ARTIGOS ORIGINAIS
Vivências de mães de crianças com cardiopatias: uma pesquisa-cuidado
Ana Cleide Silva Rabelo1, Lúcia de Fátima da Silva1, Maria Vilaní Cavalcante Guedes1, Keila Maria de Azevedo Ponte1, Fabíola Vládia Freire da Silva1
1Universidade Estadual do Ceará
RESUMO
Objetivo: Analisar a vivência de mães de crianças com cardiopatias à luz da Teoria do Cuidado Transpessoal. Método: Pesquisa-cuidado, de abordagem qualitativa, realizada em maio e junho de 2011. Amostra: 21 mães que acompanhavam seus filhos durante tratamento em um hospital especializado em adoecimento cardiopulmonar, em Fortaleza-Ceará. Resultados: A mãe vivencia processos de transformação na vida social por ter de se dedicar ao filho com cardiopatia, além de enfrentar sentimentos como ansiedade, medo, tristeza e angústia pelo risco iminente de morte do filho. Para ter força e sustentação, ela utiliza a fé. Discussão: A utilização dos elementos do Processo Clinical Caritas colabora para o desenvolvimento do cuidado de enfermagem humanizado. Conclusão: A aplicabilidade desta teoria favorece a compreensão da experiência da mãe como cuidadora e como ser que necessita de cuidado.
Palavras-chave: Teoria de enfermagem; Pesquisa; Cuidado; Cardiopatias; Criança.
INTRODUÇÃO
Este artigo foca-se na análise das vivências de mães de crianças hospitalizadas com cardiopatias, relacionando-as aos elementos do Processo Clinical Caritas, proposto por Jean Watson e compreendido como modelo de cuidado transpessoal que considera o ser cuidado como partícipe do processo de cuidar(1).
A hospitalização é um momento difícil no qual a criança requer ainda mais cuidado, amor, dedicação e atenção tanto dos pais quanto dos profissionais de saúde. Deste modo, a interação entre estes cuidadores possibilita melhor adaptação da criança à vivência do adoecimento.
No referente à vivência da mãe, a internação hospitalar da criança é um evento potencialmente estressante, pois a insere em um ambiente que frequentemente ameaça seu senso de segurança e competência(2).
Nesse processo, a mãe revela o sofrimento decorrente tanto da responsabilidade que assume perante a família e a sociedade pelo cuidado do filho doente, quanto da dinâmica de funcionamento do ambiente hospitalar(3).
Mesmo se a mãe está presente, o adoecimento do filho gera constante tensão, não apenas pela doença, mas também pelo fato de, em regra, a mãe tentar assumir cuidados e não receber orientação adequada para isto. Deste modo, ela passa a se preocupar com qualquer movimento da criança e, muitas vezes, não conta com um profissional disponível para apoiá-la e minimizar suas angústias(4).
Diante disto, é essencial a prestação do cuidado de enfermagem também às necessidades da família, o que requisita o domínio do enfermeiro acerca de informações teóricas específicas e sensibilidade para lidar com esta clientela.
É fundamental que estes profissionais compreendam a mãe como mediadora entre a criança e o hospital, porquanto ela é quem transmite à equipe os sinais e as mensagens enviadas pela criança. Estes sinais podem auxiliar os profissionais a reverem sua conduta e promover mudanças no cuidado, adaptando o mundo do hospital às condições da criança/mãe(5).
A utilização de referenciais teóricos na prática profissional de enfermagem é um facilitador para efetivar ações de cuidar que privilegiem o ser humano inserido em um ambiente, no intuito de restabelecer a saúde por meio do cuidado de enfermagem. Na área de enfermagem, diversos estudos dedicam-se à temática do cuidado. Este se apoia na Teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson.
Esta teoria apresenta o ser humano como ponto de convergência de todas as ações de enfermagem; a integralidade do corpo, mente e espírito em um processo transpessoal(6). Entre os elementos do Processo Clinical Caritas, incluem-se a sacralidade do ser cuidado, a conexão do ser humano para um plano que extrapola o concreto e visual e a proposição do healing como reconstituição do ser(7).
O Processo Clinical Caritas é um modelo emergente de cuidado transpessoal, que modifica os fatores cuidativos, os quais dão forma e estrutura à teoria do cuidado humano e auxiliam os enfermeiros na resolução de problemas de forma criativa. Tal processo aborda o outro com delicadeza, sensibilidade e atenção cuidadosa(1).
Ainda com base nesta teoria, ressalta-se a importância de recompor e reconstituir os envolvidos, a partir do cuidar do enfermeiro, facilitando-lhe a aceitação da sua vida mediante estabelecimento de relação de ajuda, confiança, cuidado, amor, imbuídos de um compromisso ético(8).
Este estudo foca-se na análise do Processo Clinical Caritas proposto por Jean Watson com mães de filhos cardiopatas, compreendendo a relação entre amor e cuidado tanto para si (self/mãe) como para o outro (filho/profissional), com vistas ao melhor desenvolvimento das ações de enfermagem, promovendo mudanças nessas relações. Para desvelar, elucidar e dar suporte à inquietação da pesquisa, utiliza-se o referencial teórico de Watson por meio da Teoria do Cuidado Transpessoal(1).
Deste modo, o estudo tem o objetivo de analisar a vivência de mães de crianças com cardiopatias à luz da Teoria do Cuidado Transpessoal.
MÉTODO
Pesquisa-cuidado de abordagem qualitativa. A pesquisa-cuidado é dotada de particularidades à área da enfermagem, com a qual mantém uma ligação de reciprocidade e cujos resultados subsidiam as práticas(9).
Para realizar a pesquisa-cuidado, devem-se percorrer cinco etapas sucessivas: aproximação com o objeto de estudo; encontro da pesquisadora-cuidadora com o ser pesquisado-cuidado; estabelecimento das conexões de pesquisa, teoria e prática do cuidado; afastamento do ser pesquisador-cuidador e ser pesquisado-cuidado; análise do apreendido(10).
Aproximação com o objeto de estudo
Nesta primeira fase, houve a definição do objeto de estudo, qual seja: desvelar a experiência das mães de filho com cardiopatias no processo de hospitalização deste. A escolha do referencial metodológico atende aos propósitos do estudo, pois permite que, além da pesquisa, sejam desenvolvidas ações de cuidado.
Na revisão de literatura discutiu-se sobre as cardiopatias congênitas; o cuidado de enfermagem à mãe e ao seu filho com cardiopatia congênita; o relacionamento mãe e filho nesta condição; a Teoria Transpessoal de Jean Watson e; o cuidado de enfermagem às crianças com cardiopatia congênita e às mães. Tais discussões contribuíram para a aproximação com o objeto, delimitar e analisar o conhecimento para certificação dos propósitos do estudo.
Encontro da pesquisadora-cuidadora com o ser pesquisado-cuidado
Na segunda fase do método, ocorreu, primeiramente, o encontro com a equipe de enfermagem, quando foi explicado o objetivo do estudo, estabelecendo uma relação de companheirismo, ao se esclarecer a preocupação da pesquisadora-cuidadora em colaborar com as atividades de cuidado sem comprometer a rotina do serviço.
Esta fase configurou-se como o primeiro momento de interação com o ser pesquisado-cuidado, ao serem identificadas suas reais necessidades.
A pesquisa foi realizada com 21 mães de filhos com cardiopatias, internados em unidade pediátrica de um hospital de grande porte, especializado em adoecimentos cardiopulmonares, em Fortaleza-Ceará, em maio e junho de 2011. Essa unidade de internação possui um total de 24 leitos, distribuídos em oito enfermarias coletivas, conformando-se em um setor de alta rotatividade.
O quadro de profissionais de enfermagem da unidade em estudo é formado por duas enfermeiras e seis profissionais de ensino médio (técnico ou auxiliar de enfermagem), que se revezam em plantões de 12 horas.
A escolha do local de estudo deu-se por se tratar de uma unidade terciária, especializada no diagnóstico e tratamento de doenças cardíacas e pulmonares. Dispondo de todos os procedimentos de alta complexidade nestas áreas e destacando-se no transplante cardíaco de adultos e crianças.
As participantes do estudo foram selecionadas por amostragem intencional, na qual foram chamadas para participar do estudo todas as mães que estavam acompanhando seus filhos no processo de hospitalização, no primeiro encontro com a pesquisadora-cuidadora. Nãoo houve preocupação com a quantidade de participantes, posto interessar a saturação dos seus relatos em torno do fenômeno em estudo.
Como critérios de inclusão adotaram-se: ter filho hospitalizado em decorrência de cardiopatia congênita e demonstrar estar acessível a participar do estudo. Como critério de exclusão: mães que não estivessem presentes durante toda a hospitalização dos filhos.
Para a coleta de informações se utilizou de entrevista semiestruturada a qual utilizou da seguinte questão norteadora: como é para você vivenciar o processo de adoecimento de seu filho com cardiopatia e ser cuidada, juntamente com ele, pela equipe enfermagem? Foi também aplicado um instrumento de identificação dos sujeitos. Os depoimentos foram gravados em um aparelho digital, mediante autorização das participantes, e também se registraram os dados de observação do entrevistador num diário de campo.
Em observância as normas, foram considerados os preceitos ético-legais da Resolução 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, e obteve-se aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, com parecer número 10725967-2. Os nomes das pesquisadas-cuidadas foram trocados por nomes fictícios de flores para preservar o anonimato dos mesmos. As mães opinaram em relação ao codinome a ser adotado.
Estabelecimento das conexões de pesquisa, teoria e prática do cuidado
Esta terceira fase foi determinante para o êxito da aplicação do método pesquisa-cuidado, pois se relaciona à articulação entre a pesquisa (método de pesquisa-cuidado), o referencial teórico (Teoria Transpessoal de Jean Watson) e a prática (ações de cuidados efetivadas no momento do encontro). Deste modo, possibilitou a aproximação do ser pesquisador-cuidador com o ser pesquisado-cuidado para a realização das entrevistas.
Em continuidade, definiram-se as prioridades de cuidado, as quais foram pensadas em comum acordo entre os sujeitos da pesquisa. O cuidado se estabeleceu de diferentes formas: ouvindo, estimulando, explicando, orientando, elogiando e tocando.
Afastamento do ser pesquisador-cuidador e ser pesquisado-cuidado
Esta corresponde à quarta fase do método e exigiu sensibilidade de ambos (pesquisadora e ser pesquisado) para indicar o término do encontro, considerando sua finalidade. Tal momento foi preparado durante toda a trajetória metodológica. Assim, ao final dos encontros, o ser pesquisado-cuidado estava preparado para o afastamento do ser pesquisadora-cuidadora.
Análise do apreendido
Na última fase buscou-se apreender o significado dos discursos das mães. Nesta ótica, as informações foram analisadas à luz da Teoria Transpessoal de Jean Watson, utilizando análise de conteúdo como estratégia de apreciação dos dados(11).
RESULTADOS
Procedeu-se à análise dos resultados mediante a interpretação de dados coletados por meio da observação livre e das entrevistas. Após transcrição das falas das entrevistadas, as mesmas foram agrupadas por similaridades de significados os quais desvelaram a relevância e aspectos implícitos na pesquisa.
Caracterização das pesquisadas-cuidadas
As entrevistadas tinham idade entre 18 e 45 anos, as quais, em sua maioria, estavam em união estável. Apenas sete eram mães solteiras, sem qualquer apoio do pai da criança. No referente ao nível de instrução, uma era analfabeta, dez haviam cursado o ensino fundamental, nove, apenas, o ensino médio e uma concluiu o nível superior.
Quanto às atividades profissionais, sete trabalhavam fora de casa, entretanto, após o nascimento da criança, passaram a se dedicar às funções domésticas e, principalmente, ao cuidado da criança. Doze eram donas de casa, uma trabalhava na roça e uma era professora.
No que tange à renda familiar, 17 mantinham-se com até um salário mínimo vigente no país, e quatro delas, entre dois e quatro salários mínimos. Sobre a procedência, 11 eram oriundas de municípios do interior do Estado do Ceará; nove da capital do estado e; uma do Estado do Piauí. No tocante à religião, a maioria se dizia católica. Ademais, dezoito afirmaram não realizar nenhuma atividade de lazer. Dezenove tinham entre um e três filhos e duas mães tinham acima de cinco filhos.
Desconhecimento das mães sobre a doença do filho e enfrentamento
Ao descobrir a doença do filho, a mãe tenta compreender o motivo do adoecimento, os fatores que acarretam o comprometimento da sua condição clínica e o seu real prognóstico, com vistas a melhor programar suas ações. Ela faz uma avaliação constante e vigilante das potenciais alterações.
Na busca por descobrir o motivo do adoecimento do filho, as mães “decoram” a fala do médico, sem, contudo, entendê-la. Outras, porém, demonstram na sua simplicidade de palavras compreender o significado da doença, como mostram seus discursos:
Ele tem miocardiopatia hipertrófica. Um lado do coração dele é mais musculoso e bate muito rápido, aí ele tem arritmia também, e devido à arritmia ele vai ficar em observação e não pode fazer esforço. (Jasmim)
Eu sei que ele tem um sopro e as veias trocadas. Ele operou, fez uma [cirurgia] paliativa para ele ficar bem da respiração, respirar bem e depois, quando ele tiver uns cinco anos, ele vai fazer outra operação. (Acácia)
A falta de informação foi evidenciada e apontada como motivo de angústia, medo e raiva, sobretudo porque as mães tentam fazer parte do processo saúde-doença do filho, mas são excluídas. Para elas, “problema no coração” é algo muito sério, que lhes foge ao domínio:
Pode-se dizer que eu não sei de nada, só sei que é sopro, É ruim você não saber o que é. Como é que eu posso ajudar? (Cravo)
As mães, também, trocam informações com as outras acompanhantes, no intuito de prever o que poderá acontecer com seu filho, e assim melhor compreender a doença. Algumas, porém, acabam repassando informações errôneas. Deste modo, desencadeiam falsas esperanças ou aumentam as angústias:
A mãe de uma criança me falou que doenças no coração são todas iguais. A cura vai depender da idade que foi descoberta a doença. (Hortência)
Permanência com o filho durante o adoecimento
Ter um filho com cardiopatia congênita traz para a mãe momentos de angústia e preocupação. As incertezas acarretam sofrimento, pois o risco iminente de morte do filho é real em seus pensamentos. Não obstante, elas são otimistas e acreditam na recuperação próxima e que esses momentos de dor irão passar, e logo eles estarão em casa começando uma nova vida:
A gente se sente um pouco triste, porque a gente não sabe como vão ser os dias, mas sempre confiando que tudo dê certo. (Flor-de-Lis)
Com certeza eu me sinto muito triste, porque a gente sempre quer ver os filhos da gente bem. Eu queria que eles não tivessem essas coisas. Mas eu quero que ele viva, tenha força e saúde. (Acácia)
Cuidado de si: corpo, mente e espírito
Ao se dedicar por inteiro ao cuidado do filho, a mãe esquece-se de si, das suas necessidades. Teme deixar o filho e acontecer algo ruim enquanto ela está ausente. Assim, permanece ao seu lado, mesmo em prejuízo do atendimento das próprias necessidades básicas, como a nutrição:
Eu não sinto mais fome, tenho muitas náuseas, não tenho mais vontade de me arrumar, se eu pudesse, eu não saía de perto dele [...] (Orquídea)
O sono é outro aspecto comprometido e que as impede de terem uma boa qualidade de vida durante a hospitalização do filho, como pode ser percebido pelas falas nas quais as mães afirmam sentirem dificuldade de dormir. Esta dificuldade é relacionada à ansiedade e tristeza diante do adoecimento do filho:
Faz dias que eu não consigo dormir. Tenho medo de dormir e acontecer alguma coisa. (Violeta)
Ante a situação, a mãe abdica do seu mundo em prol do bem-estar do filho. Sua vida é deixada de lado, sua vaidade, seus objetivos. O que antes era fator essencial, agora se torna apenas uma necessidade superficial em face da importância de cuidar dele. De acordo com os discursos, as mães afirmam não terem tempo para cuidar da aparência pessoal, e que o tempo é dedicado exclusivamente para atender às necessidades do seu bem mais valioso.
Quando questionadas a respeito das suas atividades de lazer, elas revelam estratégias individuais e particulares, como ir à igreja, assistir televisão e conversar com outras mães, atividades estas realizadas no hospital.
Eu me distraio conversando com as meninas Todas aqui são muito unidas. A gente se ajuda muito. (Tulipa)
Enquanto ela está dormindo, eu assisto televisão. Às vezes vou pra missa aqui mesmo, lá na capelinha. (Flor-de-Lis)
Busca pelo conforto espiritual
Como referido, a mãe busca em Deus o apoio para trilhar esse caminho e enfrentar a imprevisível realidade de ter um filho com problema cardíaco. Nesta ótica, a espiritualidade dá significado e sustentação às mães que se veem diante da doença, das mudanças e das perdas tão frequentes. Portanto, para superar a dor de vivenciar a cardiopatia do filho, elas recorrem à fé em Deus:
Eu me sinto preocupada, tão ansiosa com as coisas, mas eu confio em Deus que tudo vai dar certo, e minha filha vai ficar boa. (Orquídea)
Hoje eu estou muito bem, graças a Deus, ela está bem. Agora eu estou rezando para ela vir pro quarto, se Deus quiser. (Violeta)
Hospital: um novo lar
Inegavelmente, a família e a criança com cardiopatia enfrentam problemas, tais como: longos períodos de hospitalização, reinternações frequentes e terapêutica agressiva com sérios efeitos indesejáveis. Conforme as mães/cuidadoras, o hospital é um local hostil ao qual elas não conseguem se adaptar e desenvolver suas atividades normalmente.
Elas relatam dificuldades na infraestrutura, com acomodações inadequadas para ambos, ausência de locais de lazer, ambiente com poluição sonora, sem privacidade e sem conforto. Tais fatores contribuem para o aumento do sofrimento materno durante a permanência no hospital:
E se aqui tiver lotado tem que ficar chamando. Aqui é muito ruim. Todo hospital é ruim. Tem um clima de morte, de doença, de pessoa sofrendo, sem privacidade. (Girassol)
Aqui é bom, só tem muita zuada [barulho], e eu não consigo dormir direito. (Alfazema) Não é muito limpo. Aqui é escuro. A gente não tem o que fazer. Passa o dia assim, não fazendo nada. (Cravo)
Contudo, em determinados discursos, manifestou-se a sensação de segurança por estar no hospital, pois este é um local que transmite confiança, bem-estar físico e emocional:
Eu gosto mais de ficar aqui do que em casa. É tudo muito difícil. Eu tenho muito medo. Aqui eu me sinto segura. (Petúnia)
Aqui é muito bom, tem comida pra gente e pra nossos filhos. As pessoas cuidam dele. EÉ muito bom. (Lírio)
Impressões maternas sobre o cuidado de enfermagem para com o filho cardiopata
Consoante observado, a qualidade do cuidado foi avaliada pelas mães por meio do grau de confiança e simpatia transmitido pela enfermeira; da experiência profissional, conhecimento e habilidades em lidar com crianças; do oferecimento de informações sobre a doença e terapêutica, principalmente no início do tratamento, conforme trechos dos relatos a seguir expostos:
Elas sempre ficam aqui. Elas são muito atenciosas, preocupadas. Às vezes ela vem aqui para ver como ele está. As auxiliares dão a medicação direitinho e a enfermeira de vez em quando vem aqui pra saber da gente. (Amor-Perfeito)
Elas são muito atenciosas, qualquer coisa elas estão ali com a gente, verificando o que está acontecendo. (Jasmin)
Elas cuidam direitinho dela. Me explicam as coisas. (Copo-de-Leite)
Apesar das dificuldades, ao longo da hospitalização do seu filho, as mães/cuidadoras revelam-se satisfeitas. Elas fundamentam essa satisfação no tratamento recebido pelo enfermeiro e equipe de enfermagem durante a trajetória de acompanhamento do filho hospitalizado.
Houve, porém, relatos de descontentamento no tocante ao cuidado prestado ao filho pela equipe de enfermagem, quando afirmam a falta de compromisso dos profissionais com a realização de procedimentos com técnica asséptica, manuseio da criança sem cuidado e falta de comunicação.
Tem umas que vêm trocar a fralda e levantam os pés da criança até o alto, não lavam a mão antes de pegar nela, e isso não pode. (Lírio)
Tem enfermeira que nem fala com a gente. A gente vai perguntar alguma coisa e ela só diz que não sabe. (Hortênsia)
Relação de cuidado entre as enfermeiras e as mães de filhos com cardiopatias
Segundo evidenciado, constata-se a necessidade de um cuidado especial para atender essas mães, buscando contemplar as singularidades dos sujeitos envolvidos a fim de minimizar o sofrimento desencadeado pelo processo de doença e hospitalização.
Para isso, não há um modelo engessado de como promover tal aproximação, mas é preciso sensibilidade e disponibilidade, como mostram os seguintes discursos:
Quando eu estava doente, elas se preocupavam comigo. Eu fiz todos os exames, tomei medicação. (Rosa)
Todos aqui são muito bons. Elas se preocupam comigo e com ele. (Azalea)
Elas são muito boas, fazem de tudo para você se sentir melhor. É muito bom o atendimento aqui. (Íris)
De modo geral, a doença é vivenciada por mãe e filho com intensidade semelhante. Assim, para ser completo e autêntico, o cuidado deve ser oferecido a ambos.
Nos discursos das mães, é apontada, também, a falta de interação entre mães e equipe de enfermagem, pois a mãe não se vê como um ser que necessita de cuidado e também não é vista pela equipe como um ser emocionalmente e fisicamente fragilizado:
Elas cuidam do meu filho, isso é suficiente. Não precisam cuidar de mim. (Acácia)
Elas não fazem nada pra mim não, mas não tem problema, quero é que cuidem do meu filho. (Girassol)
Vale ressaltar que a enfermeira pode promover a reconstituição dos envolvidos no momento de cuidado, pois quando este ocorre de maneira amorosa e gentil permite se adentrar no espaço da pessoa cuidada, estabelecendo uma conexão entre elas e o universo.
DISCUSSÃO
Diante do desconhecimento da doença, cria-se uma expectativa, particularmente por não saber o que pode acontecer, potencializada pela falta de informação. Consequentemente, as mães permanecem em alerta, motivadas pela preocupação e ansiedade.
O impacto da notícia, da comprovação da doença cardíaca do seu filho, até então considerado normal, é uma das etapas mais difíceis de ser enfrentada pelas mães, pois é um evento inesperado, para o qual se requer comportamentos adaptativos, nem sempre disponíveis e nem sempre possíveis. E quase sempre elas estão despreparadas para tal. Mas, com o diagnóstico da doença cardíaca congênita, inicia-se, para a mãe, a vivência do processo de transição de saúde-doença do filho(12).
Conforme se depreende, o medo e a insegurança observados nos relatos decorrem, não raramente, de orientações insuficientes, ou até mesmo ineficientes durante o período de hospitalização das crianças.
Consoante ao sétimo elemento do Processo Clinical Caritas, referente à importância em atender à unidade do ser e dos significados, tentando manter-se dentro do referencial do outro, estabelece-se a verdadeira conexão com o ser cuidado. Deve-se, pois, atentar para as informações e alternativas de ensino para que a pessoa possa autogerir seu cuidado ao reconhecer suas próprias necessidades e exercer o autoconhecimento das suas capacidades(1).
Na utilização deste, o enfermeiro busca, na experiência da mãe, mediante informações oferecidas, instrumentalizá-la para o próprio cuidado, por meio do processo educativo, desenvolvendo uma relação de confiança.
Com isto, vale possibilitar encontros de mães que experimentam situações semelhantes para fortalecer as famílias com reflexos positivos na condução do tratamento da criança. Desta forma, é possível reduzir a ansiedade dos pais aos lhes propiciar o conhecimento da doença, tornando-os capazes de realizar um cuidado adequado e os transformando em multiplicadores de experiências e de melhoria na qualidade de vida desejada para o filho.
Cabe enfatizar que a aprendizagem é mais do que receber informações, é uma relação significativa. E a forma e o contexto de ensino afetam o processo, devendo o conteúdo ser adequado ao nível intectual, simbólico e cultural do paciente(1).
Deste modo, para o enfermeiro, é importante o desenvolvimento de atividades capazes de aliar as experiências das mães com as informações que ele quer transmitir, pois, a partir de uma relação transpessoal, as dificuldades serão mais facilmente superadas.
Quando a criança adoece, todo o significado e sentido de futuro passam a ser ameaçados, levando a mãe a confrontar-se com a possibilidade da perda, do sofrimento e da dor e também com a frustração de não ver seus anseios concretizados. Com isto, o enfermeiro pode iniciar um relacionamento interpessoal permitindo à mãe expressar seus sentimentos, mas sempre respeitando suas dificuldades e limitações.
Ao possibilitar à mãe manifestar seus sentimentos, a enfermeira permite e auxilia o ser cuidado a se reconstituir, ao se encontrar com o sentimento por si mesmo a partir da sua história, considerando-os e propiciando uma relação de cuidado.
A enfermeira com Consciência Caritas pode ser a única a ouvir, ver e aceitar a pessoa por trás das fortes emoções frequentemente presentes na doença, porquanto estimula o paciente a liberar os sentimentos provocados pelo medo, raiva e confusão. It is precisely during this time that the nurse's equanimity (evenness of mind, even under stress) may help them to regain control and stability. É justamente nesse momento que a equanimidade da enfermeira (uniformidade da mente, mesmo sob estresse) pode ajudá-los a recuperar o controle e estabilidade(1).
Assim, ao considerar e compreender os sentimentos das mães de crianças com cardiopatias é possível uma melhor atuação na promoção e manutenção da saúde do ser cuidado.
De acordo com o observado, a busca por melhoria no estado de saúde encontra apoio no nono elemento da teoria, pois, a partir da consciência intencional de cuidado das necessidades básicas, pode potencializar o alinhamento do corpo, mente e espírito, totalidade e unidade do ser em todos os aspectos do cuidado(1).
A enfermeira busca, portanto, o que é essencial ao cuidado humano, procurando a sua potencialidade em todos os aspectos. Neste sentido, a mãe cuidadora, ao estar sensibilizada, tende a se orientar para uma maior preservação do seu corpo e mente, a demonstrar responsabilidade e respeito para consigo.
Com base nisto, recorre à fé e à esperança para aliviar as angústias decorrentes do processo de adoecimento. Assim, ressalta-se que a oração tem significado científico e espiritual, por proporcionar esperança e fé às pessoas nas diversas situações da vida(1).
A mãe, ao buscar a religião, tenta encontrar o apoio para enfrentar os problemas ocasionados pelo adoecimento do filho e assim amenizar o sofrimento de ambos. Isto reforça o abordado no segundo elemento do Processo Clinical Caritas, que estimula a presença da fé e esperança como elementos essenciais no ato de conectar-se com o outro(1).
Para compreender a criança e o acompanhante neste processo de adoecimento, tenta-se também proporcionar, na área física, acomodações adequadas para ambos, pois, para eles, o hospital não é um ambiente agradável e a permanência nesse local representa uma situação incômoda, principalmente quando a internação é longa.
Este aspecto é discutido no oitavo elemento da teoria por apresentar a necessidade de propiciar um ambiente de reconstituição (healing), potencializando o conforto e dignidade em todos os níveis, seja físico e não físico(1).
Durante o cuidado são essenciais habilidades e competência ontológica no cuidar humano, e não somente a técnica em si. Deste modo, o profissional deve ser reflexivo, habilidoso ao se conectar com o outro com vistas à confiança e segurança(1).
Evidentemente, na organização do trabalho, existem fontes de pressão, dificuldades e desafios susceptíveis de causar sofrimento para a mãe e seu filho. Neste sentido, procuram-se estratégias para otimizar o cuidado prestado, já que um profissional impaciente gera intolerância de quem dele espera uma atitude de conforto.
Esta é a proposta do quarto elemento do Processo Clinical Caritas, o qual busca desenvolver e conservar a relação de confiança no cuidado autêntico por meio de atitudes que têm o significado de verdadeiro interesse, tornando-se importantes cuidados como sorriso, postura do corpo, toque carinhoso e capacidade de ouvir(1).
Com base no exposto, reforça-se que o enfermeiro utiliza na sua relação de cuidado a comunicação verbal e não verbal de modo a estabelecer harmonia entre cuidador e ser cuidado. E, ao demonstrar respeito pelos sentimentos das mães, ele desenvolve relação de cuidado, constituída de respeito e honestidade. Promove assim, aceitação positiva do outro.
Isto complementa o discutido no primeiro elemento da teoria, qual seja: praticar valores humanistas como a gentileza e equanimidade dentro do contexto de cuidado, abordando o amor como sentimento possível ao enfermeiro para se abrir ao outro e, com ele, estabelecer uma convivência e uma comunhão(1).
No cuidado transpessoal de enfermagem tanto o profissional como o ser sob seus cuidados são sujeitos dessa relação. Eles se transformam e são transformados durante a concretização do cuidado. Portanto, se requer do profissional o uso de estratégias adequadas a cada situação(13).
Implicações para a enfermagem
Este estudo tem implicações positivas para o cuidado de enfermagem, pois possibilitou a implementação do modelo teórico-metodológico proposto por Jean Watson no cuidado à mãe de criança com cardiopatia congênita, juntamente com uma abordagem inovadora, a pesquisa-cuidado. Deste modo, compreender as vivências de mães de crianças com cardiopatias representou um desafio, o qual foi superado com esforço e dedicação.
Como se percebeu, promoveram-se atividades fundamentadas não só no conhecimento científico, mas no cuidar transpessoal em uma relação de envolvimento do ser-pesquisado e ser-pesquisador.
CONCLUSÃO
De acordo com o evidenciado, cuidar de um filho com cardiopatia envolve aspectos emocionais, sociais, espirituais e econômicos. Para a mãe, conviver com a cardiopatia significa vivenciar um processo de transformação e sofrimento, decorrente, sobretudo, das mudanças ocasionadas no núcleo familiar.
Ainda como evidenciado, a Teoria Transpessoal de Jean Watson demonstrou afinidade com o objetivo do estudo, o qual se mostra, além de uma teoria de enfermagem, um modo de ser com o outro, proximidade, empatia, interação e compromisso. Busca sempre a autonomia e valorização do indivíduo.
Acerca das limitações do estudo, destaca-se a dificuldade de interagir os conceitos da Teoria de Watson com a prática de enfermagem, já que a ausência das suas proposições no norteamento dos currículos de enfermagem resulta na não formação de enfermeiros aptos a desempenharem o papel que Watson lhes atribuiu.
Ressalta-se, no entanto, que a aplicabilidade da Teoria do Cuidado Transpessoal possibilita ao enfermeiro que cuida, em unidades pediátricas de cardiologia, melhor compreender a experiência da mãe como cuidadora e como ser que necessita de cuidado. Ao mesmo tempo, favorece o direcionamento do olhar para o cuidado humanístico.
Como proposta de humanização para o cuidado à mãe de criança com cardiopatia, os enfermeiros podem aplicar os elementos do Processo Clinical Caritas, com vistas a um cuidar humanístico, capaz de amenizar o sofrimento dessas mães, reduzindo suas ansiedades e preocupações.
Propõe-se, também, que as instituições formadoras de enfermeiros incluam em seus planos pedagógicos o cuidado transpessoal, o qual ajuda o profissional a expandir sua visão de mundo e sua habilidade de pensamento crítico.
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Recebido: 02/04/2012
Aprovado: 12/11/2012