ARTIGOS DE REVISÃO

 

Vulnerabilidade de clientes com transtornos mentais para o HIV/AIDS: revisão integrativa

 

Iraci dos Santos1, Leandro Andrade da Silva1

1Universidade Estadual do Rio de Janeiro

 


RESUMO
Entendemos vulnerabilidade como conceito capaz de propiciar transformações nas práticas de atendimento à saúde, porque, em seu bojo é imprescindível pensá-las como sociais e históricas, requerendo o trabalho de diferentes setores da sociedade e atuação transdisciplinar.


Objetivo: identificar publicações nacionais e internacionais que abordam a vulnerabilidade para o HIV/AIDS entre indivíduos com transtornos mentais atendidos nos serviços destinados ao atendimento em saúde mental.

Método: revisão integrativa de literatura realizada em 2012, nas bases de dados online Medline e Lilacs.

Resultado: Encontraram-se artigos nacionais e internacionais predominando o enfoque em adolescentes. Após leitura e análise, se evidenciou um atendimento despreparado para cuidar de pessoas contaminadas pelo HIV/AIDS ou infecções sexualmente transmissíveis e em situação de vulnerabilidade para essas enfermidades.

Conclusão: o atendimento de saúde a essa clientela deve considerar suas características adquiridas no processo de adoecimento psíquico, dependência institucional e perda de vínculos sociais.

Descritores: Enfermagem Psiquiátrica; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Saúde Mental.


 

INTRODUÇÃO

O processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), compreendido como um movimento que extrapolou o campo estrito da assistência em saúde mental para tornar-se um dos mais expressivos processos sociais no cenário nacional contemporâneo, tem por objetivo qualificar o atendimento ao indivíduo com transtorno mental, construindo outros espaços sociais para o que se considera a loucura; questionando e transformando as práticas da psiquiatria tradicional e das demais instituições da sociedade(1-2).

Tal reforma, por meio de suas dimensões política, epistemológica, sociocultural e técnico-assistencial, possibilitou uma profunda revisão da legislação em saúde mental e favoreceu ações articuladas com diversos atores sociais e instituições de cuidado em saúde(3).

Compreendida como um movimento social heterogêneo, a RPB é um amplo e complexo campo. É, sobretudo, um processo que traz marcas de seu tempo (desde a década 1970) e está inserida em um movimento mais amplo, denominado de Reforma Sanitária. Esta última reforma buscou politizar a questão da saúde mental, especialmente a luta contra as instituições psiquiátricas ao produzir reflexões críticas e estratégias de cuidado contra-hegemônicas da psiquiatria tradicional, que segregava o sujeito do convívio social(4).

Todo esse processo se articulou com outros movimentos sociais, aliados a luta pela redemocratização do país. Atualmente, é impossível negar que em diversos aspectos o atendimento às pessoas com transtornos mentais avançou, principalmente, por meio dos dispositivos substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, expressos prioritariamente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que propiciaram uma profunda transformação no processo de lidar com a doença mental4).

Outro fator contribuinte foi a aprovação, no Congresso Nacional, da Lei 10.216(5) que versa sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. Esta Lei tramitou por mais de doze anos no Senado Federal e ainda assim, seu texto final ficou muito distante do necessário, onde vários artigos foram vetados. Aprovado, em 1989, o texto original da referida lei propunha claramente a extinção progressiva dos manicômios e a substituição destes por outros serviços(6).

Transformado em um texto tímido, a Lei 10.216(5) foi aprovada, porém, permitindo a manutenção da estrutura hospitalar já existente e regulando as internações psiquiátricas. Houve, também, a mudança do modelo de atendimento, sugerindo que a assistência fosse ofertada preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental(4).

No ano de 2010, em Brasília, houve a IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial (CNSMI), a qual reafirmou o CAPS como dispositivo fundamental do modelo de atenção psicossocial substitutivo ao hospital psiquiátrico, ressaltando sua função estratégica de articulador da rede de serviços, e a necessidade de potencializar parcerias intersetoriais e de intensificar a comunicação entre os CAPS, a rede de saúde mental e a rede geral de saúde, contemplando as dimensões intra e intersetoriais(7).

A IV CNSMI reafirmou a relevância de assegurar os princípios da integralidade, acessibilidade, intersetorialidade, e do respeito à identidade cultural, assim como de garantir o acesso universal aos cuidados em saúde mental(7). Nesse contexto, se insere a discussão sobre as pessoas com transtornos mentais vivendo com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV)/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e sobre os demais usuários de saúde mental que estejam em situação de vulnerabilidade. Esta é uma temática pouco abordada pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, apesar de sua relevância ética, e contemporânea. Sendo assim, delimitou-se como objeto de estudo: vulnerabilidade de pessoas com transtornos mentais à aquisição de síndrome da imunodeficiência adquirida.

Acerca desta temática, ainda pouco explorada, este estudo mostra-se relevante para subsidiar a assistência aos indivíduos com transtornos mentais. Inclusive, a partir da noção de vulnerabilidade que supera a ideia clássica de risco e se apresenta como um conceito capaz de propiciar transformações nas práticas de atendimento à saúde, porque, em seu bojo, se torna imprescindível pensá-las como sociais e históricas, requerendo o trabalho de diferentes setores da sociedade e, tornando a transdisciplinaridade como um fenômeno indispensável. Esta noção de vulnerabilidade justifica a importância deste estudo, pois ela pode ser organizada por elementos desencadeadores, tais como as experiências vividas anteriormente por clientes e o despreparo dos profissionais de saúde mental para o agir(7).

Diante do exposto, este trabalho objetivou identificar, por meio de uma revisão integrativa, as publicações nacionais e internacionais que abordem a vulnerabilidade para o HIV/AIDS entre indivíduos com transtornos mentais atendidos nos serviços destinados ao atendimento em saúde mental.

 

MÉTODO

Utilizou-se a Revisão Integrativa de Literatura (RIL), pois esta possibilita a tomada de decisões e a qualidade da prática clínica, considerando a síntese de resultados de pesquisas sobre determinada temática, de maneira sistemática e ordenada, contribuindo para um maior aprofundamento do conhecimento do tema investigado(8). Foram desenvolvidas as seguintes etapas expressas na figura 1.

Figura 1. Fluxograma das etapas da RIL. Rio de Janeiro, 2012.

Fonte: Elaborado pelos autores baseado no estudo de Mendes, Silveira e Galvão, 2008(9).

A primeira etapa compreendeu a escolha da questão norteadora: Quais são os registros relevantes em publicações científicas sobre a vulnerabilidade para o HIV/Aids em pacientes com transtornos mentais? A segunda etapa constituiu-se da busca nas bases de dados eletrônicas: National Library of Medicine (Medline) e Literatura Latino-Americana de Ciências da Saúde (Lilacs), no período de janeiro a fevereiro de 2012. Utilizaram-se como termos de busca as expressões “AIDS em pacientes com transtornos mentais”; “HIV em saúde mental”; “HIV em psiquiatria”, haja vista a inexistência de termos padronizados, no vocabulário Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), que refletisse os de interesse desta revisão.

Na terceira etapa, selecionaram-se os trabalhos segundo os seguintes critérios de inclusão: publicações do período de 1995 a 2011; nos idiomas português, inglês e espanhol; existência de resumos e textos completos disponíveis online nas bases de dados supracitadas. Critério de exclusão: artigos cuja descrição destoava da temática do estudo.

Identificaram-se nas bases de dados 15 trabalhos, dos quais seis foram selecionados. A quarta etapa compreendeu a garantia do rigor metodológico, mediante a elaboração de formulário próprio composto pelas variáveis relacionadas à identificação do artigo(9): título, periódico de publicação; ano de realização da pesquisa e de publicação; local de desenvolvimento do estudo; palavras-chave; identificação dos autores (titulação e afiliação) e; identificação da pesquisa (sujeitos, método, objetivos, síntese dos resultados, conclusões).

Na quinta etapa, por sua vez, foi realizada a análise crítica dos trabalhos selecionados(8), comparando-se os conhecimentos teóricos, a identificação de conclusões e implicações resultantes da revisão integrativa, sendo possível identificar a condução das situações que favorecem a aquisição do HIV/AIDS entre pacientes com transtornos mentais, incluindo-se uma possível vulnerabilidade deste grupo.

Nos trabalhos selecionados buscou-se assinalar os seguintes níveis de evidência: nível 1 - evidências resultantes de metanálise de múltiplos estudos controlados e randomizados; nível 2 - evidências de estudos individuais com desenho experimental; nível 3 - evidência de estudos quase-experimentais, séries temporais ou caso-controle; nível 4 - evidências de estudos descritivos (não experimentais ou abordagem qualitativa); nível 5 - evidências de relatos de caso ou de experiência; nível 6 - evidências baseadas em opiniões de comitês de especialistas, incluindo interpretações de informações não baseadas em pesquisas, opiniões reguladoras ou legais(9).

Finalmente, na sexta etapa, procedeu-se com a revisão/síntese do conhecimento produzido, na qual se incluiu informações que permitiram avaliar a pertinência dos procedimentos aplicados na elaboração da revisão e atribuir o nível de evidência de 1 a 6 dos artigos analisados, considerando o método de pesquisa utilizado. Nesta etapa, os dados foram submetidos à análise de conteúdo, delimitando-se duas categorias temáticas, quais sejam: perfil da produção científica sobre a temática e; resultados sobre a vulnerabilidade de clientes com transtornos mentais à HIV/AIDS.

 

RESULTADOS

Perfil da produção científica sobre a temática
A análise do Quadro 1, revelou que dos seis artigos selecionados, dois foram publicados em periódicos estrangeiros em idioma inglês(10-11) e quatro em periódicos nacionais(12-13-14-15). Todas as pesquisas utilizaram o método quantitativo e descritivo, dos quais três são estudos multicêntricos(12-13-15). (Ver Quadro 1).

Das referências consultadas na íntegra, observou-se o predomínio de publicações em revistas médicas, sendo quatro nacionais(13-14-15) e duas internacionais(10-11). Apenas uma publicação(12) é procedente da área de enfermagem, o que denota a necessidade de novos estudos sobre a vulnerabilidade para o HIV/AIDS em pessoas com transtornos mentais principalmente por profissionais de enfermagem, integrantes de equipes de saúde mental.

No que se refere ao recorte temporal, observou-se que as publicações internacionais são menos recentes, sendo a mais atual datada de 2005, enquanto que as publicações nacionais começaram a figurar nos periódicos a partir de 2007.

Estes estudos foram provenientes de pesquisas realizadas em diferentes cenários assistenciais. Os estudos internacionais(10-11) foram desenvolvidos em três hospitais e em um ambulatório de psiquiatria em Chicago, Estados Unidos da América. No Brasil, a pesquisa publicada em periódico de enfermagem utilizou como cenários dois ambulatórios e dois hospitais psiquiátricos distribuídos pelos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro(12). As pesquisas publicadas em revistas médicas(13-14-15) apresentaram como cenários: onze hospitais psiquiátricos e quinze centros de atenção psicossocial em diversas regiões do país. Em um dos estudos(13) foram escolhidas, aleatoriamente, diferentes instituições de saúde espalhadas por todo território nacional. Apenas uma pesquisa(14) não possuiu cenário por se tratar de um estudo de revisão de literatura.

Os descritores utilizados para caracterizar os estudos incluíram 30 termos, dos quais os mais incidentes foram: doenças sexualmente transmissíveis, psiquiatria, transtornos mentais e AIDS. Dentre a área de formação dos autores, predominou a medicina (ver Quadro 1).
Quanto à vertente metodológica, um dos estudos internacionais(10) trabalhou com um grupo de adolescentes com transtornos mentais, utilizou como instrumento de coleta de dados um teste psicológico denominado information–motivation–behavioral (IMB), o qual objetivava verificar informações e/ou conhecimentos que os mesmos pudessem ter acerca da transmissão e de métodos preventivos para evitar HIV/AIDS.

Síntese e evidência dos artigos selecionados
A partir do quadro 2 é possível verificar como os pesquisadores analisaram relatos acerca do conhecimento da temática, as atitudes, crenças e habilidades comportamentais, afim de identificar através do discurso deste grupo, situações que os colocassem vulneráveis e os classificassem como jovens de comportamento sexual de alto risco. Procedeu-se a classificação do nível de evidência conforme classificação já mencionada nos métodos(9). (Ver Quadro 2).

Um dos estudos(10) tentou verificar se os sujeitos buscavam dialogar com seus parceiros sexuais sobre métodos preventivos. Porém, os resultados revelaram que 81% dos adolescentes relataram ter pouca ou nenhuma chance de contrair o HIV e 49% relataram pouca ou nenhuma preocupação em contrair o HIV.

Outro estudo(11) concentrou-se sobre a juventude, suas transformações, e principalmente na questão de ser adolescente, possuir transtornos mentais e receber cuidados em serviços psiquiátricos. Este grupo de jovens estudado, segundo os autores representou uma população com alto risco de exposição ao vírus do HIV, com um agravante: o comportamento de risco é mal compreendido por esses jovens, em função das alterações de juízo, causado pela psicopatologia.

Este mesmo estudo(11) apresentou resultados em relação aos fatores de risco atrelado ao gênero, principalmente dentro de um contexto familiar, a fim de obter uma imagem mais completa dos mecanismos associados ao HIV e do comportamento de risco, que poderiam ser diferentes entre jovens do sexo feminino em relação ao masculino. O estudo também tentou verificar se as relações parentais poderiam colocar esses jovens em situação de vulnerabilidade, por conta da permissividade dos pais. Outro objetivo deste mesmo estudo foi verificar se haveria maior vulnerabilidade em função de diferenças étnicas, o que não foi comprovado.

Das pesquisas realizadas em território nacional, três foram multicêntricas(12-13-15), dentre os quais, um(13) objetivou verificar evidências que pudessem indicar quais pacientes com transtornos mentais teriam elevada prevalência de infecções sexualmente transmissíveis e; outro(13) tentou determinar a prevalência de diferentes Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), dentre elas o HIV, a hepatites C e B, e a sífilis, entre essa clientela no Brasil.

Dos 2.475 pacientes entrevistados, 2.238 tiveram sangue coletado. A maioria era sexualmente ativa ao longo da vida, representando 88,8% dos entrevistados e; 61,4% manteve algum contato sexual nos últimos seis meses. O gênero feminino chamou a atenção por representar 51,9% dos sujeitos acometidos, destas 66,6% eram solteiras, com menos de cinco anos de escolaridade e renda média mensal abaixo de US$210. O estudo revelou que a utilização de preservativos ao longo da vida, entre os participantes, foi baixa, apenas 8%. Em relação à utilização do preservativo nos últimos seis meses, somente 16% o fizeram. As soroprevalências gerais foram 1,12%, 0,80%, 1,64%, 14,7% e 2,63% para, sífilis, HIV, HBsAg, anti-HBc e anti-HCV, respectivamente(13).

Em relação às pesquisas que consideraram aspectos geográficos, cabe um paralelo com os dados do Brasil, que registrou 492.581 casos de HIV/AIDS notificados através do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), no período de 1980 a junho de 2010. A metodologia de relacionamento dos bancos de dados proporcionou um incremento de 37% em relação aos casos notificados no SINAN, resultando em 592.914 casos identificados no período. Esse incremento, quando estratificado por região, mostra um percentual de 54% de registros ausentes no banco de dados de HIV/AIDS do SINAN nas seguintes regiões: Norte, 47%; Nordeste, 35%; Sudeste, 33%; Sul e; 32% Centro-Oeste, no respectivo período(16).

Esta mesma análise, por regiões, demonstrou que foram identificados 344.150 casos de HIV/AIDS na região Sudeste (58,0% dos casos acumulados no Brasil); 115.598 casos na Sul (19,5%), 74.364 resultante de relações sexuais, sendo 73,8% no sexo masculino e 94,0% no sexo feminino, no respectivo ano(16).

O estudo de caráter bibliográfico(14) se interessou por sujeitos portadores de doenças mentais crônicas e buscou encontrar na literatura científica evidências que sugerissem a vulnerabilidade, desta clientela, ao risco para a infecção pelo HIV, sífilis, hepatite B e C entre pacientes com doença mental crônica no Brasil e em outros países. Entretanto, o estudo revelou que a prevalência dessas infecções entre portadores de doença mental crônica ainda não está claramente estabelecida. Verificou-se que a maioria dos trabalhos sobre essa temática foi conduzida em países desenvolvidos, com amostras relativamente irrisórias e não representativas.

De modo geral, as prevalências variaram de 0% a 29%, 3 a 66%, 0,4 a 38% e, 3,3% a 7,6% para o HIV, hepatite B, hepatite C e a sífilis, respectivamente. Diversos fatores de risco foram identificados e discutidos, embora, na literatura atual, segundo os autores, não existam achados significativos produzidos por estudos representativos. Tal revisão destacou a escassez de informação sobre a prevalência de infecções sexualmente transmitidas e seus fatores associados entre portadores de doenças mentais crônicas e possibilitou a identificação de lacunas referentes à produção de conhecimento sobre esta temática em países desenvolvidos bem como naqueles em desenvolvimento(14).

Dos trabalhos encontrados, destaca-se um artigo(13) que objetivou avaliar indicadores de estrutura e processo de atenção em DST/AIDS junto aos serviços e aos usuários de saúde mental. Como método foi realizado um estudo com corte transversal multicêntrico por meio de amostragem significativa de âmbito nacional. Do estudo participaram usuários e profissionais de serviços de saúde mental. Foram escolhidos aleatoriamente onze Hospitais Psiquiátricos e quinze Centros de Atenção Psicossocial em diversas regiões do país.

Aplicou-se um questionário para avaliação dos serviços de saúde mental, através de um supervisor local da pesquisa, o foco do instrumento era avaliar descritivamente, indicadores selecionados de estrutura e de processo assistencial em saúde mental.

Os resultados revelaram através da avaliação in loco que em ambos os dispositivos assistenciais, prevaleceram às dificuldades dos profissionais em atender e dar suporte clínico aos pacientes acometidos pelas moléstias foco do estudo. Somente 19,2% dos serviços consideraram que o sistema de referência e contrarreferência estava totalmente estruturado, evidenciando uma precária interlocução entre os serviços e gestores de saúde mental. Ademais, verificou-se uma fragilidade de recursos humanos e materiais nos CAPS, bem como uma carência na disponibilidade e dispensação dos medicamentos utilizados nas situações de urgências clínicas. Segundo os pesquisadores, foram raros os serviços que possuíam programas de educação sexual ou de distribuição de preservativos, apesar de saberem da existência de pacientes infectados pelo vírus do HIV(13).

O único artigo encontrado em periódico nacional de enfermagem(12) abordou a questão da promoção da saúde sexual entre mulheres com transtornos mentais severos e persistentes, incluindo aquelas com diagnóstico de cronicidade em psiquiatria. As autoras destacaram as elevadas taxas de IST detectadas junto a esta população no país. Foram analisados os “roteiros sexuais” vividos por essas mulheres, com vistas a compreender a influência da cultura sexual nas formas de pensar e viver a sexualidade, bem como seus reflexos na vulnerabilidade em face dos agravos sexualmente transmissíveis destes sujeitos em sofrimento psíquico. Utilizou-se como método de coleta de dados a entrevista em profundidade, em uma amostra composta por 17 mulheres. Os dados foram submetidos à análise estrutural de narração, por meio da qual foi possível compreender melhor a vivência da sexualidade destas pacientes, que se mostrou fortemente arraigada nos cenários culturais, nos quais foi possível perceber situações de vulnerabilidade decorrentes, principalmente, dos papéis atribuídos historicamente a este gênero.

Em relação aos diagnósticos, apresentavam os quadros de esquizofrenia, transtorno bipolar, transtornos delirantes, depressões, transtornos orgânicos que compreendiam intoxicação, demência e retardo mental. Cabe ressaltar que as autoras apenas citaram os diagnósticos clínicos e não objetivaram relacionar a aquisição do vírus aos respectivos transtornos psiquiátricos, considerando-se que, independentemente da especificidade do transtorno, todas estavam vulneráveis aos agravos sexualmente transmissíveis e necessitavam de cuidados para sua saúde sexual. Faz-se necessário pontuar que nenhuma delas relatou ter recebido orientações sobre DST e HIV/AIDS nos serviços de saúde mental. Seus relatos são ilustrativos do círculo vicioso de vulnerabilidades formado por pobreza, desamparo, violência sexual sofrida, prostituição e drogadição(12).

Quanto à distribuição geográfica, foram encontrados dois estudos elaborados por médicos(13-15) em diversas regiões do país. O estudo realizado por enfermeiras(12) coletou dados em dois estados. Em comparação com dados do Ministério da Saúde é possível perceber a distribuição dos casos de HIV/AIDS, de acordo com as regiões. Em 2009, verifica-se que 38,2% dos casos encontram-se na Região Sudeste, seguida das regiões Nordeste (21,9%), Sul (21,1%), Norte (11,1%) e Centro-Oeste (7,7%). Embora a Região Sudeste apresente maior número de casos, a Sul se destaca com a maior taxa de detecção naquele período, representando 12,6% em cada 100.000 habitantes. A maior proporção dos casos de AIDS entre os jovens compreendeu a faixa etária de 13 a 24 anos de idade, em ambos os sexos(16).

 

DISCUSSÃO

O Ministério da Saúde apresentou no ano de 2010, as seguintes prevalências de infecção pelo HIV no Brasil: 0,6% na população de 15 a 49 anos de idade (0,4% nas mulheres e 0,8% nos homens); 0,12% nos jovens do sexo masculino de 17 a 20 anos de idade e; 0,28% em mulheres jovens de 15 a 24 anos(16). Cabe destacar que de acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil, o número de óbitos em jovens acometidos pelo vírus do HIV, no período de 1998 a 2009, foi de 7.443, sendo 58% no sexo masculino e 42% no sexo feminino. Nos últimos dez anos, o país tem registrado uma média anual de 589 óbitos entre os jovens, apresentando uma redução de 31,6% no coeficiente de mortalidade de 1999 (1,9 óbitos por 100.000 habitantes) para 2009 (1,3/100.000 habitantes)(16).

Esses dados vão ao encontro das publicações produzidas nos Estados Unidos da América(10-11), nelas os jovens com transtornos mentais enquadraram-se no grupo populacional mais vulnerável a aquisição do vírus HIV. Segundo as publicações(10-11), justificam-se estes achados devido à influência dos pais/responsáveis no comportamento sexual de adolescentes com transtornos mentais. Entre eles, os jovens do sexo masculino gozam de uma maior permissividade à atividade sexual e à multiplicidade de parceiros, que os colocam numa situação de maior vulnerabilidade.

Situação diferente é percebida no que se refere às adolescentes com transtornos mentais, as quais têm a sexualidade mais controlada pelos responsáveis. Porém, pesquisa(10-11) revelou um fato curioso, as adolescentes são menos propensas a usar preservativos, pelo fato das famílias terem dificuldades de dialogar sobre assuntos ligados à sexualidade, e quando mantêm relações sexuais, geralmente são com homens de mais idade, que por sua vez, não aceitam a utilização de preservativos, justificando a velha crença cultural da fidelidade unilateral por parte delas(10).

Esses achados podem estar vinculados a uma diminuição de juízo crítico causado pela psicopatologia que acomete estes adolescentes. Ajuizar é produzir juízo, que é essencialmente uma atividade humana por excelência, por meio da qual é possível ao homem estabelecer relação com o mundo e discernir a verdade do erro, assegurando a existência ou não de um objeto perceptível. Dessa forma, torna-se possível avaliar situações, processo que pode ser denominado de juízo de valor. Todo juízo implica, certamente, um julgamento, que é em parte subjetivo, individual, e, em parte, social, que vai sendo constituído historicamente, em consonância com os determinantes socioculturais(17).

Ainda sobre a discussão relacionada ao gênero, o trabalho desenvolvido por profissionais de enfermagem(12), focava 17 mulheres com transtornos mentais contaminadas pelo vírus do HIV, com faixa etária que compreendia de 18 a 68 anos. A maior prevalência de participantes tinha idade entre 31 e 40 anos. Estas mulheres apresentavam alguns componentes que as colocaram em situação de maior vulnerabilidade, como baixa escolaridade, acesso dificultado a bens em função da baixa renda, muitas viviam em situação de pobreza extrema.

Atrelado a esses fatores, somam-se os casos de violência física da família, principalmente de parceiros, os quais mantinham relações extraconjugais e negligenciavam os cuidados com a família. A obrigatoriedade de manter relações sexuais com seus parceiros, não obstante a falta de vontade, se justificou pelo fato destes proverem o sustento da casa, além do medo de novas agressões. Vale frisar que a infidelidade dos companheiros resultou na DST contraída. Diante de cotidianos caóticos, essas mulheres afirmaram fazer uso de álcool e drogas ilícitas, estratégia utilizada para aliviar ansiedades, tristezas e mazelas da vida(12).

Apesar da prevalência de relações conjugais sexuais não satisfatórias, essas mulheres mantiveram os relacionamentos e práticas sexuais por muitos anos. Tal fato estaria associado à crença cultural, sobre a qual se apóia a idéia de que é dever de esposa tolerar e atender sexualmente aos desejos do parceiro (12).

A vulnerabilidade, percebida através de outra pesquisa selecionada(15), se revelou agravada em função do contexto de exclusão social em que vivia este grupo populacional. Os achados revelaram, ainda, a necessidade de considerar os aspectos socioculturais nas ações que envolvam a promoção da saúde sexual e a prevenção das infecções sexualmente transmissíveis para essa população, constituindo-se como contributivos para assegurar o princípio da integralidade e o direito de todos à assistência qualificada, fundamentada na Constituição Federal e consolidada através do Sistema Único de Saúde do Brasil.

No estudo bibliográfico(14), após a análise das produções acadêmicas, verificou-se que no Brasil, como afirmado anteriormente, o impacto desta epidemia ainda é pouco conhecido entre a clientela de Saúde Mental, principalmente entre pacientes crônicos. Porém, nos últimos anos, os Serviços de Saúde Mental vêm recebendo em suas unidades um maior contingente de pessoas contaminadas com o HIV, seja nos CAPS, ou nas internações em unidades hospitalares(14).

Deve-se ter um olhar diferenciado para cuidar de pessoas em sofrimento psíquico, principalmente com os ditos pacientes psiquiátricos crônicos, para os quais é necessário um trabalho complexo devido às peculiaridades apresentadas por esses sujeitos. A reabilitação psicossocial de pacientes crônicos internados por muitos anos perpassa por intervenções que envolvem diversos atores sociais, bem como a reconstrução de territórios, englobando as singularidades e as subjetividades de um mundo a ser vivido fora do âmbito hospitalar.

Pacientes crônicos sempre representaram um imenso desafio para todas as propostas assistenciais em saúde mental(18).

Algumas situações particulares de pessoas com doença mental grave podem favorecer o aumento dos riscos de exposição ao HIV, contribuindo para o desenvolvimento de comportamentos de risco, tais como: a dificuldade em estabelecer uniões estáveis; de encontrar-se social e economicamente em desvantagem; ser vítima de abuso sexual; estar com o juízo crítico prejudicado, principalmente nos surtos psicóticos; hipersexualidade; impulsividade e; baixa autoestima(19)

Esses fatores, conjugados com as hospitalizações nos momentos de crise, podem deixar os usuários dos serviços de saúde mental ainda mais vulneráveis ao HIV/AIDS. As rehospitalizações podem favorecer uma possível quebra dos relacionamentos sociais e afetivos, levando os usuários a tornarem-se mais expostos a parceiros desconhecidos. Algumas situações de risco não são exclusivas para as pessoas com problema mental grave, mas podem ser vivenciadas mais frequentemente por elas. A prática sexual com parceiros desconhecidos, por exemplo, diminui a probabilidade de conhecerem o status de HIV/AIDS de seus parceiros(19).

 

CONCLUSÃO

Diante dos resultados encontrados ressalte-se a necessidade de novas pesquisas científicas acerca da vulnerabilidade de pessoas com transtornos mentais para o HIV/AIDS, pois essa temática é ainda pouco explorada tanto no cenário nacional como internacional. Percebeu-se, a partir da análise dos trabalhos, a ausência de ações significativas das equipes de saúde mental no sentido de orientar quanto à prevenção de DST.

A infecção pelo HIV é reconhecida como um desafio para a ciência, ao mesmo tempo em que se torna um drama social para as pessoas e famílias contaminadas. Conclui-se que, no caso específico de pessoas em sofrimento psíquico, as alterações do juízo crítico as colocam em uma situação de maior vulnerabilidade se comparada a sujeitos em pleno gozo de suas funções mentais.

Historicamente, os sujeitos em sofrimento psíquico sempre estiveram em situação de desvantagem, sejam elas, sociais, familiares e principalmente assistenciais. Somam-se a ausência de uniões estáveis, práticas sexuais não consensuais, violências sexuais e a troca de sexo por bens de baixo valor.

Elaborar uma proposta assistencial para essa clientela é uma tarefa complexa, principalmente em função das características adquiridas por esses sujeitos ao longo do processo de adoecimento psíquico, nos quais a diminuição do juízo, a institucionalização – para alguns -, a perda de vínculos sociais e familiares e a idade avançada contribuem para complexidade desse objeto de estudo.

 

REFERÊNCIAS

 

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Recebido: 03/04/2012
Aprovado: 29/10/2012

 

Nota: Este trabalho foi apresentado no 6º Simpósio Nacional O Cuidar em Saúde e Enfermagem (EnfCuidar) e ganhador do Prêmio Online Brazilian Journal of Nursing. O EnfCuidar, promovido pelas escolas de enfermagem de Universidades públicas do Rio de Janeiro, foi realizado no período de 12 a 14 de abril de 2012, na Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).