Desde Riva Rocci, Recklinghausen e Korotkoff até a atualidade: o desafio da mensuração precisa da pressão arterial

 Resumo.  A possibilidade de medir a pressão arterial, procedimento mais realizado por médicos e enfermeiros no mundo, representou um dos maiores desafios enfrentados pelos cientistas do século XVI ao XIX.  A introdução do esfigmomanômetro de Riva-Rocci em 1896 e do método auscultatório por Korotkoff em 1905, grandes conquistas na área cardiovascular, constituíram fatos promissores ao melhor conhecimento das moléstias cardíacas e nefrológicas. Entretanto, após um século de pesquisas em esfigmomanometria, o desafio imposto pela obtenção de uma medida livre de erros, que garanta o diagnóstico preciso da hipertensão, continua sem ser vencido. A comemoração do centenário da descoberta dos “Sons de Korotkoff”, neste ano de 2005, suscita reflexões sobre o desafiante trabalho realizado pelos cientistas pioneiros da esfigmomanometria e suas conquistas na caracterização conhecimento na área, até a descoberta do método auscultatório. O autor espera oferecer subsídios para que o leitor compreenda os fatos vêm retardando o conhecimento na área desde o início do século XX, tornando difícil o controle das variáveis implícitas na garantia da medida acurada e prejudicando o diagnóstico e tratamento da hipertensão.

Palavras-chave: manometria; pressão arterial; hipertensão

 

Introdução:

            A possibilidade de medir a pressão arterial, procedimento mais realizado por médicos e enfermeiros no mundo, representou um dos maiores desafios enfrentados pelos cientistas do século XVI ao XIX.  A introdução do esfigmomanômetro de Riva-Rocci em 1896 e do método auscultatório por Nicolaï Korotkoff em 1905, resultaram em melhor conhecimento das moléstias cardíacas e nefrológicas. Entretanto, após um século de pesquisas em esfigmomanometria, o desafio imposto pela obtenção de uma medida livre de erros, que garanta o diagnóstico preciso da hipertensão, continua sem ser vencido. A comemoração do centenário da descoberta dos “Sons de Korotkoff”, neste ano de 2005, suscita reflexões sobre o desafiante trabalho realizado pelos cientistas pioneiros da esfigmomanometria e suas conquistas no avanço do conhecimento na área. O autor espera oferecer subsídios para que o leitor compreenda os fatos que vêm retardando o conhecimento desde o início do século XX, tornando difícil o controle das variáveis implícitas no procedimento de medida, o que resulta em prejuízo no diagnóstico e tratamento da hipertensão.

  Desafio no desenvolvimento dos esfigmomanômetros: determinantes históricos nas investigações de Riva Rocci, Von Rekclinghausen e Korotkoff.

           Os esforços realizados por Colombo e por Serveto para estudar a pequena circulação, como por Sartório ao estudar a circulação sangüínea, não foram suficientes para torná-los tão conhecidos como o investigador inglês que continuou seus estudos: em 1628, com base nas descobertas desses médicos, William Harvey completou os estudos desses três cientistas e descreveu o ciclo circulatório completo1-2.

            No campo da esfigmomanometria a descoberta fundamental resultou das engenhosas experiências realizadas em 1733 pelo médico e reverendo inglês Stephen Hales, que descobriu que o sangue circula devido à pressão produzida pela sístole cardíaca. Hales, em seus primeiros e primitivos experimentos, introduzia um tubo de vidro na carótida de um cavalo, verificando que o sangue saía do tubo com alta velocidade, atingindo grande distância, a partir da qual calculou, ainda que grosseiramente, o valor da pressão sistólica. Mais tarde, aperfeiçoando a medida, Hales visualizou as oscilações do fluxo sangüíneo em um tubo de vidro de cerca de 290 cm de altura introduzido na artéria. Estava criado o primeiro experimento de medida da pressão arterial passível de replicação, já que era mais detalhado do que o do veneziano Sartório, cuja curiosidade em 1610 para observar as pulsações arteriais precedeu a do reverendo inglês. Quase um século depois o francês Jean-Leonard Marie Poiseuille transformou o longo tubo de vidro em U, facilitando o manuseio do equipamento que continha um recipiente com mercúrio. Em 1828 Poiseuille apresentou sua tese intitulada A força do sangue, na qual informava sobre a medida da pressão realizada com o hemodinamômetro que inventara, tendo lhe sido conferida a medalha de ouro da Academia de Medicina de Paris-3-4.

        Unindo esforços com o engenheiro Gernier, em 1833 Hérisson desenvolveu um aparelho que "possibilitava a reflexão visual da ação das artérias", o primeiro esfigmômetro com uma haste graduada. O experimento realizado no Instituto de Fisiologia de Leipzig, por Carl Ludwig em 1847, permitindo o registro contínuo das oscilações da pressão arterial, propiciou a Faivre registrar diretamente, pela primeira vez, a pressão sistólica em humanos, durante amputação de um membro. Após este acontecimento foi notável o entusiasmo crescente com os experimentos de medida de pressão arterial. Vierordt foi o primeiro a observar, em 1854, que o fluxo sangüíneo tinha que ser totalmente interrompido antes de ser restabelecido para a medida. Na cidade alemã de Tübingen ele apresentou um invento para registro indireto da pressão arterial, o qual ganhou reputação devido ao seu grande potencial, reconhecido pelo fisiologista francês Etienne Jules Marey. Este pesquisador foi considerado “um capítulo especial da tecnologia médica”, pois foi importante criador de métodos de medida em Fisiologia e ajudou os irmãos Lumière a criar o cinema. De fato, uma das primeiras aplicações úteis do cinema foi o clássico estudo de Marey sobre os movimentos dos membros executados para a marcha de numerosas espécies animais, inclusive o homem e aves (ver em http://www.expo-marey.com/home.html) 3-5    

              "Se temos mãos e ouvidos por que precisamos dessa parafernália toda?" perguntavam alguns clínicos. Mas as correlações cada vez mais fortes entre os distúrbios renais e altos valores da pressão registrados nos inventos, foram diminuindo tais indagações e aumentando os esforços para aperfeiçoar a instrumentação esfigmomanométrica. Em 1871, Ludwig Traube sugeriu, na Alemanha, um elo entre falência renal e elevação da pressão arterial, o que também contribuiu para diminuir o ceticismo dos clínicos da época. Em Viena, Samuel Siegfried Ritter von Basch aduziu ao invento um pequeno dispositivo do tipo manguito para ser colocado no pulso. Continha água em seu interior e era conectado a um manômetro aneróide, o qual indicava quando as vibrações oscilatórias eram interrompidas, estimando-se naquele momento os valores da força máxima da contração cardíaca (pressão sistólica), pelo princípio de prover a pressão por unidade de medida3-6.  

A contribuição de  Riva-Rocci

             O esfigmomanômetro desenvolvido pelo médico italiano Scipione  Riva-Rocci e por ele apresentado à comunidade médica no número 50 da  Gazzetta Medica di Torino, em dezembro de 1896, foi um  grande marco no campo da Cardiologia. O médico italiano tentou eliminar erros técnicos que ocorriam com o uso de um esfigmomanômetro desenvolvido pelo francês Potain, semelhante ao invento de Basch. Ele introduziu no esfigmomanômetro uma braçadeira que, inflada, interrompia o fluxo sangüíneo e conseqüentemente as ondas pulsáteis, facilmente restabelecido com a deflação da braçadeira, que permitia a distribuição mais uniforme da pressão ao longo do segmento de vaso comprimido. A compressão para interrupção do fluxo era até então realizada mais rudimentarmente, enquanto o novo equipamento propiciava melhor avaliação da pressão sistólica. Com respeito ao sistema de fixação, Riva-Rocci utilizou no manguito um artefato composto de dois condutos pequenos interligados entre si, confeccionados a partir de câmara hermética de borracha para bicicleta, para ser posicionado diretamente sobre a superfície do braço. Em 1898 foram adicionadas cintas e fivelas para melhor fixação7.

Von Recklinghausen: a influência da largura do manguito na medida da pressão arterial.

            Se do ponto de vista do esfigmomanômetro o invento de Riva-Rocci marcou o início do estudo moderno da hipertensão, precocemente seu uso deu origem a outras investigações. Em 1901 Heinrich von Recklinghausen demonstrou que o manguito acoplado ao instrumento era muito estreito e seu uso resultava em registros hiperestimados da pressão arterial. Embora citado em diversas publicações no século passado e na recente revisão da American Heart Association, poucos conhecem com propriedade o trabalho do cientista alemão nos dias atuais, limitação agravada pelo idioma alemão, no qual é descrito: “o erro produzido pelo método de Riva-Rocci baseava-se na reduzida largura do manguito aplicado no braço e acoplado ao manômetro de mercúrio. O ar comprimido introduzido inflava o manguito, promovendo a compressão da artéria braquial até a interrupção completa do fluxo, indicando a pressão sistólica. Embora esse método seja mais confiável que o de von Basch,  sofre ainda de imprecisão, provocada pela utilização de um manguito muito estreito em relação ao braço, o qual necessita de maior inflação para ocluir a artéria, devido distribuição irregular da pressão ao longo do vaso comprimido....A avaliação da pressão arterial com o emprego do manguito de 5 cm e com o nosso de 12 cm revela que a primeira apresentou valores extremamente elevados em comparação à segunda, evidenciando claramente a existência de excessiva compressão imposta à artéria braquial pelo manguito de 5 cm (fenômeno que tende a acentuar-senos braços mais gordos)”8. Após um século, a largura de 12 cm proposta pelo médico germânico permanece como referência padrão em todo o mundo, com raras exceções de algumas larguras maiores.

A investigação de Korotkoff

            A tese desenvolvida por Korotkoff, identificando ruídos circulatórios que ficaram conhecidos como “Sons de Korotkoff”, tema das aulas de semiologia e propedêutica médica em todo o mundo, talvez tenha sido a publicação mais difícil de acesso no século passado. O que ficou conhecido da fantástica investigação do médico russo, decorrente de suas observações como cirurgião vascular em campos de batalha, foi um pequeno resumo publicado em inglês, cuja extensão assemelha-se ao menor espaço nos congressos atuais. Não se tratava do resumo da sua tese apresentada em1910, e sim da comunicação da descoberta à Academia Militar Russa em 1905. O grande desafio foi o médico provar aos professores russos que os ruídos originavam-se na artéria comprimida e não no coração9-11.

A esfigmomanometria moderna do século XX: estudos pós Korotkoff e Reclinghausen

          A introdução do método auscultatório propiciando estimar com maior fidedignidade a pressão sistólica e ineditamente a diastólica, resultou num expressivo aumento das investigações clínicas associadas aos sistemas cardiovascular e renal e estudos hemodinâmicos, por Janeway12-13 e Erlanger14-15.                                                                                                

        Em 1926 Korns demonstrou que a freqüência dos sons de Korotkoff era influenciada pelo tamanho do manguito16. Essa descoberta foi corroborada em estudos realizados na década de 80 no Brasil , quando verificamos que a pressão de pulso registrada pelo manguito de largura correta para o braço era próxima à 40mmHg, versus cerca de 36mmHg nos registros com o manguito de largura padrão17

          O avanço no conhecimento na área da esfigmomanometria na década de 30 foi talvez o mais expressivo após as descobertas do início do século. Na Alemanha von  Bonsdorff18  demonstrou que a largura de 12 cm poderia hiper ou hipoestimar a pressão arterial em mais de 20 mmHg, quando comparada à medida intrarterial. Na França Bazett & Laplace (1933)19 cotejaram medidas diretas e indiretas de pressão arterial em cães, com membros de circunferência semelhante à do homem adulto e destacaram a necessidade de adequação do manguito à circunferência do braço.            

   Nos Estados Unidos Hamilton, Brewer e Brotman aperfeiçoaram em 1934 o manômetro hipodérmico de Frank e Wiggers, tornando-o mais sensível, devido à alta freqüência de resposta20. Em 1936 Hamilton, Woodbury e Harper compararam medidas diretas e indiretas verificando que os registros indiretos sistólicos são sempre 3 a 4 cm mais baixos que os diretos, porém os indiretos diastólicos são 8 a 9 cm mais altos do que os intrarteriais21. Em 1939 Robinow, Hamilton, Woodbury e Volpito constataram a influência do manguito em crianças22, corroborando resultados publicados em 1938 ( Woodbury , Robinow e  Hamilton23).

               Em 1938 Wright, Schneider e Ungerleider publicaram matéria reunindo fatores de erros na leitura da pressão arterial, a qual ofereceu subsídios para que especialistas norte-americanos e europeus elaborassem as primeiras recomendações sobre a medida da pressão arterial em 193924. O Comitê de Pós-Graduação das referidas sociedades (Européia e Norte-americana) recomendava que o manguito do esfigmomanômetro tivesse 13 cm de largura e 23 cm de comprimento. O estudo publicado por Ragan & Bordley em 1941 foi fundamental para que clínicos e pesquisadores se preocupassem com a imprecisão da medida indireta. Os autores concluíram que os métodos de medida da pressão arterial eram razoavelmente fidedignos em relação a alguns indivíduos, porém para significante número de pessoas a informação poderia estar errada, especialmente as que têm braços muito grossos ou muito finos25.

            Fundamentando-se nos dados de Ragan & Bordley, Pickering et al. em 1954 calcularam o coeficiente de regressão entre medidas diretas e indiretas e elaboraram uma tabela de correção cuja utilização eliminaria ou minimizaria erros decorrentes de largura inadequada, ressaltando, todavia, que pessoas com circunferências braquiais semelhantes poderiam apresentar divergências entre as medidas diretas e indiretas26. Essas diferenças resultam em grande dispersão em circunferências semelhantes, provavelmente devido diferentes condições na camada média da artéria de cada sujeito, o que impede o uso de tabelas, conforme divulgamos em 198627, e explicam a grande massa de dados discrepantes nos estudos esfigmomanométricos, que geram polêmicas na literatura. O estudo apresentado em 1964 por Holland & Humerfelt28, com achados diferentes aos de Ragan & Bordley (1941), por exemplo, levou Pickering a declarar em seu livro High Blood Pressure (1968) que havia insuficiência de dados e a tabela foi abandonada no meio europeu29.

 Avanço no conhecimento após os anos 60: novas fontes de erros na medida da pressão arterial

          Dos anos 60 aos 80 foram identificadas novas fontes de erros que tornam a medida imprecisa, o erro provocado pelo observador, pessoa que mede a pressão arterial, e o erro introduzido pelo próprio cliente. O erro introduzido pela própria pessoa que mede a pressão (observador) foi observado por Wilcox (1961), que utilizando estetoscópio duplo estudou a leitura realizada por 349 enfermeiras na reprodução dos sons de Korotkoff, gravados em filme sonoro. Diferenças de 4 a 16 mmHg foram encontradas nos registros sistólicos e 2 a 45 nos diastólicos, erros considerados independentes da acuidade auditiva e visual dos participantes.  A utilização do material gravado por Wilcox permitiu que Rose e cols. testassem  as mesmas situações no grupo médico, porém a fidedignidade não era maior do que quanto às enfermeiras30-31.

            Importante aquisição no conhecimento foi a identificação do fenômeno caracterizado pelo aumento dos níveis da pressão arterial apresentado pelo cliente, diante do profissional de saúde, sobretudo o médico. A exacerbação do alerta do cliente em consultórios e clínicas, elevando a pressão arterial, caracterizou a fonte de erro conhecida na literatura internacional como “White Coat Hypertension” e no Brasil como “Hipertensão do Jaleco Branco”. A constatação desse fenômeno deu origem ao desenvolvimento de esfigmomanômetros portáteis, possibilitando conhecer os níveis da pressão em diferentes ambientes, sobretudo no domicílio32 e ambiente de trabalho. Surgiu então um novo capítulo na história da esfigmomanometria, conhecido como Ambulatory Blood Pressure Monitoring (ABPM, e no Brasil como Monitoração da Pressão Arterial:MAPA), propiciando estudos da variabilidade da pressão nos ciclos diurnos e noturnos e em diferentes locais. Inicialmente esses instrumentos portáteis registravam a pressão intrarterial, como o utilizado em Oxford por Bevan, Honour e Stott em 1969, cujo experimento tornou-se histórico no campo da monitoração da pressão33.  Nos anos subseqüentes aumentaram as pesquisas na área, resultando na realização de grande evento sobre monitoração na Itália em 1985, organizado pelos professores Alberto Zanchetti e Giuzeppe Mancia34, onde foram apresentados interessantes estudos norte-americanos35 e europeus36. A interpretação dos registros obtidos pela ABPM tornou-se assunto bastante discutido na área, pois os picos de pressão causados por erros técnicos dificultavam inicialmente a interpretação dos registros da pressão. A partir dos anos 70 houve corrida mercadológica no desenvolvimento de instrumentos de monitoração e a introdução na prática resultou em importantes observações, como a de Perloff, Sokolow e Conwawn, pioneiros em demonstrar a relação entre registros monitorados, acometimento de órgãos alvo e valor prognóstico das complicações da hipertensão37. Diversos grupos foram criados para decidir condutas decorrentes de registros da monitoração da pressão arterial38

 Por que o desafio da medida precisa permanece sem ser vencido?       

           Além de retratar um pouco da história da medida da pressão neste ano do centenário de Korotkoff, esta revisão procura fornecer dados para o leitor compreenda porque, após séculos, a precisão da medida continua sendo um dos assuntos mais desafiantes para as sociedades da área. Nesse sentido acredita-se que o aspecto mais importante a ser discutido seja a influência das dimensões do manguito na medida da pressão, com base na análise da literatura sobre as decisões contidas nas recomendações da American Heart Association e de outras sociedades, como a British Hypertension Society. A fim de sintetizar os fatos concernentes aos estudos sobre a influência da largura ou comprimento do manguito na medida da pressão, apresenta-se cada uma das revisões da já citada recomendação de 1939:

-1951 (Bordley et al.): o comprimento deveria abranger o mínimo de 50% do braço e a largura deveria ser 20% acima do valor correspondente ao diâmetro do membro utilizado, isto é, 0,38 da medida da circunferência do braço39.  Na prática a razão largura do manguito /circunferência do braço ficou estipulada em 0,40 até os dias atuais. Entretanto. não se identifica na literatura o estudo que subsidia a decisão de o comprimento abranger apenas 50% da circunferência braquial. A palavra comprimento aparece diversas vezes na descrição do experimento de Von Recklinghausen, porém referindo-se ao comprimento do segmento do vaso em compressão, o que corresponde à largura do manguito. Quando o autor fez referências à metade do braço, a dimensão em apreço era a largura do manguito, que deveria atingir metade do comprimento do membro. Parece óbvio que um manguito que atinja apenas metade da circunferência braquial exigiria muito enforço para que o vaso fosse completamente ocluído. A recomendação norte-americana suscitou polêmicas e desencadeou vários experimentos sobre a influência do comprimento, contudo vieses metodológicos não permitem ao leitor aceitar as conclusões desses estudos, uma vez que não são fornecidos dados sobre as circunferências braquiais e não fica esclarecido o controle da variável largura, para concluir sobre o comprimento.        

-- 1967 (Kirkendall et al.): permanecem as recomendações sobre a largura 20% maior do que o diâmetro do braço, chamando a atenção para o comprimento da braçadeira de tecido, que deveria atingir 60 cm40.

-      1980 (Kirkendall et al.): permanecem as recomendações sobre a largura e foi destacado não haver necessidade de o comprimento do manguito ultrapassar 80% da circunferência, como afirmavam alguns autores.  O desaparecimento do som foi definido como o melhor indicador da pressão diastólica41. Os estudos de Geddes e Tivey, evidenciando que o manguito estreito hiperestima a pressão e o largo hipoestima, influencia as decisões da AHA, que passou a recomendar maior número de braçadeiras para os obesos.

-      1988 (Froelich et al.): mantidas as recomendações anteriores e introduzida uma tabela de correção elaborada por Maxwell, a fim de corrigir erros de medida da pressão causados pelo manguito de largura padrão-42. Os dados que subsidiaram a tabela foram registrados em clínica de emagrecimento. Esta recomendação foi criticada e foi formado novo grupo para revê-la.

-       1993 (Perloff et al.): foi retirada a tabela introduzida em 1988 e recomendado manguito com 16 cm de largura para obesos e 10 cm para magros43. Tal decisão deve ter levado em consideração as críticas que apresentamos quando um dos membros do comitê nos solicitou revisão da matéria a ser publicada, em 1992, assim como, talvez, o estudo de Rastran e cols em 2424 norte-americanos44. Com a inclusão do manguito 10 para magros a possibilidade de ocorrer acentuada hipoestimação diminuiria, mas esta decisão foi descartada na revisão de 2005.

- 2005 (Pickering et al): Os autores apresentaram a mais completa revisão de suas recomendações, as quais constituem referência para grupos de estudo e deliberações na matéria, em diversos países no mundo. A despeito do apreciável material educativo em quase todos os itens abordados e atualização em assuntos polêmicos (valores de referência para níveis de pressão normais, pré-hipertensivos ou hipertensivos, tendência do desaparecimento do manômetro de mercúrio por razões ecológicas, etc.), a recente publicação é uma demonstração óbvia das dificuldades que a sociedade tem de aplicar, na prática, o seu próprio referencial teórico para dimensões do manguito. Os autores são incoerentes quando, ao continuar tendo como referência a razão circunferência braquial /largura de manguito de 0.40, recomendam a largura de 12 cm para braços finos, com 22 a 26 cm de circunferência, e 16 cm para circunferência entre 27 e 52. Tal recomendação é também baseada em um estudo recente, que afirma que a razão 0,46 diminui os erros45.  O comprimento é mantido em 80%, o dobro da largura (1:2), porém são incluídas três dimensões de comprimento para a largura de 16 cm, o que é difícil de ser entendido e contraria os princípios demonstrados por von Recklinghausen e as observações dos cientistas da década de 30.

          As definições da AHA agravarão os problemas do diagnóstico no obeso, nos quais será usada uma única largura para uma grande faixa de circunferências ((27 a 52 cm). Os magros continuarão tremendamente esquecidos, como constatamos em estudos longitudinais, nos quais demonstramos que o uso do manguito com 12 cm impede o diagnóstico precoce da hipertensão e prejudica o tratamento. Ainda neste ano de 2005 contestamos tais recomendações46, com base em estudo longitudinal de 20 anos, onde fica patente que quanto mais fino o braço, maior hipoestimação e maior a ocorrência de complicações cardiovasculares. Vale destacar que infartos, AVC, pré-eclampsias e eclampsias, descolamento prematuro da placenta, crises hipertensivas, ICC, taquicardias, cefaléia occipital e outros distúrbios, fizeram parte do cotidiano dos nossos estudos longitudinais, em pessoas magras não diagnosticadas ou tratadas deficitariamente, e em mulheres de peso normal, o que confirma nossas hipóteses para explicar os dados de Goldbourt et al , sobre a maior mortalidade no magro hipertenso47-48.

Conclusões

           A pesquisa da medida da pressão é árdua, não se detecta continuidade nos estudos, os autores parecem ficar desmotivados diante tantas controvérsias. A despeito da grande contribuição oferecida na área da esfigmomanometria, o líder mais antigo na área, Prof. Eloin Obrien, do tradicional centro de estudos de Dublin, tem tido posicionamentos dúbios com respeito às dimensões do manguito, principalmente se for considerado o elogio que fez aos estudos de Geddes, em 1996, cujas conclusões são voltados para a importância da largura do manguito49. O grande problema reside na falta de especialistas para discutir com propriedade tais questões, doutores com formação em medida da pressão, o que exige conhecimento de um século de esfigmomanometria. A análise da literatura vem demonstrando que atuar em grupos de trabalho não confere o mesmo conhecimento que a formação de pesquisador na área fornece, pois essa possibilita detectar vieses metodológicos em muitas publicações que norteiam importantes decisões. A própria Associação Norte-americana nunca testou na comunidade suas próprias recomendações (manguitos 20% maior que o diâmetro do braço, largura 40% da circunferência e comprimento 80%), braço a braço, como foi testado ineditamente no Brasil.

            Obviamente não é prático dispor de manguitos variando a cada centímetro. Contudo, se no século XXI sofisticada tecnologia é aplicada no diagnóstico e tratamento das complicações cardiovasculares, com alto impacto nos custos da saúde, porque tão pouca atenção é dada à prevenção? Se não é possível dispor de diversas larguras de braçadeiras, que seja então estimulada, científica e financeiramente, a busca de outras formas de medir da pressão e novos inventos no campo da bioengenharia, dando seqüência a um trabalho iniciado há 100 anos atrás.  Nossa leitura aponta para um avanço no conhecimento pouco expressivo nas ultimas décadas, lembrando-se que os instrumentos que monitoram a pressão estão sujeitos aos mesmos erros que os utilizados na medida casual, além do que a confiabilidade nos esfigmomanômetros representa outro tipo de problema na garantia de uma medida precisa.

          O aumento da obesidade no mundo é preocupante, sobretudo nos Estados Unidos, porém permanece um grande contingente de braços cujas circunferências demandam manguitos menores que 12 cm, por razões de etnia, padrões culturais, diferenças regionais, índice de massa corpórea, biótipo, etc. É possível aceitar referências regionais para serem aplicadas indiscriminadamente em todas as regiões do mundo? É possível comparar os braços de pessoas do oriente médio, de africanos, japoneses, escandinavos, franceses, brasileiros, etc., com os dos norte-americanos? E os 35% de norte-americanos magros ou com peso normal.  Aceitar passivamente decisões equivocadas seria compartilhar com as políticas públicas que discriminam pessoas no atendimento da saúde.

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