CONHECENDO AS VIVÊNCIAS DE MULHERES OSTOMIZADAS: contribuíções para o planejamento do cuidado de enfermagem

Gisiane de Souza Santos, Sandra Maria Cezar Leal, Mara Ambrosina Vargas

RESUMO: Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva com mulheres adultas que foram submetidas à cirurgia para realização de colostomia intestinal há mais de 2 anos. O objetivo foi conhecer como elas conviviam com a ostomia. O campo de estudo foi um serviço ambulatorial de referência no atendimento ao paciente ostomizado, de uma Instituição Pública de Saúde, de Porto Alegre/RS. A população estudada foram mulheres adultas com ostomia intestinal, que estiveram na referida instituição, nos meses de janeiro e fevereiro de 2004, para adquirirem seus dispositivos (bolsa de colostomia, sistema de irrigação e sistema oclusor). Foram adotados os seguintes critérios de inclusão no estudo: ter a idade mínima de 20 anos, pertencer ao sexo feminino e ter ostomia intestinal. A entrevista envolveu 12 mulheres na faixa etária de 34 a 79 anos. Quanto à escolaridade, uma era analfabeta, duas tinham o Ensino Fundamental incompleto e quatro concluído, uma tinha o Ensino Médio incompleto e duas concluído, duas tinham Ensino Superior. Quanto à ocupação, seis eram aposentadas, cinco do lar, uma era artista plástica e escritora.  Utilizou-se a análise temática, identificando-se as categorias: desconhecimento sobre a cirurgia; dificuldades no dia-a-dia; a sexualidade e imagem do próprio corpo; preocupação com a família; ostomia intestinal como alternativa para continuar viva; esperança de continuar viva supera as dificuldades. Considera-se que estudos, como este, contribuiem para o planejamento do enfermeiro no cuidado à mulher ostomizada, tanto no preparo pré-operatório quanto no acompanhamento ambulatorial e domiciliar, principalmente na busca pela superação das dificuldades.

Palavras‑chave: Ostomia. Colostomia. Neoplasias intestinais. Saúde das mulheres. Cuidados de enfermagem.

 1 INTRODUÇÃO

 Ostomia é uma palavra de origem grega que significa “abertura” ou “boca”; é o termo que designa intervenção cirúrgica cujo objetivo é criar a comunicação de um órgão oco para o meio externo com o objetivo de drenar secreções, eliminações urinárias e intestinais. Colostomia é a abertura do cólon na parede abdominal, visando ao desvio do conteúdo intestinal para o meio externo(1) .A consistência das fezes varia de acordo com a localização do ostoma, quando localizado no sigmóide, as fezes são sólidas; no cólon descendente, são semipastosas; no cólon transverso, são pastosas e no cólon ascendente, são líquidas (2).

Várias são as indicações para a realização de uma colostomia, dentre elas: câncer colorretal; tratamento de diverticulite; traumatismo; intestino isquêmico; doenças de Crohn; doença inflamatória intestinal; infeções perineais graves; medida temporária para proteger uma anastomose; entre outros. Dependendo da etiologia da doença, o cirurgião indica a realização de um ostoma temporário ou definitivo (3).

Pesquisas (3-8) abordam o indivíduo ostomizado e, mesmo com diferentes enfoques, coincidem ao também enfatizarem a necessária qualidade da assistência de enfermagem. No entanto, em tais estudos, não foi visibilizada as possíveis especificidades das mulheres que convivem com a ostomia intestinal. Na verdade, detectou-se uma interessante investigação(9) referindo-se às mulheres ostomizadas grávidas. Mas, neste caso, o estudo enfoca um período delimitado de suas vidas: a gestação.

Em suma, não se pretende, aqui, fazer um recorte de gênero. Contudo, entende-se que, em nossa sociedade, algumas peculiaridades são mais vinculadas ao sexo feminino. Ou seja, a idéia prévia, à elaboração desta investigação, era a de que as mulheres preocupam-se muito mais com a imagem corporal; com a busca da satisfação do companheiro e com a possibilidade de serem amadas e de viverem harmoniosamente com a “alma gêmea”. Assim, elaborou-se como objetivo: conhecer como as mulheres submetidas à colostomia convivem com o ostoma.

Considera-se que a relevância da pesquisa consiste em, justamente, fazer uma reflexão sobre a população feminina ostomizada. E, com isso, espera-se trazer contribuições para a qualidade da assistência prestada, assim como, estimular maior participação do enfermeiro como educador sensibilizado às peculiaridades que evolvem o universo feminino.

2- REVISÃO DE LITERATURA

 A dura rotina de pessoas ostomizadas inicia antes da cirurgia, já quando são informadas de que serão dependentes, temporária ou definitivamente, de um sistema de bolsa para coletar fezes(3;10). Desse modo, as informações da equipe de saúde ao paciente devem ter a mesma linguagem, pois contribuem para que ele confie na equipe e siga as orientações, facilitando, assim, o processo de reabilitação. Nesse sentido, devem ser feitas gradual e progressivamente, buscando atender as expectativas, esclarecer dúvidas e diminuir a ansiedade do indivíduo frente ao ato cirúrgico(11). A entrevista pré-operatória, além de reduzir a ansiedade do paciente, serve para iniciar o processo educativo, favorecendo o relacionamento terapêutico. Os objetivos da entrevista são(11): identificar o conhecimento do paciente sobre o diagnóstico, o tratamento cirúrgico e o complementar; conhecer os antecedentes familiares relacionados com as doenças associadas e com diagnóstico de base; investigar antecedentes alérgicos, principalmente de pele, para avaliar a necessidade de realizar um teste de hipersensibilidade a adesivos e barreiras protetoras dos dispositivos coletores;  investigar o uso de medicações; identificar atividades diárias relacionadas com o autocuidado, atividades sociais, de lazer e trabalho; conhecer o estado emocional do paciente, o impacto da doença, expectativa quanto ao estoma, no que se refere ao autoconceito, à auto-estima, à imagem corporal, à investigação de distúrbios psiquiátricos prévios, ao nível de ansiedade e às estratégias de enfrentamento, bem como o levantamento das relações familiares e afetivas, a questão da sexualidade; conhecer o grau de escolaridade, o nível de compreensão, o padrão cultural, respectivas influências étnicas e religiosas nos conceitos de saúde e utilização dos serviços de saúde. Enfim, pelos conteúdos da orientação, que se inicia no pré-operatório, continuando no pós-operatório até a alta hospitalar, apreende-se que eles referem-se a uma pessoa inteira, no sentido de que esta apresenta-se como um sujeito, constituído a partir de múltiplas interfaces e, por isso, complexa(12).

Portanto, durante o processo educativo, é importante conhecer o nível de ansiedade do paciente, bem como os mecanismos que ele utiliza para lidar com o estresse. Esforços de apoio incluem oferecer privacidade, instruir o paciente com exercícios de relaxamento, reservar um tempo para o paciente falar, chorar ou fazer perguntas(2). A enfermeira deve providenciar encontros em que o paciente possa participar de grupos de ostomizados, onde terá oportunidades de saber como outras pessoas enfrentaram a mesma situação(13).

Embora a satisfação das necessidades de aprendizagem do paciente é uma parte essencial da função do enfermeiro, que deve ter conhecimento sobre o processo de aprendizagem; ser capaz de identificar as dificuldades de aprendizagem e selecionar os métodos e as técnicas apropriadas que facilitem esse processo(14). Ainda, tal profissional deve estar ciente de que o ritual de orientação, exercido fortemente na prática da Enfermagem, pode mostrar-se ineficaz. Na maioria das vezes, isso ocorre em função de um quadro de referência prévia dos que recebem a orientação(7). Reforçando, investigar um grupo de mulheres pode nos auxiliar na previsão deste quadro de referência prévia.

Além disso, tem sido explorado o pressuposto de que a melhoria da qualidade da assistência (desde o planejamento até à assistência) deve estar vinculada ao desempenho de um enfermeiro estomaterapeuta – considerado o profissional apto a assistir a esses pacientes – o qual deve direcionar sua atenção na promoção da independência e da auto-estima do paciente, para que este tenha uma vida mais digna (4;14). Por outro lado, geralmente é o enfermeiro que trabalha na unidade cirúrgica ou em um posto de saúde e que desenvolve a função de prestar a assistência ao paciente ostomizado. Logo, uma das metas dos enfermeiros estomaterapeutas, também, deveria ser organizar e auxiliar na capacitação de profissionais, para melhorar a qualidade dessa assistência, tendo como base as dificuldades dos profissionais(3).

 3 METODOLOGIA

 A pesquisa foi qualitativa, exploratória e descritiva, realizada em um Serviço de referência no atendimento ao ostomizado, de uma Instituição Pública de Saúde, de Porto Alegre/RS. O objetivo foi conhecer como as mulheres submetidas à cirurgia de colostomia conviviam com a ostomia intestinal. Os objetivos específicos foram identificar as dificuldades vividas por mulheres com ostomia intestinal e as mudanças nos seus hábitos de vida.

A população estudada constituiu-se mulheres adultas, que se estiveram na Unidade de Saúde para adquirirem seus dispositivos, no período de janeiro a fevereiro de 2004. A coleta de dados foi realizada por uma das autoras da pesquisa. As entrevistas com as mulheres foram realizadas na instituição de saúde em estudo, no setor de atendimento aos ostomizados. A pesquisadora apresentava-se, explicava o estudo e convidava o sujeito a participar do mesmo. Foi utilizada entrevista semi-estruturada, gravada em fita k-7, transcrita na sua integra, com média de duração de 40 minutos. As mulheres, que aceitaram participar do estudo, assinaram um termo de consentimento livre pós-informado. Os dados foram analisados pelo método de análise temática(15).

O estudo foi autorizado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Instituição, e foram seguidas as normas da Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde(16).

 4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

 No período de janeiro a fevereiro de 2004, 15 mulheres com ostomia intestinal foram atendidas no Serviço de Saúde em estudo. Dessas, 12 aceitaram participar da pesquisa. Com relação à caracterização das mulheres investigadas, constatou-se que a idade das participantes compreendia entre 34 e 79 anos; quanto à escolaridade, uma era analfabeta, duas tinham o Ensino Fundamental incompleto e quatro concluído, uma tinha o Ensino Médio incompleto e duas concluído e, duas mulheres tinham o Curso Superior. Quanto à ocupação, seis eram aposentadas, cinco do lar, e uma era artista plástica e escritora. O diagnóstico que predominou foi o câncer de intestino e o câncer de reto, sendo que o tempo de convívio com a ostomia variou de 2 a 38 anos. Na população, em geral, a idade de ocorrência do câncer colorretal é, principalmente, acima dos 60 anos, e o risco é menor na idade entre 40 e 59 anos. No entanto, as pessoas com hereditariedade do câncer colorretal correm maior risco(17).

A sobrevida de cinco anos é de 40 a 50% entre pacientes com câncer colorretal, devido, prioritariamente, ao diagnóstico tardio e às metástases. Quando esse câncer é detectado na fase assintomática, o índice de sobrevida de cinco anos alcança 90%(2;18;19 ). Entretanto, esse tipo de câncer, na maioria das vezes, produz sintomas pouco perceptíveis e, quando é sintomático, a doença já está em fase avançada(21).

Nesse contexto, constatou-se que a sobrevida de 50% dos sujeitos do estudo era maior que a referendada em algumas pesquisas (2,18,19). Além disso, duas das mulheres entrevistadas estavam com sobrevida superior a 20 anos. Nas entrevistas, evidenciou-se que elas realizavam acompanhamento periódico de saúde e referiram que controlavam a alimentação, ingerindo fibras. Outro fator que contribuiu para uma sobrevida maior que cinco anos, foi o fato de não ter ocorrido metástase nas mulheres que participaram do estudo.

Na análise dos dados das entrevistas, destacaram-se as seguintes categorias: desconhecimento sobre a cirurgia; dificuldades no dia-a-dia; sexualidade e imagem do próprio corpo; preocupação com a família e ostomia intestinal como alternativa para continuar viva.

             A categoria desconhecimento sobre a cirurgia evidenciou que as mulheres entrevistadas desconheciam previamente o procedimento cirúrgico: aspectos da cirurgia em si, ostoma intestinal e suas implicações no seu dia-a-dia. Isto é, a maioria acreditava que iria submeter-se a uma cirurgia para a retirada de um tumor, mas não sabia que isso significaria a convivência, para o resto de sua vida, com uma bolsa coletora de fezes, em seu abdômen.

Levei um susto quando acordei e estava com um corte enorme na barriga, pois eu pensei que iam retirar meu ânus e não cortar a barriga (S2).

Nunca tinha ouvido falar nisso, os médicos tinham me falado de outra maneira, porque eu nunca tinha ouvido falar em colostomia. Eu não tinha nem idéia do que era [...]. (S3)

Eu não sabia o que era colostomia, quando eles me falavam eu achava que era o nome da cirurgias [...}. Quando acordei da cirurgia e vi essa bolsa na barriga, eu entrei em parafuso [...]. (S7)

A ostomia intestinal consiste em alteração radical, tanto da anatomia e da imagem corporal, como da fisiologia em relação à forma de eliminação das fezes. A assistência psicológica prestada pelo enfermeiro ao ostomizado visa fornecer informações que auxiliem a adaptação à nova condição de vida, bem como o incentivo para o autocuidado (3), pois, este, além de desmistificar os cuidados com o ostoma, auxilia a aceitação da alteração da imagem corporal e propicia o aprendizado de conviver com o ostoma.

Nas falas das mulheres, observou-se que elas não receberam informações nem preparo necessários para a convivência com a ostomia, considerada uma falha, pois a orientação para a nova situação de vida é de suma importância nos primeiros tempos após a cirurgia. Entretanto, a figura da enfermeira, como o profissional de saúde que prestou orientações sobre os cuidados com a ostomia, principalmente na alta hospitalar, foi verbalizado pela maioria das entrevistadas:

No Hospital de Clínicas, recebi muito apoio da enfermeira [citou o nome] [...]. (S1)

Recebi muito apoio da enfermeira [citou o nome], de todo pessoal de enfermagem também e do médico que me operou (S2).

Antes de eu dar alta a enfermeira me explicou tudo sobre a colostomia, como recortar, limpar  [...] (S4).

Convém indagar e responder por que várias mulheres, deste estudo, citaram o nome da enfermeira. Esse fato demonstra a importância do vínculo o paciente, pois, quando estabelecido, a comunicação pode ser mais clara e objetiva. Nesses casos, é possível perceber uma otimização no entendimento do paciente.

A categoria dificuldades do dia‑a-dia abordou como é difícil para essas mulheres inserirem a convivência com o ostoma, no cotidiano de suas vidas. Muitas das entrevistadas eram ostomizadas havia mais de cinco anos. Mas, apesar desse tempo de “adaptação”, ainda procuravam outras possíveis alternativas para lidarem com as mudanças na sua vida, causadas pela ostomia intestinal. Após a cirurgia, as dificuldades aparecem coligadas à insegurança, à vergonha e ao medo da realidade, principalmente no que se refere ao cuidado com a ostomia, com a bolsa e tudo o que envolve as eliminações intestinais. Relatavam, por exemplo, a insegurança quanto à eliminação involuntária dos gases, ao odor, ao medo da bolsa estourar, prioritariamente, no convívio social.

A vergonha que sentimos das pessoas é muito grande, a gente não controla os gazes nem as fezes saindo. Isso tudo é muito difícil de administrar [...] (S7)

 

[...] Me sinto muito insegura principalmente em lugares abafados, fechados, sem corrente de ar, fico pensando que as pessoas estão sentindo algum cheiro.[...] estou sempre com um vidrinho de perfumes para colocar na bolsa. [...] (S8)

 

[...] No começo, não queria sair de casa, eu chorava muito, com medo de ficar suja ou com cheiro perto dos outros [...]. Eu tenho que estar sempre me trocando, pois não agüento ficar suja [...] (S9)

 

 [...] tenho vergonha quando começam sair gases da bolsa ou ela começa encher. Não posso mais sair para jantar fora, tenho medo que a bolsa encha e comece a vazar [...] (S12)

 

O ostoma é resultante de uma cirurgia pouco visível, mas traumatizante devido à nova e inesperada mudança nos hábitos de vida do ostomizado, tais como a perda do controle sobre as eliminações e a necessidade do uso de uma bolsa coletora de fezes, que desempenham a função orgânica perdida, recolhendo as eliminações intestinais(21).

A sexualidade e a imagem do próprio corpo foi a categoria que ressaltou o olhar das mulheres em relação ao próprio corpo e à necessidade de mudar o estilo de roupas, para “esconder a bolsa de colostomia”.

[...] eu não tinha coragem de olhar para o meu corpo, eu não queria olhar, não tinha coragem, achei que ali já tinha acabado tudo, que ali tudo tinha terminado [...] (S1)

 

[...] com o tempo, apareceu hérnias na minha barriga fiquei com uma enorme barriga, sou obrigada andar sempre com roupa preta e comprida [...]

 

Não posso usar roupas justas, miniblusas, as calças têm que serem acima da cintura para tapar a bolsa, as blusas devem ser escuras e bem soltas. Isso tudo é horrível, é algo muito brusco que acontece na tua vida (S12).

 

A imagem pessoal é uma forma de comunicação não-verbal, pois transmite mensagens que são captadas e decodificadas(22). Nesse sentido, o uso da roupa preta ou escura pode ser a forma de expressar o luto pela condição de ser ostomozida, já que o processo de luto é uma das formas de enfrentamento de perdas(23), vivenciadas pelo sofrimento gerado pela “mutilação”.

As falas das entrevistadas, também, destacaram a dificuldade de relacionamento com o sexo oposto, após a ostomia intestinal; demonstraram sentir vergonha do seu parceiro e ter de dividir algo tão íntimo com outra pessoa.

Nunca me casei, nunca convivi com homem nenhum dentro de casa [...] depois da cirurgia e até bem antes, tem mais de 20 anos que não tenho relação com homem. [...] deve ser terrível, pois a bolsa não avisa quando está saindo as fezes e no momento íntimo ter que dividir isso é muito difícil, porque as fezes são uma coisa nojenta, não é gostosa nem cheirosa, tu tens que amar muito a pessoa para ter um convívio junto de novo (S1).

 

Ainda bem que quando estava colostomizada já não estava mais com meu marido, pois não ia ser fácil estar casada e ostomizada, e depois nunca mais me relacionei com homem nenhum, pois tenho que cuidar de mim e não quero ninguém para dividir isso [...]. Agora, se aparecer alguém que me ajude, eu até posso aceitar (S5).

 

[...] tenho uma pessoa que está comigo e que vivemos bem. Ele me aceitou assim, mas tenho vergonha dele e procuro sempre estar bem limpinha nas horas íntimas, mas mesmo assim é muito difícil (S7).

 

[...] Eu tenho muita vergonha, depois da cirurgia nunca mais me relacionei com homem, nem me interesso (S9).

 

Ficou evidente que a opção por viver “sozinha” foi a única alternativa encontrada por essas mulheres para lidar com a sua intimidade depois de ostomizada, pois, nas entrelinhas, disseram que apesar de considerarem difícil o convívio com o sexo oposto, aceitariam a convivência com alguém que as ajudasse a superar as dificuldades. Contudo, quando isso acontecia o sentimento de culpa e a vergonha ainda prevaleciam por não terem controle sobre as eliminações e os odores. As entrevistadas também referiram o preconceito dos homens e a falta de compreensão por parte dos mesmos.

Uma das maiores dificuldades foi voltar me relacionar com homens. Me sinto feminina, mas  já perdi muitos namorados. Todos que sabem que sou ostomizada dão no pé, nem ficam sabendo o que é, somente sabem que é algo anormal e se assustam e vão embora. Esse é um problema que ainda enfrento, ainda estou à procura da minha dupla evolutiva e sei que ainda vou achar (S2).

 

[...] Mudou muito, encontrei um marido ruim para mim, depois da cirurgia, virou a não prestar, queria me matar eu e a nossa filha, só para o menino que ele não era ruim. [...] começou a levar mulheres para dormir na minha cama. Um dia ele me disse que queria liberdade para procurar outras mulheres e eu dei essa liberdade a ele e ele foi embora. Tudo isso aconteceu na minha vida depois da cirurgia, meu marido não me aceitou, me dizia que não se sentia bem dormir comigo usando essa bolsa (S11).

 

A ostomia pode representar uma violação da intimidade, sendo muito difícil a adaptação a essa nova realidade. Ou seja, culturalmente, aceitam-se, com naturalidade, os pressupostos de que é na infância que o controle esfincteriano é estimulado e ensinado, e as eliminações devem ser feitas em locais adequados e com privacidade(24). Nessa perspectiva, “o repúdio aos escrementos, a exigência quanto ao comando dos intestinos e esfíncteres inaugura a nossa entrada na cultura”(23:345).

A ostomizada também enfrenta problemas de ajustamento, principalmente quanto à atividade sexual. As mulheres do estudo referiram a demora para reassumir essa atividade, e algumas disseram que “não faziam mais questão”. A bolsa coletora é considerada um empecilho, tanto pelo odor quanto pelo risco de a bolsa atrapalhar ou vazar durante o ato sexual. Mas, é pertinente sinalizar que essas mulheres expressaram, com alguma fluidez, as situações relacionadas à sua sexualidade. Essa faceta se diferencia de outro estudo realizado, no qual se obteve ausência de respostas em relação à atividade sexual em 23% dos respondentes(6).

            A preocupação com a família foi a categoria que significou preocupação das entrevistadas com sua família, basicamente em relação aos filhos, quando ficaram sabendo o diagnóstico de câncer, e a necessidade de fazer a ostomia. Nas falas, relataram a ansiedade em relação ao cuidado dos filhos em poupá-los de sofrimentos, bem como a sua responsabilidade em continuar presentes na sua criação.

 

O mais difícil foi avisar a minha filha que estava na Alemanha [...]. É horrível ter que levar a nossa doença até a nossa família. (S2)

 

Nessa época eu tinha filhos adolescentes, então fiquei muito mal, na época tinha 45 anos e meus filhos todos em casa sofrendo junto comigo, isso fazia eu me sentir mal (S3).

 

[...] no começo não é fácil. Na época, eu já era viúva, tinha um filho que precisava de mim e eu precisava viver para ficar com ele (S7).

 

Muito desespero, pois eu tinha dois filhos pequenos, um de 3 e outro de 5 anos [...] Então dirigi meu pensamento a Deus e pedi a Ele que me deixasse viva para criar meus filhos [...] (S11)

 

A família, na maioria das vezes, é o elemento mais próximo do ostomizado, tendo os seus integrantes o direito e o dever moral de serem os primeiros a ajudá-lo, pois o fato de poder ajudar diminui o impacto, criado pela situação. Quando a preparação da família e do ostomizado é iniciada na fase pré-operatória, o processo é aceito com mais consciência e serenidade, contribuindo para uma reabilitação melhor e precoce(18). Porém, conforme verbalizado pelas entrevistadas, havia uma preocupação centrada nos filhos, que perpassava a idéia do quanto as mulheres ainda se mantinham responsáveis pelo bem estar dos demais familiares; com isso, muitas vezes, secundarizavam sua própria necessidade de cuidado.

A categoria a ostomia intestinal como alternativa para continuar viva realçou o entendimento, para algumas mulheres, de que submeter-se a uma ostomia intestinal significava a possibilidade de “vencer” o câncer. Ou seja, elas consideravam a necessidade da ostomia intestinal uma alternativa para continuarem vivas.

Assim, a importância atribuída à vida foi o que deu força a essas mulheres para lutarem e enfrentarem os obstáculos e dificuldades que surgiram após a cirurgia. Nas falas, relataram a força, a fé e a persistência para continuarem vivendo, mesmo que, para isso, tivessem que conviver com um ostoma.

Eu agradeço muito a Deus, porque ele me deixou aqui, para criar meus filhos, por esse método estranho, muito estranho [...] (S1)

 

Nós viemos aqui pra esse planeta para evoluir, não importa que seja sem um braço, sem uma perna, sem um ânus, tu tá evoluindo igual, o que tu tem que manter a mente sã.Isso é o mais importante de tudo. [...] Eu me sentia bem porque tinha esperança de ter eliminado todo o problema, e tinha mesmo, porque faz 12 anos e nunca voltou e funciona tudo bem (S2).

 

[...] No momento, não pensei em nada, aceitei bem porque eu tinha que sobreviver, o que vem pra gente tem que aceitar, eu não fiquei revoltada, nada disso, aceitei bem [...]. Fiquei muito tranqüila e feliz, pois o médico disse que não tinha ficado nada de câncer (S3).

 

Eu estou vivendo graças a Deus muito melhor do que com o câncer (S5).

 

[...] graças a Deus estou aqui há 11 anos viva e vivendo bem (S7).

 

Então eu pensei: seja o que Deus quiser, eu quero viver, graças a Deus estou bem, não tenho dor, estou bem [...] (S10)

 

As falas acima revelaram que a força que essas mulheres encontraram, para continuarem vivendo, veio da espiritualidade, configurada na imagem de Deus. Na verdade, este Deus foi mencionado como uma forma de conforto e agradecimento, pela ostomia intestinal ser a alternativa para continuarem vivas e ficarem livres do câncer. Pode-se considerar tal comportamento como uma maneira otimista e positiva de lidar com uma situação grave, com risco de vida iminente, como o câncer de cólon e de reto. Para as entrevistadas, a ostomia intestinal significava dificuldades no dia-a-dia, restrições e mudança de hábitos, mas também a possibilidade de cura e de continuarem vivas. A fé em Deus auxiliou no enfrentamento das dificuldades e mudanças ocorridas na vida de cada uma delas. Nesse sentido, à medida que o indivíduo reconhece as percepções pessoais acerca do significado da vida, da doença e do sofrimento, amplia-se o auto-conhecimento e se fortalecem os sentimentos de valor e aceitação, mediante o aprofundamento das relações com Deus(25:468).

 

4 CONCLUSÃO

A pesquisa permitiu conhecer como as mulheres do estudo convivem com a ostomia intestinal. As dificuldades mais citadas foram o cuidado com a bolsa coletora, a insegurança e a vergonha quanto a odor e gases, interferindo no relacionamento social, a rejeição quanto à imagem corporal e a falta de orientação sobre a cirurgia.

As principais mudanças na vida dessas mulheres, após a cirurgia para realização de ostomia intestinal, estão relacionadas à não‑aceitação do corpo e à dificuldade do convívio com a bolsa coletora. A interferência na sexualidade também foi citada algumas não se relacionaram mais com homens e referiram que não faziam questão; uma foi rejeitada pelo marido, outra disse que era abandonada pelos namorados quando ficavam sabendo que é ostomizada. O relacionamento social também era difícil; algumas das entrevistadas não tinham vontade de sair de casa ou limitavam as atividades sociais, por medo de “acidentes com a bolsa de colostomia”, como o odor, eliminação de gases ou rompimento da bolsa. Entretanto, as mulheres consideravam que tinham uma melhor qualidade de vida sem o câncer, apesar da ostomia intestinal, e que a esta significava a alternativa para continuarem vivas.

O estudo desvelou a importância da orientação ao paciente no pré e pós-operatório, no sentido de diminuir a ansiedade, esclarecer dúvidas sobre a ostomia, bem como prepará-lo para conviver com a mudança fisiológica na forma da eliminação das fezes e com todas as implicações decorrentes dessa alteração, como: o odor; a eliminação involuntária de gases; o uso obrigatório de um dispositivo no abdome; o manuseio das fezes ao limpar a bolsa. Mas, talvez, a maior contribuição deste estudo se encontra na visibilidade de um universo feminino enredado, ainda, com questões que posicionam as mulheres enquanto sujeitos que têm que promover o bem-estar muito mais à família, aos filhos, aos homens e aos outros do que a si próprias; que delimita uma mulher a expressar-se enquanto ser humano capaz de seduzir e de ter saúde, ultrapassando a lógica do que é considerado padrão em nosso contexto social.

Enfim, considera-se que estudos, como este, contribuem para o planejamento do cuidado ao paciente com ostomia intestinal, tanto no período do pré-operatório como no preparo para a alta hospitalar e no atendimento ambulatorial. A enfermeira é o profissional da saúde que ocupa posição de destaque no planejamento da assistência e do cuidado desse paciente, pois o conhecimento das principais dificuldades enfrentadas, em especial pelas mulheres, auxilia o direcionamento desse cuidado.

 

REFERÊNCIAS

1- Lima TGS. Curso estomaterapia: estomias intestinais: conceito, classificação. Enferm. Atual, Rio de Janeiro 2002 jan/fev;2(7):23-5.

2- Smeltzer SC, Bare BG. Tratado de enfermagem médico‑cirúrgica. Rio de Janeiro: Guanabara‑Koogan; 2002.

 3- Gemelli LMG, Zago MMF. A interpretação do cuidado com o ostomizado na visão do enfermeiro: um estudo de caso. Rev. Latino-am. Enfermagem, Ribeirão Preto 2002 janeiro; 10(1):34-40.

 4- Paula MAB; Santos VLCG. O significado de ser especialista para o enfermeiro estomaterapeuta. Rev. Latino-am. Enfermagem, Ribeirão Preto 2003 jul/ago;11(4):474-82.

 5- Farias DHR, Gomes GC, Zappas S. Convivendo com uma ostomia: conhecendo para melhor cuidar. Cogitare Enfermagem, Curitiba 2004 jan/jun;9(1):25-32.

 6- Michelone APC, Santos VLCG. Qualidade de vida de adultos com câncer colorretal com e sem ostomia. Rev. Latino-am. Enfermagem, Ribeirão Preto 2004 nov/dez;12(6):875-83.

7- Paegle SO, Silva MJP. Análise da comunicação não-verbal de pessoas portadoras de ostomia por câncer de intestino em grupo focal. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto 2005 jan/fev;13(1):46-51.

8- Bechara RN, Bechara MS, Bechara CS, Queiroz HC, Oliveira RB, Mota RS, Secchin LSB, Oliveira Júnior AG. Abordagem Multidisciplinar do Ostomizado. Rev bras ColoProct. 2005 jun;25(2):146-149.

9- Aukamp V, Sredl D. Collaborative care management for a pregnant woman with an ostomy. Complementary Therapies in Nursing and Midwifery 2004 feb;10(1):5-12.

10- Santos VLCG, Cesaretti IUR. Enfermagem alivia o desconforto de pessoas ostomizadas. Nursing, São Paulo 2001 nov;4(42):6-7.

11- Cesaretti IUR, Santos VLCG, Filippin, MJ, Lima SRS. O cuidade de enfermagem na trajetória do ostomizado: pré & trans & pós-operatóriio. In: Santos VLCG, Cesaretti IUR, organizadoras. Assistência em estomaterapia: cuidando do ostomizado. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 113-31.

 12- Lyons A. The ostomate as a total person [abstract]. Ostomy Association of Southwestern Indiana 2005 sept;32(11). Available fron: <www.ostomy.evansville.net/septembernews7.htm> Accessed at: 2005 sept 10.

 13- Support groups: help the recovery process [abstract]. Evansville Ostomy Association 2004 jun;31(9). Available fron: <www.ostomy.evansville.net/junenews6.htm>  Accessed at: 2005 sept 10.

  14- Costa IG, Maruyama SAT. Implementação e Avaliação de um plano de ensino para auto-irrigação de colostomia: estudo de caso. Revista Latino-am. Enfermagem, Ribeirão Preto 2004 12(3):557-63.

15- Minayo MC. Pesquisa Social. 21ª ed. Petrópolis: Vozes; 2002.

 16- Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos: Resolução n° 196/96. Brasília (DF); 12f.1996. Disponível em: <http://www.bioetica.ufrgs.br/res19696.htm> Acessado em: 10 ago 2004.

 17- Fernandes I. Ostomizado: redescobrindo a vida saudável. Porto Alegre: Associação Gaúcha de Ostomizados; 2001

 18- Fleck JF. Rotinas assistenciais para o tratamento de pacientes com câncer. Porto Alegre: Hospital de Clínicas de Porto Alegre;1999.

 19- Sasse, A. Câncer de cólon e reto. Campinas, 2004. Disponível em: <http://www.andre.sasse.com/colon.htm> Acessado em: 23 maio 2005.

 20- Saad-Hossne R, Prado RG, Bakonyi Neto A, Lopes PS, Nascimento SM, Santos CBV. Estudo retrospectivo de pacientes portadores de câncer colorretal atendidos na Faculdade de Medicina de Botucatu no período de 2000-2003. Rev bras ColoProct.  2005 jan/março;25(1):31-7.

21- Boog MCF, Ceolim MF. Orientações para uma nova vida: guia para ostomizados. São Paulo: UNICAMP; 1993.

 22- Nascimento MAL, Figueiredo NMA, Cardim MG, Ghidini R. The visual communication transmitted by nurses´s body image to the nursing´s students. Online Brazilian Journal of Nursing [online] 2005 April; 4(1) Available fron: <www.uff.br/nepae/objn401nascimentoetal.htm> . Accessed at: 2005 sept 10.

 23- Neder CR. Considerações conceituais sobre o suporte psicológico ao paciente ostomizado. In: Santos VLCG, Cesaretti IUR. Assistência em estomaterapia: cuidando do ostomizado. São Paulo: Atheneu, 2001. p.327-52.

 24- Furtani R, Ceolim MF. Conviver com um ostoma definitivo: modificações relatadas pelo ostomizado. Rev Bras Enferm, Brasilia (DF) 2002 set/out; 55(5):586-91.

 25- Santos VLCG, Kimura M. Qualidade de vida e reabilitação do ostomizado. In: Santos VLCG, Cesaretti IUR. Assistência em estomaterapia: cuidando do ostomizado. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 453-75.