A prática da episiotomia: estudo qualitativo descritivo sobre as percepções de um grupo de mulheres

 

Chang Yi Wey1, Natália Rejane Salim2, Hudson Pires de Oliveira Santos Junior3, Dulce Maria Rosa Gualda4

 

1Hospital Universitário, Universidade de São Paulo.

2,3,4Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.

 

Resumo

Este estudo teve como objetivo compreender a experiência e as percepções de um grupo de mulheres em relação à prática da episiotomia no momento do parto. Trata-se de um estudo qualitativo descritivo, realizado em hospital de ensino de São Paulo. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas com a participação de 35 multíparas, que tiveram partos com e sem episiotomia. A análise permitiu a identificação das seguintes categorias: Depende do tamanho do bebê, facilita o parto; Depende de cada mulher; A mulher não fica aberta; e A Episiotomia não é necessária. Os relatos mostram que existe falta de esclarecimento e conhecimento em relação a esta prática, o que faz com que o papel de decisão acabe nas mãos dos profissionais. Conclui-se que é importante no panorama profissional o conhecimento das evidências cientificas, a conscientização vinculada aos direitos das usuárias e o respeito as suas individualidades.

Descritores: episiotomia; assistência à saúde; enfermagem obstétrica.

 

Introdução

Diante dos diferentes momentos histórico-assistenciais, as práticas de atenção à mulher no momento do parto e nascimento vêm sendo modificadas. A institucionalização do parto do último século trouxe uma gama de procedimentos de rotina, que resultaram na medicalização do processo de nascimento.

No quadro indiscriminável do uso destes procedimentos e do grande número de intervenções desnecessárias com impacto negativo sobre a morbi-mortalidade perinatal, passou-se a refletir sobre a prática obstétrica na perspectiva da medicina baseada em evidências, que tem como proposta o uso criterioso, consciente e explícito de práticas exitosas, de forma que estas guiem as decisões assistenciais tomadas no atendimento ao indivíduo(1-2).

No Brasil, as recomendações do Ministério da Saúde buscam promover a prática obstétrica baseada em evidências como compromisso profissional indispensável para promoção da saúde(3), cujas diretrizes estão em conformidade com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), dentre as quais o guia “Assistência ao Parto Normal: um guia prático”(1).

Tal publicação apresenta um conjunto de práticas que visam à promoção do parto e nascimento saudáveis e a prevenção da mortalidade materna e perinatal. As práticas assistenciais estão categorizadas nos seguintes grupos: A) referentes às práticas que são utilizadas e que devem ser encorajadas; B) práticas consideradas ineficazes e que devem ser abandonadas; C) práticas que são utilizadas, porém necessitando serem aprofundadas, devendo, por isso, serem utilizadas com cautela; e D) práticas que são utilizadas freqüentemente, porém inapropriadas(1). Dentre os itens que compõem esta última categoria destacamos o item “Uso rotineiro da episiotomia”, que será o objeto deste estudo. 

A episiotomia se caracteriza por uma incisão perineal, com o objetivo de aumentar o canal vaginal, constituindo-se como uma prática de uso rotineiro na assistência ao parto.  A recomendação da Organização Mundial da Saúde é o uso restrito da episiotomia, sem ultrapassar a freqüência de 10% dos casos, sendo indicada apenas em casos de sinais de sofrimento fetal, progressão insuficiente do parto; ameaça de laceração de terceiro grau (incluindo laceração de terceiro grau em parto anterior)(1).  

Evidências científicas mostram que o uso rotineiro da episiotomia está associado a vários efeitos adversos como, secção ou extensão da secção para o esfíncter anal, resultados anatômicos insatisfatórios, prolapso vaginal, fistulas retrovaginais, aumento de perda sanguínea e hematoma, dor e edema, infecção e deiscência e disfunção sexual. Porém, o uso adequado e restrito apresenta bons resultados, como o menor risco de traumatismo perineal e vaginal, menos complicações de cicatrização, incontinência urinária, dispareunia entre outros(1).   

Todavia, ainda é comum na prática o uso da episiotomia sem indicação clínica. Estudos mostram que os profissionais da saúde permanecem arraigados a conceitos que se diferenciam dos resultados das evidências cientificas. Em agravo a esse ponto, os profissionais não explicam os procedimentos clínicos para as mulheres e seus familiares, configurando-se como desrespeito à cidadania, pois sem conhecer as implicações e as evidências científicas que sustentam cada procedimento, as mulheres não possuem capacidade para optar sobre a conduta clínica e assim ficam passivas a escolha determinada pelo profissional(4).

Assim, a importância do processo de integração das evidências de pesquisa, com a experiência clínica do profissional e os valores do paciente(2), decidimos conduzir este estudo com o objetivo de compreender as percepções das mulheres acerca da episiotomia, para que dessa forma possa ser ampliada a visão sobre o processo assistencial, favorecendo a eliminação de barreiras na implementação de uma assistência científica e humanisticamente adequada.

 

Metodologia

Optou-se por um estudo qualitativo descritivo pela possibilidade de captar a maneira pela qual as pessoas pensam e reagem frente às questões focalizadas, assim é possível conhecer as experiências das pessoas, os significados que dão e como descrevem e interpretam o que vivenciam em um determinado processo e contexto.

Foi desenvolvido na seção de Alojamento Conjunto (AC) do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP), que está inserido no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo uma instituição de referência para as unidades básicas de saúde pertencentes à Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã, região oeste no município de São Paulo.

Como critério de inclusão das participantes, estabeleceu-se: multíparas que tiveram seus filhos de parto vaginal no HU-USP, e que tenham tido experiência de partos com a realização da episiotomia. Como critério de exclusão adotou-se: mulheres com intercorrências no puerpério e falta de disponibilidade para participar do estudo. Para compor o grupo de participantes os pesquisadores, primeiramente, consultaram a relação de mulheres internadas na maternidade, que haviam tido partos vaginais. Revisando os prontuários, verificava-se que essas mulheres haviam tido parto vaginal com episiotomia no parto atual ou em parto anterior, sendo esse dado também confirmado pessoalmente com as puérperas.

Assim, o grupo de participantes deste estudo foi constituído por 35 mulheres, sendo estas identificadas de E1 a E35 no corpo do trabalho, para garantir o anonimato. Das 35 participantes, 24 tiveram episiotomia em parto anterior e 08 entrevistadas tiveram essa intervenção na internação atual, concomitante ao período de coleta de dados desse estudo. A idade das colaboradoras variou de 22 a 41 anos. O grau de instrução vai do ensino fundamental incompleto ao ensino médio completo. Com relação ao estado civil, a maioria respondeu que convive em união consensual. No que se refere à ocupação, a maioria das entrevistadas exerciam atividades remuneradas como vendedoras e empregadas domésticas.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas, o local utilizado para a realização foi uma sala reservada, no próprio AC, por se tratar de um local privativo onde a mulher poderia se expressar sem receios. As entrevistas tiveram duração média de 40 minutos e foram conduzidas por um roteiro de questões norteadoras, a saber: Conte-me como foi seu parto? No seu parto foi precisou cortar embaixo (episiotomia)? Em sua opinião, para que serve esse corte? Quem tomou a decisão de fazer o corte? O que você achou disso? Comparando com os seus partos anteriores, você nota alguma diferença na assistência dos profissionais relacionada a este procedimento?

Após a transcrição e releituras do conteúdo das entrevistas, estas foram analisadas à luz do método de análise de conteúdo, modalidade temática. Decorrente a análise foram identificados diversos temas, dentre eles encontram-se os relacionados à percepção sobre o procedimento de episiotomia.

Com relação aos critérios éticos o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HU-USP sob nº de protocolo 639/06, e seguiu as normas da Resolução 196/96 e da Declaração de Helsinki.

 

Resultados

A análise dos dados possibilitou a visualização de quatro categorias temáticas relacionadas à prática da episiotomia, a saber: Depende do tamanho do bebê, facilita o parto; Depende de cada mulher; A Mulher não fica aberta; e a Episiotomia não é necessária.  

Dependendo do tamanho do bebê, facilita o parto

As mulheres relacionaram a necessidade de realização de episiotomia ao tamanho do bebê:

Eu acho que depende do neném, quando é grande tem que cortar, e quando é pequeno não é preciso cortar. Eu penso assim! (E30).

 

As mulheres associam o tamanho do bebê com possíveis dificuldades no momento do período expulsivo, por esse motivo acreditam que a episiotomia aumenta a passagem.

No meu ponto de vista o corte é pra ajudar, pra não correr o risco de chegar na hora e o neném ser grande e não passar, ou não ter uma passagem [...]. Não sei, eu penso isso (E29). Depende do tamanho da criança, do jeito que fica lá embaixo, o meu neném foi grande, nasceu com 4.095gramas [...] (E34).

 

Assim, houve uma percepção que o parto sem episiotomia impõe maior sofrimento à mulher. O fato de não ter sido realizada a episiotomia é visto como agravante do momento pela qual a mulher passou.

Eu acho que facilita porque se a gente tiver que fazer toda a força sozinha para o nenê sair acho que ia sofrer muito mais, eu tentei fazer ela sair sem ter que cortar, eu não tava mais agüentando de dor e não tinha como ela sair. (E1)

 

Houve a percepção de uma melhor assistência recebida devido à realização da episiotomia no momento do parto. Fato que algumas vezes não ocorreu devido à rapidez da evolução do trabalho de parto, onde a falta de tempo hábil para a realização desse procedimento gera um temor na mulher.

Do primeiro parto cortaram, já do segundo não deu tempo pra nada. Do primeiro eu achei bom. O corte deve dar uma bela duma ajudinha! Do segundo como foi muito rápido fez um certo estrago,depois teve que aplicar anestesia e costurar. No caso, sou adepta ao cortezinho, se necessário. Acho que o corte ajuda. (E26)

Depende de cada mulher

A realização da episiotomia no parto foi percebida como uma intervenção necessária para algumas mulheres enquanto para outras não.

Todos os meus partos eu levei o corte, eu acho que tem mulher que precisa cortar. E tem umas que não precisam. Depende da mulher. (E11)

Eu acho que algumas mulheres não precisam de pontos, vai de cada uma. (E22)

 

Apesar de considerarem que o corpo da mulher é que determina a necessidade ou não da episiotomia, algumas participantes afirmaram que a decisão é do profissional. Assim, é o profissional quem avalia e decide pela realização da episiotomia, com a justificativa que essa intervenção ajuda o bebê a nascer mais rápido. As mulheres apresentam dúvidas em relação à necessidade da episiotomia e lembram que esse procedimento não era realizado em outras épocas.

Se eles acha melhor, tem que fazer, depende do médico. Porque ele acha que não tem espaço pra passar, corta pra passar mais rápido. É o médico que decide, na hora da dor a gente não decide nada. Às vezes eu fico em dúvida, por que antes ninguém levava pontos. Tem mulher que não leva ponto porque tem mais passagem e as outras levam o ponto porque não tem passagem. (E13)

 

Outra participante relata que não conseguiu entender porque a amiga teve partos sem a realização da episiotomia. A episiotomia foi vista como uma intervenção que ajudou no momento do parto e pela percepção dessa participante, ela foi realizada somente em situações necessárias.

É bom cortar, pra dar uma ajudinha. Eu tenho uma amiga que teve 4 filhos, tudo normal e nenhum ela levou pontos, aí eu nem sei como explicar o porquê. Pros meus 3 eu levei e não sei como é o que não leva, que nasce normal, de natureza mesmo sem precisar levar nenhum ponto. Ela falou que nasceu, acabou, não tem dor nenhuma mais no corpo, só o sangramento normal. Eu acho que cortam porque precisa. Imagine se não precisasse? Ninguém cortava. Eu penso assim: se precisa, corta; se não precisasse, não ia cortar. (E16)

 

Os relatos apontam que a justificativa dada pelos profissionais para a realização da episiotomia foi que o bebê não iria nascer sem esse procedimento. Incômodos e a impossibilidade de uma recuperação mais rápida devido à realização da episiotomia foram lembrados.

Eu não gosto, do primeiro parto eu tomei bem menos pontos, e desse o médico falou: "É vamos ter que cortar, é necessário, senão não passa”. Foi ruim, mas se precisa tem que fazer [...], incomoda muito depois e demora a voltar ao normal. (E3)

A Mulher não fica aberta

As mulheres apontaram que a necessidade da alguma sutura da região perineal estava sempre presente, seja devido à episiotomia ou pela ocorrência de roturas resultantes da passagem do bebê. O fato de um parto não necessitar de nenhuma sutura gerou estranheza, pela crença que não havia possibilidade que o bebê nascesse sem causar algum tipo de rotura ou laceração no períneo materno. Essa cultura da necessidade dos pontos estava tão inserida no universo das mulheres, que quando ocorre um parto sem necessidade de sutura, este é visto como uma exceção.  

Eu não tive parto sem ter que costurar, sem levar ponto, dos três eu precisei. Teve mulheres que me falaram que tiveram neném e não precisou levar ponto, eu acho meio esquisito, porque bem ou mal ele te abre, te rasga. Vai ficar com aquele negócio aberto? Acho meio esquisito, já pensou, um buracão!! (E2)

 

A crença de que a mulher “fica larga” se não houver a sutura do períneo no parto também foi citada. O fato de não ter sido realizado nenhuma sutura no parto apareceu também como uma razão para a mulher ter algum problema no futuro, decorrente da multiparidade.

Acho que o corte na hora ajuda. As pessoas lá no norte falam que as mulheres que tem filho e não é ponteada nem nada, fica larga, não sei como que é [...]. Quem tem muito filho e está com útero baixo é porque não levou ponto, nem nada. Acho que é bom levar ponto por isso. (E9)  

Episiotomia não é necessária

Nesta categoria, em contrapartida as percepções até então apresentadas, as participantes relatam a prática da episiotomia como desnecessária, verbalizando que preferiam o parto normal sem esse procedimento, mas não se sentiram seguras para exigir isso ao profissional que as atendia. O desconforto e o sofrimento resultantes da episiotomia foram relatados, apontando que a realização da episiotomia não trouxe os benefícios que lhes foram atribuídos.  

Depois é muito ruim, a gente sofre muito. Na primeira eu achava que ia adiantar alguma coisa cortar, que ia ajudar. Acho que não ajuda porque eu tive esse sem cortar [...]. (E4)

No segundo parto teve corte e desse não teve. Acho que é melhor não fazer o corte. Dói muito, incomoda muito na hora que põe o absorvente incomoda demais. (E7)

Como desse eu não tive ponto, estou ótima, posso andar, posso fazer força, então todo mundo fica contente quando não leva ponto. É bem menos desconfortável. (E10)

Essa entrevistada relata ser contra a realização da episiotomia, visando o bem-estar da mulher. Além do sofrimento resultante do procedimento, as conseqüências da episiorrafia foram referidas, como o temor da primeira evacuação no puerpério e o medo de alguma cobrança por parte dos profissionais quanto à higiene no local.

Eu acho que machuca muito. É mais um sofrimento, acho que não deveria cortar, na minha opinião. Quando leva ponto, você tem uma porção de medos, medo de espirrar, medo de ir ao banheiro, depois o médico vem cobrar que você tem que evacuar no banheiro. Então junta aquele medo e aquela responsabilidade que você tem com o médico. Mil vezes melhor sem pontos. Bom, no meu caso foi! (E25)

Contrariamente às algumas outras percepções, entrevistadas relatam que a dor no momento do parto não foi atenuada com a realização da episiotomia e que a recuperação no pós-parto sem episiotomia é melhor.

Todos teve [corte], só desse último que não. Eu acho que não precisar fazer corte. Na hora do parto é igual, dói do mesmo jeito. Sem corte é melhor por que a gente não fica sofrendo depois com dor no ponto. Bem melhor sem pontos que aí não fica doendo. (E33)

O desconforto decorrente da presença de pontos na região perineal foi sentido e em alguns casos ele teve com conseqüência alterações no local, descritas como: irritação ou sensibilidade maior.

Dessa aqui não precisou nada, sem ponto é bem melhor. Os pontos incomodam pra andar, sentar, pra colocar absorvente, pra mim mesmo até hoje eu sinto o local dos outros pontos, que tem tempo de lua que coça, dói, parece que tem umas bolhinhas que quer inflamar, depende do absorvente dá alergia, então eu acho que é bem melhor sem. (E19)

Outra questão levantada é a falta de esclarecimentos quanto aos procedimentos que estavam sendo realizados no momento do parto. Algumas participantes não sabem informar se foi feita a episiotomia ou se houve uma rotura espontânea do períneo, somente percebeu um desconforto maior durante a sutura.

Eu só senti na hora que tava costurando depois do parto, que aí começava a doer e eu falava pra eles que tava doendo. Não sei se rasgou ou se cortaram, porque tá cheio de pontos e dói um pouquinho. (E34)

Todos os partos foram normal, mas ninguém chegou a falar: vou cortar um pouco, nunca passei por isso. Lembro que na hora eles falavam, olha mãe vou dar uns pontinhos, não sei como é; se rasga ou se corta. (E10)

 

Discussão

A trajetória da prática da episiotomia na assistência ao parto foi disseminada na classe médica e teve o seu o apogeu na metade do século XX. Inicialmente, esse procedimento que tinha um uso seletivo e terapêutico, com o tempo tornou-se uma intervenção profilática, perdendo o caráter de indicação necessária e adquirindo o caráter rotineiro, indicada principalmente em primíparas(5).  

Decorrente de questionamentos gerados pelos resultados das evidências científicas atuais, a tendência é ter o uso da episiotomia cada vez mais restrito, ou seja, apenas em indicação clinica sugerida por adequada avaliação profissional sobre a condição perineal da mulher. Os movimentos feministas também influenciaram fortemente essa tendência ao uso restrito do procedimento, defendendo os direitos das mulheres a uma maior autonomia quanto ao seu processo de parturição, assim como uma mudança de atitude e de posição da mulher no momento do parto(5).

Contudo, a prática da episiotomia, como representada nesse estudo, ainda está profundamente inserida no universo cultural tanto dos profissionais, quanto das usuárias das instituições hospitalares. Uma mudança dessa realidade demanda grande investimento por meio de conscientização e educação em saúde, paralelamente as ações governamentais para promoção da humanização da assistência.

Pesquisa realizada através de levantamento retrospectivo nos livros de registros do Centro Obstétrico do HU-USP no período de abril de 2001 a abril de 2002 verificou uma freqüência de 91,5% de episiotomia realizadas nos 1.837 partos normais ocorridos(6). A constatação do declínio na freqüência da realização da episiotomia na instituição é demonstrada em um segundo levantamento realizado durante o ano de 2006, onde foi encontrada uma freqüência de 44,7% de episiotomias realizadas nos 1.774 partos normais atendidos no ano(7). Esses índices ainda estão muito acima dos preconizados tanto pela OMS em 10%(1).

Em estudo que também verificou que a episiotomia ainda é um procedimento que apresenta índices elevados, as autoras relacionam o resultado ao fato do local estudado ser um hospital escola, o que faz com que o procedimento seja praticado com a finalidade de ensino, ao uso abusivo de indução durante o trabalho de parto e a posição materna durante o terceiro período (decúbito dorsal)(8). Contudo, mesmo sendo uma instituição de ensino, na qual os estudantes precisam experienciar o procedimento para desenvolver habilidade manual necessária para executá-lo, não se pode perder a noção da prática da episiotomia como indicação clínica e não rotina institucional.

Quando a episiotomia está indicada para todas as primíparas como também para as multíparas com episiotomia anterior, o procedimento torna-se rotina hospitalar, sendo realizado em todos os partos, sem uma análise individual realizada para cada parturiente(8).

As participantes, deste estudo, associaram a necessidade de realização de episiotomia com o tamanho do bebê, como uma forma de facilitar o parto e evitar que o bebê “rasgue” a região perineal. Pode-se observar nas falas que as mulheres acreditam e temem que o introito vaginal torne-se mais largo e fique aberto com a passagem do feto e por isso crêem que a episiotomia deve ser realizada. Para outras participantes a realização ou não desta prática deve estar vinculada com as particularidades de cada mulher, com as diferenças corporais, e ao fato de algumas terem passagem e outras não e por este motivo necessitar da intervenção.  

É possivel observar que a realização da episiotomia e a necessidade de sutura nos partos normais ainda está profundamente relacionada à percepção que estas mulheres possuem em relação à assistência durante o parto. A falta de mais esclarecimentos sobre o processo gerou insegurança na mulher, o que fez com que elas não questionassem as condutas, nem exigissem seus direitos. 

Apenas algumas mulheres relataram que o procedimento não é necessário e que poderia ser abolido, estas justificaram mediante a dor e incômodo perineal que os pontos causam durante o período pós-parto. Outras participantes não tinham opinião formada quanto à necessidade e justificativa para a realização da episiotomia, o que mostra que a decisão acaba nas mãos dos profissionais.  

A dor e o incômodo no puerpério mostrou ser importante nas mulheres que tiveram episiotomia, pois afeta a vida das mulheres nas atividades do cotidiano e em ações simples como sentar e levantar. Um estudo  sobre a sexualidade no período puerperal mostra que as mulheres que tiveram episotomia  sentiram dor, desconfortos e dificuldades no retorno a vida sexual ativa(9).

Estudo qualitativo sobre a visão de mulheres a respeito da episiotomia identificou que as participantes não receberam informações sobre a episiotomia em momento algum antes do parto. Aquelas que receberam relataram que foi através de amigas e familiares que passaram pela experiência. As mulheres mostraram desconhecimentos sobre as indicações do procedimento e em relação ao próprio corpo. O estudo mostrou que existe um dominío sobre o corpo da mulher por parte do profissional, o que revela a necessidade do resgate da autonomia da mulher no processo do nascimento(4).

É imperioso que os profissionais tenham suas práticas respaldadas pelas evidências científicas, analisando individualmente a necessidade de realização da episiotomia. Torna-se importante a busca de alternativas para prevenir o trauma perineal, como posição lateral durante o expulsivo, puxo espontâneo em contraposição ao dirigido e redução do uso indiscriminado de ocitocina(8).

Na antropologia aspectos teóricos relativos aos relatos acima mencionados foram amplamente discutidos, sob a denominação de conhecimento autoritativo. Derivado do modelo biomédico, o conhecimento autoritativo traz a noção incorporada de superioridade do sistema técnico, resultando na padronização de condutas e desfavorecendo aos profissionais a mudança de práticas ritualizadas e arraigadas. Estas práticas são comunicadas nos encontros entre os profissionais e seus clientes, e as pessoas que não as seguem, são consideradas ignorantes, retrogradas ou ainda causadoras de problemas(10).  

Como foi possível ver neste estudo, algumas das participantes não sabiam se havia sido submetida a episiotomia, sabiam apenas que haviam sido suturadas. A falta de maiores esclarecimentos faz com que a população confie plenamente nas decisões dos profissionais de saúde, renunciando aos seus direitos como usuários dos serviços de saúde. Aliado a falta de orientações em todo o processo assistencial, está a questão histórica do papel esperado dos usuários dos serviços de saúde, que é o de receptor das ações, não lhe cabendo nenhuma autonomia para decidir sobre condutas a serem tomadas para o seu tratamento.

O desenvolvimento tecnológico na assistência ao parto é mundialmente crescente. O conhecimento técnico-cientifíco trouxe avanços no cuidado à mulher, por outro há abusos no uso tecnológico e desvalorização das crenças de quem recebe a intervenção(5).  Versões atuais da tomada de decisão baseada em evidências têm enfatizado que a evidência da pesquisa em si não é um guia puramente adequado para a ação. Em vez disso, os profissionais devem aplicar seus conhecimentos para avaliar o problema do paciente, incorporando os resultados das investigações e as preferências ou valores do paciente, para assim proceder com a melhor interveção possível(2).

 

Conclusão

Sabe-se que as práticas dos profissionais que atuam diretamente na assistência ao parto devem estar respaldadas pelas evidências científicas atuais. No entanto, faz-se necessário levar em consideração as necessidades de cada mulher e de se respeitar seus desejos e suas opções em relação aos procedimentos no processo de nascimento. Para isso torna-se essencial que as mulheres tenham conhecimento sobre as práticas recomendáveis e se sintam empoderadas participando do processo de forma ativa. Torna-se importante que os profissionais que atuam diretamente na assistência obstétrica adotem uma postura de conscientizadores e difusores de informações para as mulheres, incorporando atividades educativas na prática profissional, realizando atividades de preparação para o parto durante o pré-natal e estando dispostos a esclarecer as dúvidas das mulheres, ajudando-as a ter consciência sobre o próprio corpo no momento do parto e desta forma a fazer suas próprias escolhas.

O cuidado neste âmbito deve ter como fundamento o respeito à fisiologia, a segurança do parto e a contribuição para que a mulher tenha uma experiência significativa. Uma transformação nesse panorama só se dará a partir de uma conscientização dos direitos das usuárias, mudança no comportamento dos profissionais e amplos esclarecimentos à população sobre os processos fisiológicos do nascimento.

 

Referências

1.      Organização Mundial da Saúde. Assistência ao parto normal: um guia prático. Genebra: OMS; 1996.

2.      Barratt A. Evidence Based Medicine and Shared Decision Making: the challenge of getting both evidence and preferences into health care. Patient Educ Couns 2008; 73(3): 407-12.

3.      Ministério da Saúde. Brasil.. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.

4.      Previatti JF, Souza KV. Episiotomia: em foco a visão das mulheres. Rev. bras. enferm. 2007; 60(2): 197-201.

5.      Carvalho CCM, Souza ASR, Moraes Filho OB. Episiotomia seletiva: avanços baseados em evidências. FEMINA 2010; 38(5): 265-270.

6.      Scarabotto LB. Uso da enzima hialuronidase na prevenção de lacerações perineais no parto normal [dissertação]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2004.

7.      Wey CY. Ações humanizadoras na assistência ao parto: experiência e percepção de um grupo de mulheres em um hospital-escola [dissertação]. São Paulo: Escola de Enfermagem da USP; 2007.

8.      Oliveira MJV, Miquilini EC. Freqüências e critérios para indicar a episiotomia. Rev Esc Enferm USP. 2005; 39(3): 288-95.

9.      Salim NR, Santos Junior HPO, Gualda DMR. Everyday behavioral and physical changes in women during the postpartum period: a qualitative approach. Online Braz J of Nurs. [internet]. 2010 abril 22 [citado 28 fev 2011]; 9(1): [about 8 p.]. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/2785

10.  Jordan B. Birth in four cultures. London: Eden Press; 1983.

 

Contribuição dos Autores

Todos os autores contribuíram para esse estudo da seguinte maneira: Chang Y. Wey (coleta de dados, pesquisa bibliográfica, concepção e desenho, análise e interpretação, escrita do artigo) Natália R. Salim e Hudson P.O. Santos Junior (análise e interpretação e escrita do artigo), Dulce M.R. Gualda (concepção e desenho, análise e interpretação, escrita do artigo, análise crítica e aprovação final).