entrevistados 16 usuários em maio e junho de 2010, sendo sete de uma unidade e nove da outra. O local da entrevista foi o mais conveniente para os usuários sendo que nove foram ouvidos no domicílio e sete na USF. Nas entrevistas realizadas no domicílio, se contou com o apoio dos ACS devido à dificuldade de acesso às residências e à periculosidade em andar pelo bairro desacompanhado de alguém que fosse reconhecido pelos demais moradores da área.

Os critérios de inclusão dos usuários foram: ter 18 anos ou mais e estar em acompanhamento pela equipe da ESF nas USF selecionadas; ser identificado pela equipe como uma pessoa com diagnóstico de doença mental e; ter condições de comunicação verbal. Nas entrevistas foram realizadas as seguintes questões orientadoras: 1) Por que você procurou a equipe da ESF? 2) O que você espera da equipe?

Para organização e categorização dos resultados, foram empregados os seguintes passos(8): leitura atenta das falas para captar a situação vivenciada e as motivações dos usuários; identificação de categorias concretas que abrigam os atos dos usuários; releitura das falas para selecionar e agrupar trechos que contivessem aspectos significativos semelhantes das ações dos usuários e; a partir das características típicas das falas, estabelecer o significado das ações dos usuários, buscando descrever o típico da ação.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, sob o número 001.015735.10.9, em 2010.

 

RESULTADOS

Dos 16 usuários entrevistados das duas USF, 13 são do sexo feminino e 12 estão na faixa etária de 30 a 59 anos. Os principais diagnósticos psiquiátricos referidos por usuário, familiares e profissionais da ESF foram depressão (n=6) e dependência de crack (n=4). Foram citados também dependência do álcool, esquizofrenia, tentativa de suicídio, entre outros.

Em relação à história prévia de internação psiquiátrica, oito usuários referiram não ter sido internado, embora dois deles já tenha ficado em observação em um serviço de emergência psiquiátrica. Entre aqueles que já foram internados, seis deles têm passagem por hospital psiquiátrico. Quando enfrentam alguma situação relacionada à sua saúde mental, seis usuários disseram buscar suporte da equipe da ESF, seguida pelo serviço de emergência psiquiátrica e do Centro de Atenção Psicossocial, bem como o apoio de pessoas de seu círculo social (cônjuge, filho, irmãos e vizinhos).

Dos 16 usuários, 12 são assistidos pela equipe há pelo menos uma década, o que revela um período de tempo considerável em que o usuário e os profissionais de saúde da ESF se conhecem e se relacionam socialmente.

A intencionalidade dos usuários em buscar atendimento da equipe da ESF foi organizada em duas categorias concretas que se mostraram a partir de suas falas: acessar serviços e/ou insumos ofertados pela equipe da ESF e estabelecer uma relação social, configurando assim o típico da ação.

Portanto, quando os usuários buscam atendimento da equipe da ESF, a intencionalidade deles é traduzida pelas expectativas de acessar serviços e/ou insumos ofertados pela equipe da ESF, para atender a uma demanda que sabidamente é realizada pela equipe e obter encaminhamento para um estabelecimento de saúde especializado a fim de acessar outros serviços e profissionais especializados e; estabelecer uma relação social mediante uma interação face a face com os profissionais da equipe da ESF, de maneira que sua história de vida, seus interesses e seus anseios sejam reconhecidos por eles.

Acesso aos serviços/insumos ofertados pela Saúde da Família
Na categoria acessar serviços e/ou insumos ofertados pelas equipes da ESF, os usuários vão à USF para suprir necessidades as quais a equipe da unidade oferece resposta, por meio da oferta de determinados serviços.

Além disso, os usuários entrevistados buscam a USF para prevenir doenças e complicações por meio de vacinação e do monitoramento da pressão arterial.

Fui lá para pegar os remédios. (U2)
Eu tinha que fazer vacina de hepatite, eu fiz ali... mais isso. (U4)
Se eu vou ali buscar remédio, se tem, eles me dão, se eu estou mal elas sabem e medem minha pressão. (U6)

] para consultar com a doutora [...] essa consulta é para pegar o remédio da depressão. (U9)

Eu venho sempre, pelo menos uma vez no mês porque esse remédio, a fluoxetina, tem que pegar a receita todo mês, então [...] todos os meses eu tenho que vir só para consultar, é esse o motivo. (U12)

Além disso, eles buscam promover e recuperar a saúde, mediante tratamento ofertado pelas equipes da ESF, sobretudo por meio de consulta médica, de prescrição de medicamentos ou mesmo do próprio medicamento dispensado na unidade.

Entre as expectativas dos usuários está o interesse em obter encaminhamento para um estabelecimento de saúde especializado.

Eu estava me sentindo mal, estava depressiva demais e fui procurar ajuda com eles para ver se eles me ajudavam procurando um psicólogo ou um psiquiatra, porque eu quero fazer um tratamento para ver se eu melhoro. (U7)

Que me ajudassem [alcoolismo] encaminhando-me para algum lugar adequado para me ajudar, mas que não me internassem, não quero ser internado. Um lugar no qual eu viesse aqui e pegasse um papel e levasse nesse lugar que me mandassem. (U15)

Assim, a expectativa em buscar atendimento na ESF é de obter suporte da equipe de saúde para conseguir acessar profissionais especialistas que possam responder à suas demandas, sobretudo de profissionais da área psi (psicólogo e psiquiatra), ou ainda para conseguir acessar outro estabelecimento de saúde para ter tratamento psiquiátrico, que não seja a internação hospitalar como opção.

Além disso, a procura pelo encaminhamento para outros estabelecimentos de saúde ocorre em situações que fogem ao seu controle, levando-os a buscar os primeiros cuidados na USF, para “procurar uma ajuda com urgência”. Em seguida, depois de estabilizados os sinais físicos (hipertensão arterial, vômito e cefaleia), busca-se o encaminhamento a outro serviço.

Para procurar uma ajuda com urgência, quando preciso de uma ajuda com urgência, e dali, como é o meu caso, que não é muito comum, eles podem me encaminhar para outro lugar [...] para buscar um pronto-atendimento mais rápido, porque eu saio com a pressão controlada, se tenho vômito ou dor de cabeça, aí eu já saio medicada e aliviada, me restando só aquela angústia que não tem remédio, só internando. (U3)

O motivo especial que me trouxe aqui foi quando eu estava trabalhando, [...] e eu tenho pressão alta e ela caiu lá em baixo e eu fui atendido especialmente pela médica [...]. Toda a equipe me atendeu, todos juntos em uma sala. (U10)

A ida regular à ESF para buscar diferentes ofertas de serviços da equipe manifesta a credibilidade que os usuários depositam no atendimento ofertado.

Toda a equipe me atendeu, todos juntos em uma sala, minha pressão caiu lá em baixo, chamaram o SAMU e me levaram para o pronto-socorro. (U10)

Eu espero que eles estejam sempre como estão, continuando como estão para mim está ótimo, não tenho nada para reclamar daqui e todos são bons. [...] eles são bons e a gente é bem atendido aqui [USF]. (U12)

Eles sempre são bons comigo, quando eu espero alguma coisa eles já estão na minha porta. (U13)

 

Estabelecimento de relações sociais
Esta categoria revela-se importante, pois traz a relação social como interesse dos usuários ao buscar a equipe da USF. Assim, em suas falas, os usuários demonstram que têm como expectativa o estabelecimento de trocas sociais com os profissionais da ESF.

] eu os procuro sempre [equipe da USF] e vou lá conversar [...]. Eu gosto de conversar porque às vezes eu estou deprimida e não tem ninguém para conversar daí eu gosto de ir lá para falar os meus problemas. (U7)

Às vezes eu tenho problema em casa aí eu venho desabafar aqui [USF]. (U8)

Contudo, os usuários alertam que nem sempre tiveram essa abertura e que houve momentos em que os profissionais não dispensavam a atenção que eles gostariam.

Eu espero que continuem me atendendo que nem as últimas vezes que eu fui, e não que nem antes que nem olhavam para a minha cara e já me mandavam para a psiquiatria do postão [centro de saúde de nível secundário de assistência]. (U5)

A relação intersubjetiva, como uma ação de cuidado, aparece como uma ação essencial ao trabalho em saúde mental na ESF quando os usuários sugerem, enquanto expectativas, que o serviço ofereça grupos de ajuda mútua:

Tinha um grupo ano passado que eu gostava muito de ir. Nesse grupo a gente conversava, desabafava e não saia dali, fica só para a gente. [...] eu gostava do grupo porque ali eu me sentia... Eu conversava as coisas que aconteciam e me sentia bem conversando com as pessoas. E não tinha só eu, eram várias mulheres e cada uma tinha um problema, eu tinha o meu e cada uma falava do seu. Eu gostaria que voltasse o grupo [de mulheres]. (U7)

Eles podiam ter um programa, uma coisa para ajudar [...]. Isso que eu penso que poderia ter ali, um programa com essas reuniões para podermos nos reunir e dar nossos testemunhos para tentarmos nos ajudar. (U16)

As expectativas dos usuários mostram-se distantes de serem alcançadas quando eles utilizam o tempo verbal no futuro do pretérito, como “gostaria” e “poderia”. Isso aponta para anseios de usuários, importantes para as equipes levarem em consideração no planejamento da assistência.

 

DISCUSSÃO

A análise compreensiva do típico da ação dos usuários revela a intencionalidade de suas expectativas na busca de atendimento na ESF, a partir do referencial de Alfred Schutz e de resultados de pesquisas relacionados ao fenômeno em estudo.

O significado do típico das ações dos usuários integra as categorias concretas acessar serviços e/ou insumos ofertados pelas equipes das ESFs e; estabelecer uma relação social.

A busca de recursos na USF não difere da intencionalidade de usuários em geral, como apontado em um estudo realizado em uma unidade básica de saúde que utilizou o mesmo referencial teórico-metodológico deste estudo(8). Como qualquer outro usuário, eles utilizam os recursos ofertados pela USF, tais como consultas, visita domiciliar e a participação, por exemplo, em grupos de gestante, hipertensão e diabetes(2).

Chama a atenção que, dentre os recursos mencionados pelos usuários, sobressaem aqueles que tratam de ações centradas especialmente no trabalho médico, como consulta e prescrição de medicações.

Um estudo anterior identificou que, para os usuários, promoção da saúde mental na ESF diz respeito à solução dos problemas de saúde das pessoas mediante a intervenção médica(5). Essa visão reforça a ideia que muitos usuários projetam sobre o trabalho das equipes da ESF, ou seja, esperam que a assistência em saúde nesse contexto deva ser especializada, centrada na consulta médica e na prescrição de medicamentos(2).

Tal projeção dos usuários reflete a maneira com que, costumeiramente, os profissionais de saúde vêm operando suas práticas, ainda pautadas marcadamente pelo modelo tradicional de assistência à saúde (biomédico, organicista, hospitalocêntrico, curativista, com excesso do uso de procedimentos diagnósticos e de medicações).

Por outro lado, é importante entender que a demanda dos usuários pode ser por consulta médica, consumo de medicamentos, realização de exames (as ofertas que mais tradicionalmente são percebidas pelos usuários), contudo suas necessidades podem ser outras. Assim, as demandas podem não traduzir as necessidades mais complexas do usuário, ou seja, as demandas dos usuários são as “necessidades modeladas pela oferta” que os serviços fazem(9).

Frente a isso, observa-se que o contexto sócio-histórico e político do usuário, bem como sua dimensão subjetiva, são essenciais no processo de compreensão da sua situação de saúde. A realização de um cuidado que vise à integralidade deve se ocupar em explorar não somente os aspectos biomédicos, mas também conhecer e compreender o sujeito (subjetividade) e seu contexto (sua história e relações). Isso nos permite imprimir um olhar sobre a realidade social para além da demanda do usuário que busca a USF, revelando assim suas necessidades.

Essa reflexão é importante, pois está na dimensão relacional, entre as subjetividades (profissional e usuário), a maior governabilidade dos profissionais de saúde na produção do cuidado(9). Por conseguinte, pode-se dizer que o cuidado em saúde/saúde mental na ESF é uma expressão de uma escolha ética e política do profissional que se propõe a cuidar do outro, mediante implicação com a situação vivida do usuário e de seus familiares.

Em relação à ênfase dada ao serviço especializado em saúde mental, revela que a dependência de atendimento especializado para alcançar um estado saudável entre os usuários que buscam a ESF, reforça a falta de autonomia dos mesmos em definir suas próprias necessidades de saúde diante dos profissionais, uma vez que somente um profissional especializado, que não aqueles da ESF, poderia resolver a situação vivenciada por ele(5).

Entre as razões que justificam a necessidade de profissionais da APS estarem aptos a cuidarem de usuários da saúde mental, inclui-se a garantia de cuidados físicos, já que eles possuem alta taxa de comorbidade e mortalidade por doenças físicas, e a garantia de cuidado imediato, precoce e continuado(1). Isso demonstra a relevância das equipes da ESF em se sensibilizarem com as situações enfrentadas pelos usuários na comunidade, seja para oferecer cuidados na USF, seja para possibilitar esse cuidado em outros locais.

A busca de encaminhamento pelo usuário reflete a hierarquização dos serviços de saúde, em que os estabelecimentos da APS, como a ESF, são a principal porta de entrada para o sistema de saúde. Essa atitude, além de demonstrar a segurança e a confiança do usuário pelo trabalho oferecido pela equipe, pode expressar a sua falta de autonomia em buscar outro serviço.

A rapidez e o empenho em providenciar o encaminhamento são aspectos que influenciam no grau de satisfação dos usuários com o trabalho oferecido pelas equipes da ESF. Isso mostra a potencialidade da ESF em oferecer cuidados aos usuários com transtornos mentais leves e moderados, mediante o oferecimento de cuidados no domicílio e por meio de encaminhamentos para outros serviços(2).

Em relação à busca de um relacionamento social com a equipe da ESF, fica explícita nas falas dos usuários a necessidade de encontro com o outro, especialmente quando dizem: “vou lá conversar [...] gosto de ir lá falar dos meus problemas” e “venho desabafar aqui [ESF]. Fica evidente que os profissionais da USF servem como suporte para extravasar angústias. Assim, a ida à USF visa atender a uma necessidade de o usuário compartilhar com os profissionais suas vivências.

Foi evidenciada pelo usuário a necessidade de encontros de subjetividades como produtoras de saúde, mediante o reconhecimento da relevância desses encontros em que a relação face a face é fundamental para sentir-se cuidado, especialmente quando refere que o profissional deva “olhar na cara”.

A relação face a face destacada pelo usuário tem como fundamento a superação de uma relação social do tipo anônima(7), em que o profissional de saúde, ao atendê-lo, não efetiva uma interação em que as particularidades do usuário sejam apreendidas. Dessa maneira, o usuário tem por expectativa um tipo de relação intersubjetiva de familiaridade(7), na qual sua história de vida, suas relações sociais, seus interesses e seus anseios sejam reconhecidos pelos profissionais de saúde na produção de cuidado.

Para proporcionar um cuidado integral, é importante pensar o indivíduo desde seu corpo físico até sua inserção no contexto local, social, econômico, político e cultural, em constante interação. Isso implica conhecer como vivem os usuários, suas histórias de vida, o que se traduz em diferentes expectativas, vivências e potencialidades para cada indivíduo e para cada contexto(10).

A busca da relação social está relacionada à oportunidade dos usuários em ter um espaço no qual possam falar sobre suas vidas, suas trajetórias, seus obstáculos superados e, ao mesmo tempo em que propicie que conheçam outros indivíduos que estão enfrentando situações semelhantes.

O atendimento mediante a realização de grupos pode promover trocas sociais entre usuários e possibilitar ao profissional visualizar as necessidades e o potencial do usuário em particular e do grupo como um todo para, assim, elaborar estratégias de cuidado. Desta maneira, é possível construir um encontro multiplicador de experimentações, em que diferentes perspectivas de mundo de cada indivíduo possam ser reveladas e, por conseguinte, possam servir de objeto de reflexão (individual e/ou coletivo), potencializando a transformação de si mesmo e do meio que o circunda.

O trabalho com grupos oportuniza aos usuários ampliar o poder de realização de trocas afetivas, materiais e de mensagens e, consequentemente, expandir seu poder de contratualidade social, ou seja, de decidir e negociar a maneira como deseja reger sua vida(6). Assim, os profissionais da APS, ao realizar ações voltadas para saúde mental de sua população, devem buscar a ideia da negociação do tratamento, incluindo a voz do usuário nas decisões a serem tomadas. Isto implica em fomentar uma postura profissional apoiadora de seu público e não como detentora do conhecimento e de decisões impostas aos usuários(4). Tal postura coaduna com a perspectiva do trabalho em saúde mental no contexto de consolidação dos pressupostos da Atenção Psicossocial no campo da saúde mental.

O encontro com os profissionais da ESF, seja individual ou coletivo, seja programado ou não, é um importante momento para o usuário atender sua expectativa de estabelecer uma relação social, realizando trocas importantes, produtoras de subjetividade.

 

CONCLUSÃO

Este estudo revelou a essência das expectativas de usuários em relação às ações voltadas para saúde mental desenvolvidas na ESF. Desta maneira, a intencionalidade deles em buscar atendimento junto à equipe visou acessar serviços e/ou insumos ofertados pelas equipes da ESF e estabelecer uma relação social.

Os usuários vão à USF para atender alguma demanda, a qual a equipe oferece resposta por meio da oferta de determinados serviços. Assim, buscam prevenir doenças e complicações por meio de vacinação e do monitoramento da pressão arterial, respectivamente; promover e recuperar a saúde por meio de consulta médica, de prescrição de medicamentos ou mesmo do próprio medicamento dispensado.

Entre as expectativas dos usuários está o interesse em obter encaminhamento para um estabelecimento de saúde especializado, para conseguir acessar profissionais especialistas, sobretudo profissionais da área psi (psicólogo e psiquiatra), ou ainda para conseguir acessar outro estabelecimento de saúde para ter tratamento psiquiátrico.

Ao buscarem atendimento os usuários têm como expectativa estabelecer uma relação social com os membros da equipe da ESF. Dessa forma, eles esperam que a equipe possa oferecer determinadas atividades que propiciem a interação entre as pessoas, tais como reuniões e/ou grupos que tratem de temas vivenciados pelos usuários.

A principal implicação deste estudo está relacionada à necessidade dos profissionais da ESF em responder às expectativas dos usuários em buscar um espaço legitimado pela equipe, que oportunize a eles interação social em que possam falar sobre aspectos de suas vidas, suas trajetórias e os obstáculos superados, compartilhando suas vivências com outras pessoas que enfrentam situações semelhantes.

Considerando a recente discussão sobre a inserção de ações de saúde mental na APS, especialmente na ESF, necessita-se de outros estudos que aprofundem a compreensão dessa interface, privilegiando as perspectivas de diferentes atores sociais envolvidos nesse processo, quais sejam: os usuários, os familiares e os profissionais.

Este estudo possibilitou dar voz aos usuários dos serviços, e espera-se que os achados sirvam de objeto de reflexão das equipes da ESF em relação às práticas assistenciais e a organização do serviço voltado para saúde mental no território. Com isto, vislumbra-se a ampliação de possibilidades de consolidação desta atenção no contexto estudado e em contextos semelhantes.

 

REFERÊNCIAS

1. Ribeiro MS, Poço JLC, Pinto AR. A inserção da saúde mental na atenção básica de saúde. In: Ribeiro MS, organizador. Ferramentas para descomplicar a atenção básica em saúde mental. Juiz de Fora: UFJF; 2007. p. 15-26.

2. Coimbra VCC, kantorski LP, Oliveira MM, Pereira DB, Nunes CK, Eslabão AD. Avaliação da satisfação dos usuários com o cuidado da saúde mental na Estratégia Saúde da Família. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45 (5):1150-6.

3. Medeiros EN, Ferreira Filha MO, Vianna RPT. Epidemiology of mental health and insanity: a review of literature. Online Braz J Nurs. [ serial in the internet ]. 2006 [ cited 2011 Jan 11 ] 5(1). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/138/39.

4. Campos RO, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cienc Saude Colet 2011;16(12):4643-52.

5. Vasconcellos MGF, Jorge MSB, Guimarães JMX, Pinto AGA. Saúde mental no contexto do Programa Saúde da Família: representações sociais de usuários e familiares. Rev RENE. 2008; 9(3):9-18.

6. Saraceno B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia; 2001.

7. Schutz A. El problema de la realidad social. Buenos Aires: Amorrortu editores; 2003.

8. Lima CA, Tocantins FR. Necessidades de saúde do idoso: perspectivas para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2009; 62(3): 367-73.

9. Cecílio LCO.  As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ; 2001. p. 113-26.

10. Gerhardt TE, Riquinho DL, Rotoli A. Práticas terapêuticas e apoio social: implicações das dimensões subjetivas dos determinantes sociais no cuidado em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidar do cuidado: responsabilidade com a integralidade das ações de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2008. p. 143-75.

 

 

Contribuições dos autores

Concepção do estudo e coleta de informações: Marcio Wagner Camatta.

Análise e interpretação dos resultados: Marcio Wagner Camatta e Jacó Fernando Schneider.

Elaboração e revisão crítica do artigo: Marcio Wagner Camatta, Jacó Fernando Schneider e Christine Wetzel.

 

 

Recebido: 10/05/2012
Aprovado: 12/11/2012