CONSULTA PUERPERAL: DEMANDAS DAS MULHERES SOB A PERSPECTIVA DA ENFERMEIRA - ESTUDO EXPLORATÓRIO

 

 

Kleyde Ventura de Souza¹, Patrícia Regina Quinsacara Carvalho² Adelita Gonzalez Martinez Depinote³ Valdecyr Herdy Alves4, Bianca Dargam Gomes Vieira5 , Bruno Augusto Corrêa Cabrita6

 

1 Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais;2,3 Universidade Católica do Paraná;4,5,6 Escola de Enfermagem da Universidade Federal Fluminense

 

 

 

RESUMO:

Objetivos: A pesquisa teve como objetivo conhecer as necessidades de saúde da puérpera na perspectiva da enfermeira, considerando a integralidade das ações. Método: Foi realizada uma pesquisa do tipo Exploratório. Participaram 15 enfermeiras que realizavam consultas de puerpério, em nove unidades de saúde do Distrito Sanitário Cajuru da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba/Paraná, Brasil. Para coleta de dados utilizou-se um instrumento com questões objetivas, aplicado no período de fevereiro a março de 2007. Os dados foram analisados com base em estatística descritiva. Resultado: Verificou-se que o conjunto de necessidades de boas condições de vida foi o mais apontado 41,2 %, e os menos citados: necessidades de garantia de acesso à tecnologias, 4% e de acolhimento e vínculo com o profissional/equipe de saúde, 2%. Discussão: Pode-se indagar sobre como a noção de integralidade está sendo incorporada nas consultas puerperais. Conclusão: Ainda persistem lacunas importantes no atendimento às necessidades das puérperas.

Palavras-chaves: Puerpério; saúde da mulher; bem-estar materno.

 

 

Introdução

 

A enfermagem materna tem como foco a mulher no ciclo reprodutivo, seu filho e família. A profissão tem desenvolvido conhecimentos, competências, habilidades e ferramentas para compreender as mulheres no seu contexto e em suas demandas. Assim, as enfermeiras deste campo de prática e de conhecimento têm um papel importante no fortalecimento de modelos de atendimento em saúde, que respondam as necessidades das mulheres e das famílias contemporâneas(1). Entretanto, a qualidade da prática assistencial no período puerperal ainda é influenciada, entre outros fatores, pela formação profissional baseada no modelo biomédico, o que determina que o sentido da atenção seja a clínica (2).

Para contribuir com a superação deste fato, no âmbito das ações em saúde nos processos da gestação, do parto e do puerpério, o Ministério da Saúde (MS) instituiu em junho de 2000, o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN). Este Programa tem como objetivo melhorar a qualidade da assistência e garantir que a mulher passe a ser vista como sujeito do seu processo de saúde(3).

O PHPN foi aderido maciçamente pelos municípios brasileiros, entre eles, Curitiba/Paraná. A proposta desenhada pelo Programa estabeleceu a consulta puerperal como critério indispensável ao conjunto da assistência, considerando que esta atividade, em nível nacional tem tido baixa freqüência nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Um dos fatores a serem analisados é que, os serviços e os profissionais da saúde consideram o parto como o final do processo, dirigindo suas ações para o recém-nascido. Em conseqüência, não valorizam o retorno das mulheres ao serviço de saúde, a não ser como mães, já que nesta condição são fundamentais, tendo em vista a responsabilidade no cuidado dispensado à criança(3). Outros fatores apontados situam-se na falha de planejamento e de execução da assistência ao puerpério e no viés de gênero na percepção dessa atenção pelos profissionais de saúde(2).

Diante desse contexto exposto e do potencial do saber-fazer da enfermeira no campo da saúde materna depreende-se que esforços devem ser realizados para que as necessidades dessas mulheres sejam compreendidas e atendidas, no sentido da promoção de qualidade de vida e saúde. Para tanto, questionou-se: quais as necessidades de saúde apresentadas por puérperas, na perpsectiva da enfermeira levando-se em conta a integralidade das ações em saúde? Para respondê-la delimitou-se como objetivo conhecer as necessidades de saúde da puérpera na perspectiva da enfermeira, considerando a integralidade das ações.

Este artigo originou-se de um estudo que buscou orientar um padrão de qualidade da consulta de enfermagem à puérpera com base na promoção à saúde utilizando a Classificação Internacional para as Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva (CIPESCâ) e, assim, inserida no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), 2006-2007, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

Estudo exploratório, utilizando a Teoria de Intervenção Prática de Enfermagem em Saúde Coletiva (TIPESC). Seus momentos, inter-relacionados, compreendem a captação da Realidade Objetiva (RO); a interpretação da RO; a construção do projeto de intervenção na RO; a intervenção propriamente dita e a reinterpretação da RO(4).  Este estudo aborda o momento da captação da RO.

O campo empírico foi constituído por nove, das 12 Unidades de Saúde (US) pertencentes ao Distrito Sanitário Cajuru, da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba (SMS). 

A população constitui-se de 27 enfermeiras que realizavam consultas de puerpério. Desse conjunto, participaram voluntariamente, 15, isto é 55,5% da população delimitada, escolhidas aleatoriamente, respeitando-se os seguintes critérios de inclusão: tempo de serviço igual ou superior a seis meses e efetiva realização de consulta puerperal na sua rotina assistencial. Foram excluídas as enfermeiras que no período de coleta de dados encontravam-se afastadas de suas atividades profissionais.

Os dados foram coletados nos meses de fevereiro a março de 2007, por meio de um formulário aplicado pelas pesquisadoras, contendo questões fechadas e com possibilidade de comentários da entrevistada. As perguntas foram organizadas a partir de uma tipologia composta por cinco grandes conjuntos de necessidades em saúde e suas respectivas formas de expressão(5) (Quadro1), sendo que para cada um desses conjuntos, as participantes podiam apontar uma ou mais formas de expressão. 

 

Quadro1 – Necessidades em Saúde e suas formas de expressão(5) Curitiba, fev-mar, 2007.

Conjuntos de Necessidades

Expressões

Necessidade de boas condições de vida.

Viver em sociedade; ter acesso a lazer, alimentação, moradia, transporte e viver em meio ambiente adequado.

 

Necessidade de ser alguém com direito à diferença.

Ser sujeito de direito e cidadã; igual e nominal; ser incluída e respeitada em suas necessidades especiais e poder exercitar seus direitos sexuais.

 

Necessidade de autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida.

Tomar decisões com ligação entre o saber e o fazer e com respeito a sua opinião.

 

Necessidade de garantia de acesso as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida.

Participar de grupos de educação e/ou informação em saúde; ter acesso a medicamentos, insumos e a métodos de contraceptivos de escolha; exercício de direitos reprodutivos; acesso à re-internação.

 

Necessidade de ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde.

Ser bem acolhida em qualquer serviço que necessitar; ter acesso e ser recebida em qualquer serviço de saúde que necessitar; possuir vínculo com o serviço e com a equipe e/ou profissional.

 

Os dados foram organizados em planilha eletrônica. A análise foi feita com base em estatística descritiva e as discussões a partir de referencial bibliográfico relativo ao tema. 

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, parecer nº 1389 CEP- PUCPR, tendo sua viabilidade aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Estudos em Saúde da SMS de Curitiba/Paraná. As participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), para adesão à pesquisa ressaltando-se a garantia de sigilo e a possibilidade da retirada de consentimento, em qualquer momento, atendendo às Diretrizes da Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (CNS/MS).

 

RESULTADOS

 

Os dados relativos ao objetivo do estudo foram identificados considerando-se os conjuntos de necessidades em saúde e suas respectivas formas de expressão (Quadro 1): a) boas condições de vida; b) ser alguém com direito à diferença; c) autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida; d) garantia de acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida; e) ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde(5;6).

A distribuição das freqüências referentes aos conjuntos de necessidades em saúde encontra-se na Tabela 1.

 

Tabela 1 – Distribuição da freqüência do conjunto de necessidades das puérperas, sob a perspectiva da enfermeira. Curitiba, fev-mar, 2007.

Conjunto das Necessidades de Saúde *

   Freqüência

        Percentual

Necessidade de boas condições de vida.

42

41,1%

Necessidade de ser alguém com direito à diferença.

35

34,3%

Necessidade de autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida.

19

18,6%

Necessidade de garantia de acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida.

04

4,0 %

Necessidade de ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde.

02

2,0%

Total

102

100%

 

* Somatória das formas de expressão que constituíram cada um dos conjuntos de necessidades em saúde.

Verificou-se que o conjunto de necessidades de “boas condições de vida” foi o mais apontado em 41,1% das respostas, seguindo-se da necessidade de “ser alguém com direito à diferença”, 34,3%; e à necessidade de “autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida”, 18,6 %. Foram menos apontadas, respectivamente, a necessidade de “garantia de acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida”, 4,0%, e a necessidade de “ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde”, 2,0%. Assim, os conjuntos de necessidade de boas condições de vida e de ser alguém com direito à diferença totalizaram 75,5%, enquanto os demais, 24,5%.

Cada conjunto de necessidades constituiu-se do que se denominou de formas de expressão. O conjunto de necessidades relacionadas às condições de vida englobou quatro formas de expressão. O conjunto de necessidades de ser alguém com direito à diferença compreendeu seis formas de expressão. O conjunto de necessidades de garantia de acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida foi formado por cinco formas de expressão; já o conjunto relativo à necessidade de ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde teve quatro formas de expressão e, finalmente, o conjunto de necessidades de autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida, duas formas de expressão. Esses cinco grandes conjuntos de necessidades encontram-se na Tabela 2.

 

Tabela 2 – Distribuição da freqüência das formas de expressão dos conjuntos das             necessidades em saúde das puérperas, sob a perspectiva da enfermeira.            Curitiba, fev– mar, 2007.

Formas de expressão das Necessidades de Saúde*

Freqüência Absoluta (FA)

Freqüência Relativa (FR)

n

%

%

Necessidades de boas condições de vida:

 

 

 

Moradia

6

 

14,2

Alimentação

7

 

16,6

Transporte

3

 

7,1

Lazer

10

 

24

Meio ambiente adequado

5

 

12

Viver em processos sociais de inclusão

11

 

26,1

Total da Classe

42

 

100

Necessidade de ser alguém com direito à diferença

 

 

 

Ser sujeito de direito e cidadã

6

 

17,1

Ser igual

7

 

20

Ser nominal

2

 

5,7

Ser respeitada em suas necessidades especiais

6

 

17,1

Ser incluída

8

 

23

Demanda de exercício dos direitos sexuais

6

 

17,1

Total da Classe

35

 

100

Necessidade de autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida

 

 

 

Tomar decisões com respeito a sua opinião

10

 

52,7

Tomar decisões com ligação entre o saber e o fazer

9

 

47,3

Total da Classe

19

 

100

(*) Para cada um desses conjuntos, as participantes podiam apontar uma ou mais formas de expressão                                                                                                                   

 

Formas de expressão das Necessidades de Saúde*

Freqüência Absoluta (FA)

Freqüência Relativa (FR)

n

%

%

Necessidade de garantia de acesso à todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida

 

 

 

Participar de grupos de educação e/ou informação em saúde

2

 

50

Ter acesso a medicamentos e insumos

2

 

50

Total da Classe

04

 

100

Necessidade de ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde

 

 

 

Ser bem acolhida em qualquer serviço que necessitar

2

 

100

Total da Classe

02

 

100

 

Em relação as formas de expressão dos dois conjuntos de necessidades em saúde mais citados, quais sejam, necessidades relacionadas às condições de vida e necessidade de ser alguém com direito à diferença observou-se que no primeiro as formas de expressão mais apontadas foram viver em processos sociais de inclusão (26,1%). Pode-se inferir a influência desta forma de expressão sobre as demais, do mesmo conjunto, que foram citadas na seguinte ordem: lazer (24%); alimentação (16,6%); moradia (14,2%); meio ambiente adequado (12%) e transporte (7,1%).

Quanto ao segundo conjunto de necessidades em saúde mais referidos, verificou-se que as formas de expressão mais apontadas foram: a necessidade de ser incluída (23%) e ser igual (20%). Estas expressões parecem ter influência sobre as outras três desse conjunto de necessidades, que apresentaram equivalência: ser sujeito e cidadã (17,1%); ser respeitada nas necessidades especiais (17,1%) e exercício de direitos sexuais (17,1%); além da necessidade de ser nominal, que foi a menos citada (5,7%).

Em relação aos três conjuntos de necessidades em saúde menos citados encontram-se a necessidade de autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida, a forma de expressão de maior proporção foi tomar decisões com respeito a sua opinião (52,7%). A necessidade em saúde de garantia de acesso a todas as tecnologias e necessidade de ser acolhida e ter vínculo com o profissional ou equipe de saúde foram pouco citados; 4% e 2%, respectivamente. No primeiro conjunto obteve 50% de indicações para as seguintes formas de expressão: participar de grupos de educação e/ou informação em saúde e ter acesso a medicamentos e insumos. No segundo conjunto e o menos citado, a forma de expressão ser bem acolhida em qualquer serviço que necessitar foi a mais apontada.

 

DISCUSSÃO

 

A consulta puerperal configura-se numa estância em que se deveria desvincular a saúde da mãe da saúde do recém-nascido, caracterizando-se, prioritariamente, num importante momento da saúde da mulher(1;3) e, de outro, na conjugação dos campos de prática e de conhecimento da saúde da mulher e da saúde materna. Foi nesse momento particular da ação em saúde, que se procurou conhecer as necessidades de mulheres, num momento singular de suas vidas, sob o ponto de vista de enfermeiras, por meio das formas de expressão das necessidades de saúde.

As necessidades em saúde de puérperas e suas respectivas formas de expressão(3;5)  nas perspectivas de um grupo de enfermeiras constituíram-se no objeto desse estudo. Cabe ressaltar que as necessidades humanas, por si, consubstanciam uma discussão teórica e prática muito complexas.

Seu conceito é explicado, em momentos históricos diferentes, com origem na natureza humana ou na cultura. A necessidade pode ser concebida na perspectiva disciplinar da filosofia, da psicologia, da economia e da sociologia, entre outros, com matrizes funcionalistas (em que a necessidade é prolongamento do organismo humano que emerge de um processo de aprendizagem e socialização) ou interpretativas (em que a necessidade possui caráter social diretamente relacionado à historicidade) (7).

Neste sentido, apreender as necessidades do ponto de vista conceitual e concretizá-las no cotidiano do campo da saúde é um desafio, na medida em que se reúnem na mesma arena a complexidade desta conceituação, sua compreensão e incorporação pelos profissionais, bem como a mediação entre seus elementos(5;6).  Este contexto pode esbarrar na dimensão ético-política que norteia as ações de rede de serviços, a qual influencia o processo de trabalho no espaço particular das instituições de saúde.

Em relação ao conjunto de necessidades relacionadas às condições de vida, este se expressa em vários modelos assistenciais do campo da saúde. Apontando assim, para um contexto problemático que se concretiza na falta ou dificuldade de acesso a aspectos essenciais da vida dos indivíduos, que estão presentes e/ou determinam os processos de adoecer ou manter-se saudável(2;7). Neste conjunto, destacaram-se as formas de expressão viver em processos sociais de inclusão e o lazer, fato que nos remeteu à questão da desigualdade e das injustiças sociais que marcam o cenário brasileiro.

O Brasil é reconhecidamente um país desigual e injusto. Essa situação é facilmente constatável quando se considera seus grandes centros urbanos. Neles, invariavelmente, observam-se espaços de pobreza e miséria que cercam “ilhas” de acumulação de riqueza. Essas situações de desigualdade e injustiça somadas às desigualdades/iniqüidades de gênero representam um grande ônus para a sociedade e, para as mulheres, de forma especial. O resultado deste processo é a falta de autonomia e poder, com conseqüências nefastas à saúde sexual e reprodutiva e à qualidade de vida deste grupo populacional(6).

Pode-se inferir ainda, a influência desta forma de expressão sobre outras (alimentação, moradia; meio ambiente adequado e transporte), como constatado nesse estudo. Estas necessidades extrapolam as práticas técnico-assistenciais em saúde e passam a exigir ações, que articulem e integrem setores determinantes da saúde e da vida, exigindo também, a compreensão sistêmica do problema, valorização do pensamento intuitivo, valores de cooperação e parceria, além do exercício em rede, de forma que se privilegiem os relacionamentos entre os(as) atores(as) de uma determinada situação social(7). Cabe ressaltar que os valores citados são considerados direitos e que, numa relação interpessoal, estão ligadas intrinsecamente ao reconhecimento de que a parceria é um elemento fundamental entre os integrantes de um grupo(3).

O grupo, necessidade de ser alguém com direito a diferença, apareceu como o segundo mais apontado pelas enfermeiras. Exemplos que expressaram esse conjunto foram definidos como: ser sujeito de direitos e cidadania; ser igual, nominal, respeitado nas necessidades especiais e ser incluído(5).

À luz desses resultados pode-se evidenciar que as enfermeiras entrevistadas reconhecem que as necessidades de saúde das puérperas não se reduzem à prevenção e ao controle de doenças. Salienta-se a importância de questões relacionadas à cidadania e à saúde, bem como a convergência entre ambas. O enfoque deve voltar-se para a necessária superação da idéia da mulher como objeto e na sua urgente incorporação como sujeito social, de forma que se possa ampliar sua participação e autonomia em nível familiar e local e, assim, suas necessidades ganhem visibilidade nesses contextos, fortalecendo, assim, a construção de sua cidadania.

A integralidade, um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), talvez o mais desafiador deles, reafirma o sentido do trabalho em saúde e em enfermagem ao remontar a humanidade das pessoas em relação às suas necessidades de saúde(1;6). Este princípio manifesta-se na prática, a partir de três conjuntos de sentidos. O primeiro refere-se à aplicação de políticas públicas ou de respostas a problemas de saúde, isto é, a articulação entre ações preventivas e assistenciais, com vistas ao controle e prevenção de doenças. O segundo conjunto volta-se à organização dos serviços de saúde e, finalmente o terceiro incide sobre as práticas em saúde(5).

Chamou a atenção o fato de que os terceiro, quarto e quinto conjuntos de necessidades foram menos referidos em relação aos dois primeiros. Pode-se inferir, num primeiro momento, que essas necessidades encontram-se contempladas, muito embora esta inferência mereça questionamentos; ainda que se inscrevem em campos encobertos por mazelas sociais, notadamente, as desigualdades sociais e de gênero, com conseqüências negativas para a saúde e qualidade de vida deste grupo populacional, em particular.  

Assim, destaca-se que os conjuntos de necessidades relacionadas à autonomia e autocuidado, garantia de acesso a tecnologias e de acolhimento por parte da equipe profissional foram referidos quatro vezes menos que aos demais. Poder-se-ia indagar sobre como a noção de integralidade está sendo incorporada neste tipo de prática em saúde.

A análise destas necessidades e, conseqüentemente as ações/intervenções delas originadas demandam a (re)construção e incorporação de práticas em saúde que fortaleçam a conquista da autonomia das mulheres, em particular no que se refere à ampliação do seu conhecimento, bem como no desenvolvimento da sua confiança para o autocuidado e na escolha do seu modo de fazer “andar” a vida.

Uma questão a ser ressaltada refere-se às condições concretas de existência dessas mulheres, tendo em vista que muitos dos problemas e necessidades têm origem fora dos sujeitos. Neste sentido deve-se avançar do espaço tomado de forma individualizada para o coletivo, isto é, as ações precisam deslocar-se para os espaços de determinação do processo saúde-doença: esferas do processo produtivo, do trabalho doméstico, do micro ambiente familiar, enfim, processos coletivos, na medida em que estes extrapolam necessidades identificáveis a nível individual(7).

A tecnologia em saúde engloba um conjunto complexo de elementos que adquirem um valor social ou valor de uso e tem sua importância sublinhada a partir da necessidade e do momento singular em que vive cada pessoa(8). Partiu-se da constatação que as tecnologias produtoras de cuidado – núcleo central da atenção à saúde – podem ser organizadas nas dimensões materiais ou não do fazer em saúde, podendo ser circunscritas em terrenos denominados de: a) leve: tecnologias relacionais, como a formação de vínculos; acolhimento e gestão; b) leve-dura: saberes estruturados que operam no processo de trabalho e, c) dura: representado por equipamentos tecnológicos, bem como pelas normas e estruturas organizacionais(5). A enfermagem compreende que as tecnologias, separadamente, não podem responder a complexidade do processo saúde-doença, necessitando de um redimensionamento equilibrado das competências técnicas, científicas e relacionais, no sentido da humanização e comprometida com a  construção de cidadania(8).

O saber-fazer da enfermeira no campo da saúde da mulher e da consulta puerperal deve considerar o uso de tecnologias leves ou relacionais, na medida em que estas podem propiciar a construção de relações em que sujeitos reais (enfermeiras e puérperas), em situações reais (contexto de vida e saúde) tenham condições de identificar necessidades e vislumbrar caminhos de superação. Alem disso, relações que se baseiam na escuta do usuário e na boa qualidade de atendimento profissional, reforçam e favorecem o vínculo entre usuário e os serviços de saúde(9).

Ressalta-se que, em estudo realizado no Pará, foi percebido que na visão das mulheres, dentre os profissionais da equipe de saúde, as enfermeiras proporcionam mais escuta, mesmo frente à realidade da sobrecarga nas atividades diárias(10), o que leva a crer que esta tecnologia, embora considerada incipiente, vem sendo apropriada paulatinamente pela enfermagem. 

Finalmente, o último grupo que foi o menos citado, referiu-se as necessidades de ser acolhida e ter vínculo com um profissional ou equipe de saúde. Nesse conjunto de necessidades não foram citados: ter acesso e ser recebida em qualquer serviço de saúde que necessitar; possuir vínculo com o serviço e possuir vínculo com a equipe e/ou profissional.

Nota-se então, que do ponto de vista de suas bases programáticas a organização da assistência encontra-se, em tese, contemplada. No entanto, o mesmo pode não ser afirmado quando se considera o processo de trabalho, no sentido da qualificação da relação e do espaço de interseção entre profissionais e usuárias na perspectiva da humanização, do resgate da cidadania e do empowerment, assim como da integralidade das ações, com vista à promoção da saúde e atendimento das necessidades das mulheres envolvidas.

Nesta perspectiva, o acolhimento e a formação de vínculos são aspectos fundamentais para o saber-fazer da enfermeira, devendo ser construídos no ir-fazendo, nas dimensões concretas e abstratas que caracterizam o viver-fazer saúde.

 

CONCLUSÃO

 

Verificou-se que os conjuntos de necessidades de boas condições de vida e de ser alguém com direito à diferença foram três vezes mais apontados que os conjuntos de autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar” a vida; garantia de acesso às tecnologias que melhorem e prolonguem a vida; e de ser acolhida e ter vínculo com o profissional e equipe de saúde.

Quanto aos primeiros pode-se sublinhar que as entrevistadas reconheceram que as necessidades de saúde das puérperas não se reduzem a prevenção e ao controle de doenças, refletindo uma superação do conceito funcionalista de necessidade humana. Salienta-se a importância de questões relacionadas à cidadania e à saúde, bem como a convergência entre ambas.

Nessa perspectiva, o enfoque recai para a necessidade de se ir além do ideário da mulher como objeto e na sua urgente incorporação como sujeito social, de forma que possa ampliar sua participação e autonomia em nível familiar e local e assim, suas necessidades ganhem visibilidade em contextos local e global, fortalecendo a construção de sua cidadania.

Quanto aos conjuntos menos referidos, se de um lado pode-se inferir que essas necessidades encontram-se contempladas e de outro, que se inscrevem em campos encobertos por mazelas sociais, notadamente, as desigualdades sociais e de gênero, adquirindo pouca visibilidade, embora com conseqüências negativas para a saúde e qualidade de vida deste grupo populacional, em particular. 

Considerando o atual cenário brasileiro e os indicadores, no que se refere à saúde da mulher e à saúde materna, pode-se indagar sobre como a noção de integralidade está sendo incorporada neste tipo de prática em saúde. As diferenças percentuais entre os conjuntos de necessidades indicam que, do ponto de vista da integralidade das ações, ainda persistem lacunas importantes.

Recomenda-se que as enfermeiras, no seu saber-fazer, com vista a um cuidado de qualidade, humanizado, culturalmente sensível às necessidades das mulheres, avancem na incorporação do sentido de integralidade em sua prática profissional e considerem a importância da multi/interdisciplinaridade e da intersetorialidade das ações em saúde.

 

REFERÊNCIAS

 

1.    Souza KV, Cubas MR, Arruda DF, Carvalho PRQ, Carvalho CMG. A consulta puerperal: demandas de mulheres na perspectiva das necessidades sociais em saúde. Rev Gaúch Enferm 2008 jun; 29 (2): 175-81.

2.    Almeida MS, Silva IA. Necessidades de mulheres no puerpério imediato em uma maternidade pública de Salvador, Bahia, Brasil. Rev Esc Enferm USP. 2008 jun;  42(2): 347-54.

3.    Brasília. Secretaria de Políticas de Saúde, Área Técnica da Saúde da Mulher. Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento: informações para gestores e técnicos. Brasília: Ministério da Saúde (BR), 2000.

4.    Egry EY. Saúde Coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo: Ícone; 1996.

5.    Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Ed. UERJ; 2001. p. 113-26.

6.    Souza KV, Tyrrell MAR. Os fatos & atos relacionados ao (difícil) exercício dos direitos sexuais e reprodutivos: em recortes, o Processo. Texto & Contexto Enferm. 2007 jan/mar; 16(1): 47-54.

7.    Moysés SJ, Moysés ST, Kempel MC. Avaliando o processo de construção de políticas publicas de promoção de saúde: experiência de Curitiba. Ciênc. Saúde Coletiva.  2004 jul/set; 9(3): 627-41.

8.    Gomes AMT, Oliveira DC. A enfermagem entre os avanços tecnológicos e a inter-relação: representações do papel do enfermeiro. Rev Enferm UERJ. 2008 abr/jun; 16(2): 156-61.

9.    Lima YMS, Moura MAV. A percepção das enfermeiras sobre a competência social no desenvolvimento da assistência pré-natal. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2008 dez; 12(4): 672-8.

10. Lima AL, Fernandes R. Quality of life in the mediate puerperium: a quantitative study. Online Braz J Nurs. [serial on the Internet] 2010 jun; [cited 2011 fev 9] Avalaible from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2010.2815

 

 

 

Recebido: 19/01/2012

Aprovado: 11/04/2012