Column: Black woman health

Coluna: Saúde da mulher negra

Reduzir o número de morte de mulheres negras no período perinatal: por uma prática baseada em evidência para resolver a mortalidade materna no Brasil 

Reducing Black Women's Death during Perinatal Period: Evidenced-Based Practice to Addressing Maternal Mortality in Brazil

Isabel CF da Cruz*

* Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra - NESEN/UFF. Membro titular do Comitê Técnico sobre Saúde da População Negra - Ministério da Saúde. 

Resumo. Este artigo (re) apresenta alguns dados associados com a mortalidade materna tendo como referencial a prática clínica (e de gestão do sistema de saúde) baseada em evidência para mais uma vez informar profissionais e gestores do SUS sobre o problema e, quem sabe, facilitar a tomada de decisão.

Palavras-chave: mulheres; negros; racismo; sexismo; mortalidade materna

Abstract . The perinatal period has become a focal point for risk assessment and health promotion in women's healthcare. This paper discusses the role health professionals and managers can undertake to improve Black women's health in the perinatal period through the detection and management of institutional racism and sexism.

Keywords: women; blacks; racism; sexism; maternal death

Breve descrição do contexto:

A situação de saúde-doença da população negra e da mulher negra brasileira, em especial, tem sido apresentada com certa regularidade neste periódico[1], [2][3]. Esta é uma singela estratégia de enfrentamento do racismo contra a população negra brasileira nas suas diversas formas. Mesmo somada a outras ainda não consegue eliminar o racismo, mas nesta guerra, há algumas conquistas consideráveis.

Uma das mais recentes conquistas do Movimento Negro foi na área da saúde. Seguramente, o espaço mais resistente à reflexão sobre o racismo e suas formas de expressão.

Todavia, o Sistema Único de Saúde (SUS) se fortalece mais sempre que os movimentos sociais assumem o protagonismo da defesa da atenção à saúde. Parte significativa do movimento social, o movimento negro busca a garantia de um atendimento que observe as características específicas da população negra e, principalmente a equidade na atenção de saúde oferecida aos demais segmentos da população.

Na área da saúde, uma conquista do Movimento Negro se concretizou em 13 de maio de 2009, através da Portaria nº992, o Ministério da Saúde que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra[4] foi elaborada no sentido de superar o racismo institucional nos serviços primários, secundários, terciários e quaternários de atenção à saúde, assim como abordar os indicadores de maior vulnerabilidade da população negra como, por exemplo, a mortalidade materna.

Descrição do problema:

A elevada taxa de mortalidade materna no Brasil, segundo Tanaka[5], não foi reduzida ainda devido aos seguintes obstáculos:

- a mortalidade materna não é vista como problema de saúde, ou seja, é interpretada como “algo divino”.

- a equipe de saúde ainda assim não vê, pela pequenez dos números (no nível local), a magnitude do problema (na sociedade), que parece pequena aos olhos dos médicos;

- a população também a vê como evento natural;

- hábito abusivo da cesariana no Brasil (operação cesariana mata sete vezes mais do que o parto normal);

- problemas com os profissionais de saúde e sua qualificação deficiente.

Às barreiras identificadas por Tanaka, acrescento a discriminação racial (e sexual) capaz de comprometer o teor terapêutico da relação profissional-paciente e o caráter prestador de serviço ao cliente pelas instituições de saúde.

A elevadíssima taxa de mortalidade materna de mulheres negras precisa ser reduzida. Imediatamente. As barreiras precisam ser superadas urgentemente.

A título de ilustração, este artigo (re) apresenta alguns dados associados com a mortalidade materna tendo como referencial a prática clínica (e de gestão do sistema de saúde) baseada em evidência para mais uma vez informar profissionais e gestores do SUS sobre o problema e, quem sabe, facilitar a tomada de decisão.

Processo de obter dados:

Uma limitação importante deste artigo é que não foi feita uma revisão sistemática e integrada da literatura como método de pesquisa. Os dados aqui apresentados foram extraídos da pesquisa de Martins[6] sobre mortalidade materna de mulheres negras.

Os dados referentes à razão de mortalidade materna em mulheres negras (excluindo os óbitos tardios) apresentados por Martins estão sintetizados a seguir: 

Estado (capital)

100 mil nascidos vivos

SP

562,35

BA

197,77

PR

407,05

Demais capitais

227,60

 

Quanto aos dados brasileiros, Martins informa ainda que o risco relativo de morte materna em mulheres negras (comparado com o de mulheres brancas) varia de 3,7 (Bahia) a 8,2 (Paraná). Quanto à doença hipertensiva específica da gravidez, o risco relativo de morte materna é de 8,2 enquanto a razão de mortalidade materna é de 85,77/100 mil. No caso de hipertensão arterial sistêmica, o risco relativo de morte é de 18,2 para as mulheres negras e a razão de mortalidade materna de 50,03/100 mil nascidos vivos. 

Análise e interpretação:

Para complementar sua informação: a taxa de mortalidade materna, em 2005, nos Estados Unidos, foi de 11/100 mil nascidos vivos (Global Health Facts) e este número não é absolutamente considerado bom.

As taxas brasileiras sobre mortalidade materna têm profundas implicações para a pesquisa, a gestão e a assistência em saúde, assim como para as instituições defensoras dos direitos da usuária (mulher negra) do SUS.

De pronto, tendo em vista que taxa de mortalidade materna é um indicador de inequidades na assistência à saúde, a taxa elevada de morte de mulheres no período grávido-puerperal mostra inequivocamente que o SUS é desarticulado, desorganizado e deficiente, em síntese: não sabe ou não quer cuidar/tratar.

Por sua vez, salvo melhor juízo, a taxa elevadíssima de morte materna de mulheres negras mostra também de forma inequívoca que o SUS discrimina a pessoa em um ponto de intersecção de dois constructos sociais: mulher (sexismo) e negra (racismo).

Como ignorar que cada número representa uma mulher morta, uma família devastada? Morte que acontece em sua imensa maioria dentro do sistema de saúde, por causas preveníveis e tratáveis com tecnologias simples e sobejamente conhecidas. Esta morte então não é natural. É um resultante de crimes profissionais e/ou sanitários. Crimes precisam ser prevenidos para não acontecerem. Quando acontecem precisam ser punidos.

Medidas chaves para a mudança (ou melhoria):

A PNSIPN prevê ações nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde, no exercício do controle social da saúde, assim como o reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas.

A redução da mortalidade materna é uma ação prevista para o período 2010-2011 no plano operativo da PNSIPN, com recursos da ordem de 1.350 mil reais para capacitação de profissionais de saúde com enfoque étnico-racial (e, na minha opinião, deveria também enfocar gênero).

Todavia, esta ação por si só não é suficiente para reduzir a mortalidade materna das mulheres negras a um nível ao menos equivalente a taxa brasileira, em 2005: 110/100 mil nascidos vivos  (Global Health Facts).

Estratégias para mudanças:

Para contribuir na redução da mortalidade materna das mulheres negras, foi publicada a cartilha Perspectiva da Eqüidade no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal Atenção à Saúde das Mulheres Negra  [7] . Enquanto colaboradora desta cartilha, fiz algumas sugestões, mas elas foram excluídas da versão final. Reescrevo aqui o item IV sobre como o SUS pode acolher e atender na atenção básica com qualidade as gestantes e recém-nascidos negros, desenvolvendo as seguintes ações:

1.      Sensibilização e capacitação dos profissionais de saúde
- Inclusão nas capacitações dos profissionais da rede básica – com ênfase nas equipes do PSF – e nas equipes dos serviços de referência e das maternidades, os conteúdos sobre:
* diferenciais raciais nas condições de vida e saúde
* conteúdos de comunicação assertiva e terapêutica (estabelecimento de confiança e demonstração de respeito)
* estratégias de enfrentamento da discriminação de gênero e raça (promoção do empoderamento da mulher no processo de tomada de decisão sobre a gestação e o parto).

2.      Ações educativas para a gestante negra:
* devem ser realizadas, a partir do 3o. mês de gestação.
* as ações educativas devem ser sistematizadas, visando:
- aumentar a qualidade de vida
- preparar a gestante para o parto ativo e natural, o cuidado e o aleitamento do bebê.
* ser realizadas preferencialmente em grupo (extensivo a familiar/companheiro)
* o curso de preparo da mulher negra para o parto ativo e natural e o aleitamento materno deve contemplar:
- a prevenção dos principais problemas decorrentes das modificações anátomo-funcionais provocadas pela gestação;
- orientação sobre a alimentação;
- o desenvolvimento do bebê;
- os cuidados posturais; os exercícios de fortalecimento do assoalho pélvico (períneo);
- amamentação e suas técnicas; os exercícios e os cuidados de preparação do seio e do mamilo para amamentação;
- as práticas de relaxamento
a serem utilizadas no pré-natal e durante o trabalho de parto;
- as técnicas respiratórias que minimizam a dor;
- os posicionamentos que auxiliam a dilatação; os posicionamentos para auxiliar na saída do bebê;
- o papel ativo e participante da gestante durante o trabalho de parto;
- as rotinas de avaliação da equipe de saúde;
- alojamento conjunto;
- e a monitorização da gestante e do bebê;
- os cuidados com o bebê e a vacinação e triagem neonatal;
- planejamento familiar, prevenção das DSTs/AIDS e câncer.

3.     Pré natal para a gestante negra
- Segundo o PHPN a pressão arterial das gestantes deve ser aferida (e avaliada) em todas as  consultas de pré-natal.
- Caso o valor seja igual ou superior a 140/90 mm Hg, em especial nas gestantes negras, é recomendado o acompanhamento e o encaminhamento para serviços de alto-risco.
- Deve-se também, atentar para os resultados de glicemia, garantindo a realização de 2 exames de rotina, conforme preconiza o PHPN, entre outras ações.
- É fundamental para a redução da taxa de mortalidade materna das mulheres negras que as consultas pré-natais sejam intercaladas ou simultâneas com as ações educativas do curso de preparo para o parto e o aleitamento.

Ao tempo que se trabalha para aumentar a cobertura de atenção pré-natal, não podemos, contudo, aceitar a baixa qualidade do pré-natal que atualmente é oferecido!

Paralelamente ao desenvolvimento de modelos assistenciais baseados na comunidade, é preciso implantar protocolos assistenciais específicos (hemorragia, pré-eclâmpsia, por exemplo) nas maternidades ou hospitais, adquirir dispositivos para contenção de hemorragia e monitorar a qualidade do cuidado à parturiente e puérpera de modo a reduzir (até um nível aceitável moral e cientificamente) a mortalidade e morbidade maternas das mulheres negras.

Para reduzir a mortalidade materna das mulheres negras até a meta desejada, são necessárias ações diretas, objetivas que ou previnam ou ataquem de frente o racismo e o sexismo institucionais na saúde, como também o corporativismo médico. Se a capacitação de profissionais de saúde é uma estratégia de mudança, ela precisa ser mais específica. No meu entender, é preciso devolver às enfermeiras o direito delas de ser obstetriz e atender às mulheres de baixo risco (95%!) no período perinatal.

Para tanto, se faz necessário estimular novas vocações para o trabalho de obstetriz e incentivar os cursos de graduação em enfermagem a incluir a habilidade de realizar o parto eutócico como uma competência básica.

Hoje, nas grandes cidades, tem melhor sorte a mulher que cujo parto é amparado na rua por transeuntes, ou então no ônibus por motorista e trocador ou pelo cabo da polícia ou bombeiro nas viaturas!

A não formação (ou atuação) de obstetrizes é uma das consequências do forte corporativismo médico. A outra conseqüência é o aumento exponencial do parto cirúrgico, que mesmo apresentando resultados péssimos de morbi-mortalidade materna e neonatal, continua crescento sem que nada seja feito para reverter a situação. Ao contrário, junto também cresce a cultura de problematização do parto o que leva à mulher a “exigir a cesariana” ao seu médico ou então apenas desejar o parto normal. Mas, não é suficiente desejar o parto normal, é preciso se preparar ao longo da gestação para exercer um papel ativo durante o trabalho de parto e o parto. Quando a preparação para o parto ativo e natural e aleitamento precoce não acontece, o protagonismo do parto passa a ser do profissional.

Os números da mortalidade materna são indecentes. Então, quais são as taxas de morbidade materna? Até porque, a mortalidade materna é a ponta do iceberg da morbidade materna, conforme Diniz[8]. E, por esta razão é necessário explicitar os registros das injúrias e lesões associadas aos procedimentos danosos ou potencialmente arriscados. As instituições devem, portanto, desenvolver estudos da morbidade associada às práticas e estudos de casos, visando preveni-los.

Próximos passos:

E pensar que a prática clínica baseada em evidência foi proposta por um obstetra: Cochrane! Sabemos que não faltam informação e conhecimento científico para atenção à saúde da mulher no período perinatal.

Falta a tomada de decisão em favor do bem-estar e da saúde da cliente. Os dados sobre mortalidade materna das mulheres negras não podem, portanto, continuar sendo apenas uma “informação” apresentada em gráficos e tabelas nos encontros científicos ou reunião de gestores em saúde. O dia 28 de maio, Dia Nacional da Redução da Mortalidade Materna, instituído no Brasil em 1994 por meio da portaria 663/94 do Ministério da Saúde, deveria ser um momento de prestação de contas dos gestores da saúde e dos Comitês de Mortalidade Materna.

Os dados sobre mortalidade materna das mulheres negras precisam urgentemente se tornar um conhecimento a ser usado na melhoria da prática cotidiana do profissional de saúde e do gestor nas unidades de atenção básica à saúde que cuidam de mulheres com hipertensão arterial, diabetes, obesidade, entre outros problemas.

Os setores do SUS que atuam na educação em saúde precisam educar as pacientes e famílias a identificar alterações e a como obter ajuda médica imediata. Aumentar o grau de informação e o empoderamento da paciente é uma importante estratégia para redução de morbi-mortalidade.

Os dados sobre mortalidade materna das mulheres negras precisam também servir de subsídio para os Coordenadores de Cursos de Graduação na área da saúde, visando à formação de obstetras e obstetrizes em maior escala.

Igualmente estes dados devem alimentar os movimentos sociais para que se exija do SUS e seus profissionais o fim das transgressões aos direitos humanos, consagrados em tratados internacionais os quais o Brasil é signatário.

Assim, finalizo reivindicando ações nas áreas de pesquisa, ensino, assistência e defensoria que garantam os direitos humanos relacionados à mortalidade materna[9], em especial, das mulheres negras:

1-     direito à vida, ao mais alto nível alcançável de saúde;

2-     à igualdade;

3-     a viver livre de discriminação; a decidir o número e o espaçamento de filhos/as;

4-     a estar livre de tratamento cruel, desumano ou degradante, à privacidade, à educação, à informação, a desfrutar dos benefícios do progresso científico.

Referências:

[1] Cruz I. Column: Black women health - Breastfeeding: Empowering Black Women Online Brazilian Journal of Nursing [serial on the Internet]. 2007 August 9; [Cited 2010 April 2]; 6(2):[about ## p.]. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/1071

[2] Cruz I. Human Rights and Black Brazilian Health Online Brazilian Journal of Nursing [serial on the Internet]. 2009 April 16; [Cited 2010 April 2]; 8(1):[about ## p.]. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/2277

[3] Cruz I. Latin-American and Caribbean Black Women´s Day - perspective about health and wellness policies Online Brazilian Journal of Nursing [serial on the Internet]. 2008 August 5; [Cited 2010 April 2]; 7(2):[about ## p.]. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/1726

[4] Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: Plano Operativo.Brasília – DF, 2008 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_populacao_negra_plano_operativo.pdf

[5] Tanaka, A. Análises dos obstáculos para a redução da mortalidade materna no Brasil. Relatório do Seminário de Mortalidade Materna e Direitos Humanos no Brasil. Comissão de Cidadania e Reprodução. Maio, 2009. Disponível em www.ccr.org.br/uploads/noticias/seminário%20mortalidade%20materna.pdf  

[6] Martins Alaerte Leandro. Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil. Cad. Saúde Pública  [serial on the Internet]. 2006  Nov [cited  2010  Apr  02] ;  22(11): 2473-2479. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006001100022&lng=en.  doi: 10.1590/S0102-311X2006001100022.

[7] Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília – DF, 2005. Perspectiva da Eqüidade no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal Atenção à Saúde das Mulheres Negra. Série F. Comunicação e Educação em Saúde.  Em http://www.saude.sp.gov.br/resources/profissional/acesso_rapido/gtae/saude_pop_negra/atencao_a_saude_das_mulheres_negras.pdf

[8] Diniz, SG. Modelos de assistência ao parto e sua relação com a morbi-mortalidade materna. Relatório do Seminário de Mortalidade Materna e Direitos Humanos no Brasil. Comissão de Cidadania e Reprodução. Maio, 2009. Disponível em www.ccr.org.br/uploads/noticias/seminário%20mortalidade%20materna.pdf

[9] Gruskin, S. Mortalidade materna: um problema de saúde pública e um imperativo de direitos humanos. Relatório do Seminário de Mortalidade Materna e Direitos Humanos no Brasil. Comissão de Cidadania e Reprodução. Maio, 2009. Disponível em www.ccr.org.br/uploads/noticias/seminário%20mortalidade%20materna.pdf