FAMILIAR COM DEPENDÊNCIA QUÍMICA E CONSEQUENTE SOBRECARGA SOFRIDA PELA FAMÍLIA: PESQUISA DESCRITIVA
Elias Barbosa Oliveira1, Jovana Lucia Schettini Medonça2
1 Universidade do estado do Rio de Janeiro;2 Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro
RESUMO
Problema: profissionais de saúde devem oferecer suporte à família do dependente químico devido à sobrecarga sofrida nesse processo. Objetivo: Objetivou-se analisar as dificuldades enfrentadas pela família no tratamento do familiar com dependência química. Método: Estudo qualitativo descritivo. Utilizou-se a entrevista semi-estruturada mediante um roteiro e no tratamento dos dados a análise de conteúdo. Participaram do estudo 05 famílias em um hospital psiquiátrico público situado no município do Rio de Janeiro (Brazil), em 2007. Resultados: as famílias relataram como dificuldades o abandono do tratamento pelo paciente e a recaída, a sobrecarga emocional e o não encaminhamento aos serviços extra-hospitalares pela equipe de saúde. Conclusão: Concluiu-se que há necessidade de maior articulação dos serviços de atenção primária e secundária em Saúde Mental, de modo a minimizar as dificuldades enfrentadas pela família. A família que cuida do dependente químico possui papel social importante e indispensável na consolidação da reforma psiquiátrica no país.
Palavras-chaves: Relações familiares, transtornos relacionados ao uso de substância,
serviços de saúde mental, saúde mental, enfermagem.
INTRODUÇÃO
Esse artigo surgiu a partir das reflexões sobre a problemática da internação de pacientes com diagnóstico de dependência química em hospital psiquiátrico. Em nossa experiência como enfermeiros atuando em um hospital psiquiátrico, constatamos que pelo fato de o serviço não dispor de área privativa para o dependente químico, gerava nos familiares descontentamento e questionamentos pelo fato de o paciente, durante a internação, conviver com pacientes com quadros psiquiátrico severos, o que na percepção da família poderia contribuir para o isolamento do paciente e a não adesão ao tratamento. Acrescenta-se que alguns pacientes, após a alta hospitalar tinham recaída, acarretando no núcleo familiar sobrecarga emocional, social e financeira(1) em função de conflitos gerados na família e devido a procura por atendimento em unidades psiquiátricas do município; considerando que a unidade não dispunha de serviço de emergência psiquiátrica.
Apesar de a Lei 10.216/2002, legitimar o direito aos usuários de serviços e aos que sofrem de transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas, a universalidade de acesso e assistência em unidades especializadas(2), os próprios usuários se ressentem da dificuldade de acesso aos serviços extra-hospitalares devido à distância geográfica e até mesmo a inexistência de tais serviços em alguns municípios.
Portanto, é imprescindível a ampliação da rede ambulatorial e o fortalecimento de iniciativas que propiciem a criação de equipamentos intensivos e intermediários entre o tratamento ambulatorial e a internação hospitalar, com ênfase nas ações de reabilitação psicossocial do indivíduo com diagnóstico de dependência química que deve receber tratamento em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), incluídos os Centros de Atenção Psicossocial Alcool e Drogas (CAPS-ad), numa perspectiva voltada para a atenção básica na comunidade com participação da família.
Geralmente, o dependente químico tem dificuldade em sustentar as estruturas familiares funcionando, devido a problemas relacionados à regulação das relações e dos afetos; daí o papel da família, tanto na criação de condições relacionadas ao uso e / ou abuso de drogas como na construção de fatores de proteção, pois a família passa os seus valores e as suas crenças através das gerações, sendo a fonte primária de acolhimento para os seus membros. Pelo fato de ser corresponsável pela formação dos indivíduos, a família está diretamente implicada no desenvolvimento saudável ou adoecido de seus membros(3).
Há situações, em que a família pode ser fator complicador na recuperação do paciente devido à organização e aos papéis desempenhados por seus membros. É importante que os profissionais compreendam os arranjos e as condições de cada grupo, no intuito de construir vínculos e laços de solidariedade, em um espaço privativo e pouco confortável para os trabalhadores de saúde mental que não têm respostas prontas para oferecer. A intervenção junto aos familiares visa não apenas instrumentalizá-los como cuidadores, mas como pessoas que também precisam ser cuidadas, de modo a minimizar a sobrecarga emocional por meio da oferta de espaços acolhedores e facilitadores de ações e de troca de experiências cuidadoras(4).
A partir do exposto, há necessidade da ampliação dos dispositivos de cuidado em saúde mental que possibilitem o acolhimento de usuários e familiares pela enfermagem e demais profissionais de saúde mental diante da sobrecarga emocional, financeira e social acarretadas pela dependência química, de modo a potencializar a adesão do paciente a terapêutica instituída e fortalecer vínculos.
O objetivo do estudo foi analisar as dificuldades enfrentadas pela família no acolhimento do familiar com dependência química.
MÉTODO
Pesquisa de campo, qualitativa descritiva, que buscou compreender um problema na perspectiva do sujeito que o vivenciou, ou seja, partiu de sua vida diária, suas satisfações, desapontamentos, surpresas e outras emoções(5). Participaram do estudo 05 famílias de pacientes em regime de internação, sendo adotado como critério de inclusão o fato de já terem vivenciado outras internações decorrentes da recaída do dependente químico.
A coleta de dados ocorreu no segundo semestre de 2007, em um hospital psiquiátrico público situado no município do Rio de Janeiro. Utilizou-se a técnica de entrevista semi-estruturada, mediante a aplicação de um roteiro contendo questões que possibilitaram aos familiares, discorrerem acerca das dificuldades enfrentadas diante da dependência química do familiar. Os depoimentos foram gravados em mp3 e transcritos em sua íntegra para posterior análise.
As entrevistas foram realizadas individualmente na própria unidade de internação, sendo agendadas com antecedência e iniciadas após os familiares tomarem ciência do parecer emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/HUPE/UERJ - 1704) e assinarem o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em atenção a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Garantiu-se o anonimato dos participantes e ratificou-se que poderiam se retirar da pesquisa em qualquer fase. Esclareceu-se que os resultados do estudo seriam apresentados em eventos e publicados em revistas de cunho científico. Na construção do corpus do texto foram adotadas as seguintes convenções: entrevistado (letra F) seguida de um número de acordo com a ordem de entrada no texto.
RESULTADOS
Ainda que mudanças sejam constantes na estrutura familiar brasileira(6), especialmente na última década, e, mesmo havendo mitos, valores e tabus a respeito de estruturas familiares que divergem do modelo tradicional (família nuclear), o uso indevido de drogas no âmbito familiar não se associa diretamente(3) ao tipo de estrutura que a família apresenta. Assim, depreende-se que o papel da família é mais importante sob a perspectiva de prevenção e tratamento da dependência química, do que atribuir à estrutura familiar a relação de causa.
Nesse sentido, é relevante identificar a percepção da família acerca da dependência química em seu núcleo e os mecanismos de manejo adotados diante da sobrecarga emocional, social e econômica com o objetivo de acolher o grupo em seu sofrimento.
[...] Gostaria que meu filho voltasse pra casa sem aquela necessidade de usar drogas, mas sei que não é fácil. Isso é uma doença, dependência e isso não se cura do dia para noite. Depende muito da vontade dele. Ele tem que querer. (F1)
[...] A questão dela com as drogas também está muito ligada às influências. O namorado também usa droga e não adianta dizer para não namorar. Mas sei também que problemas com drogas não é tão fácil de resolver assim. Depende muito dela, de sua força de vontade. (F2)
[...] Queria que ele (paciente) tomasse consciência de seu problema e criasse forças para parar de beber. É uma questão que depende mais dele do que de qualquer outra pessoa. O médico não pode fazer isso por ele. Eu não posso. Só ele pode, e, parar de beber é muito difíci.l (F5)
[...] Ele sempre foi isso aí. Fica pela casa, quieto, não fala muito, não se interessa por fazer nada. Eu só queria mesmo que ele parasse com as drogas e com a bebida. Gostaria que ele arrumasse um emprego, mas sei que não dá. (F4)
O desconhecimento dos serviços extra-hospitalares: caps-ad
Apesar de a Lei 10.216/2002(2), possuir em seu bojo diretrizes e ações que legitimam a criação e a manutenção nos serviços de atenção secundária estratégias de articulação com os dispositivos extra-hospitalares, evidenciou-se nos depoimentos que a família não recebeu orientações pertinentes e claras a respeito do encaminhamento e continuidade do tratamento do dependente químico. Diante desta realidade, a família pode ver na internação do paciente em hospital psiquiátrico a única solução para os problemas decorrentes da recaída.
Dessa forma, a internação pode ser vista pelo dependente químico como um meio seguro para se proteger daquilo que ele não está conseguindo controlar. O afastamento temporário do território, por meio de tratamento programado e estruturado, poderá contribuir para que o indivíduo possa repensar sua vida e questões que dizem respeito à família, o trabalho e amigos, visto que provavelmente todas as áreas do seu existir são afetadas pela dependência química(9).
Considerando que as informações fornecidas nos encontros entre profissionais e familiares nem sempre atende aos anseios do grupo, o enfermeiro(6) deve considerar a inclusão da família do dependente químico em suas intervenções, aproximando-se de seus membros por meio de ações educativas e visitas domiciliárias, haja vista que o apoio social promove autonomia dos sujeitos diante dos processos sobre seu estado de saúde. A família necessita de suporte em todas as fases do tratamento, principalmente após a alta hospitalar do familiar, momento em que o dependente químico poderá se encontrar vulneral a manutenção do estado de abstinência.
Acrescenta-se ainda o clima emocional(1) com sentimentos de estresse, raiva, insegurança e solidão vivenciadas pela família por não saber como lidar com alguns comportamentos apresentados pela pessoa em sofrimento psíquico como, por exemplo, o silêncio excessivo, episódios de agitação e agressividade.
Deste modo, os familiares precisam ser vistos como um grupo que necessita de apoio e orientação para lidar com o impacto gerado pelo sofrimento psíquico de longa duração em seu núcleo familiar, que inegavelmente acarreta alteração nas atividades cotidianas e no orçamento familiar. Sem esses recursos, a família, provavelmente, continuará sentindo-se desamparada e desassistida, não tendo condições de cuidar do paciente grave no âmbito familiar e tornando insustentável a permanência deste em casa(10).
CONCLUSÃO
Evidenciou-se que a família concebe a dependência química como uma doença que necessita de tratamento em hospitais psiquiátricos, não fazendo menção aos serviços extra-hospitalares como CAPS-ad na medida em que, não tem recebido por parte dos profissionais informações claras e pertinentes sobre o acesso e a importância destes serviços em relação à continuidade do tratamento e a prevenção de recaída. Portanto, o enfermeiro deve trabalhar a família na perspectiva de manutenção do paciente em seu território com o objetivo de ajudá-lo a gerenciar a retomada de suas atividades após a alta e a continuidade do tratamento em um CAPS-ad mais próximo do território.
Cabe ao profissional de saúde intervir junto ao grupo, no intuito de refletir sobre a dependência química como uma doença sim, mas que não implica obrigatoriamente em internação, salvo nas situações em que a droga acarreta quadros psicóticos graves acompanhados de delírios, alucinações e agitação psicomotora com riscos para a integridade física e psíquica do paciente e família.
Apesar de o abandono do tratamento e consequente recaída do dependente químico causar sentimentos de frustração e impotência na família, é imprescindível que o enfermeiro ratifique junto aos familiares que se trata de um evento esperado, ou seja, um sintoma de que o paciente ainda não se encontra curado, no intuito de minimizar sentimentos de fracasso e culpa. Pelo fato de o paciente vivenciar a necessidade de parar ou de continuar a consumir determinada droga, o papel da família é essencial no sentido de apoiá-lo, evitando observações críticas, hostilidade e superenvolvimento emocional, que aumentam as chances de recaída.
Tendo em vista as dificuldades enfrentadas pela família no acolhimento do dependente químico após a alta hospitalar, o profissional de saúde deve incluí-la como parte do tratamento, o que poderá minimizar o sentimento de desamparo e favorecer o suporte no que diz respeito às orientações e encaminhamentos aos serviços extra-hospitalares, que poderão contribuir para minimizar as crises geradas no núcleo que desestabilizam as relações, aumentam o sofrimento psíquico e o isolamento social do paciente e família.
Aliado a essa estratégia, está o conhecimento do profissional sobre as implicações da dinâmica familiar em relação à dependência química; da necessidade de avançar nas formas de tratamento destas pessoas, do individual para o âmbito das relações familiares e, sobretudo, da possibilidade de inserir esta família no processo terapêutico. Outras intervenções que podem ser sistematizadas pelos serviços de atenção secundária junto aos familiares são o preparo para a alta do paciente com a participação da equipe, a realização de grupos de famílias com histórico de dependência química e a terapia familiar com o objetivo de fortalecer vínculos e consequente adesão do paciente ao tratamento após a alta hospitalar.
REFERÊNCIAS
1. Pegoraro RF, Caldanha RHL. Sobrecarga de familiares de usuários de um centro de atenção psicossocial. Psicol. Estud. [serial on internet]. 2006, [cited 2010-06-17]; 11(3): 569-77. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722006000300013&lng=en&nrm=iso.
2. Ministério da Saúde (BR). A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.
3. Schenkerl M, Minayo MCS. A implicação da família no uso abusivo de drogas: uma revisão crítica. Rev. Ciência & Saúde Coletiva 2003; v 8: 299-06.
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5. Minayo MCS, Deslandes SF. Gomes, R. Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade.19ª ed. Petrópolis (RJ): 2001.
6. Lima H.Braga V.Gubert F. Interface between gender and mental health in the voice of alcoholics: qualitative study Online Brazilian Journal of Nursing [serial on the Internet]. 2010 August 20; [Cited 2011 July 21]; 9(2):[about ## p.]. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2010.2907/665. Date accessed: 21 Jul. 2011.
7. Organização Mundial de Saúde. WHO Library Cataloguing-in-Publication Data (Genebra). Neurociência: consumo e dependência de substâncias psicoativas. [serial on the internet]. 2004 [cited 2010 june 14]; 34p. Available from: http://www.who.int/substance_abuse/publications/en/Neuroscience_P.pdf
8. Taveira MC, Luis MAV. A motivação inicial para a busca do tratamento da dependência química. In: Luis MAV, Pillon SC. Pesquisas sobre a prática da assistência a usuários de álcool e drogas no Estado de São Paulo. Ribeirão Preto (SP). Fundação Instituto de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2004. p.263-68.
9. Ferreira FGKY, Luz JÁ, Obrzut-neto L, Santos KA. Uma visão multiprofissional humanizada da pessoa com dependência química em enfermaria psiquiátrica de um Hospital Geral no Paraná. Rev Cogitaire Enferm [serial on the internet]. 2005 [cited 2010 november 3]; 10:54-2. Available from: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/cogitare/article/viewFile/5009/3787
10. Mello R. A construção do cuidado à família e a consolidação da reforma psiquiátrica. Rev. Enfermagem UERJ 2005; 13:390-5.
Recebido: 21/07/2011
Aprovado: 27/12/2011