Discriminação racial – fator de risco para a hipertensão arterial? - estudo exploratório tipo survey

Isabel CF da Cruz

Resumo. Situação-problema:  Desconhecimento sobre as interações dos clientes com o sistema de saúde, assim como sobre as práticas institucionais realizadas, a partir da perspectiva da clientela, com recorte por cor/raça, no sentido de evidenciar diferenciais ou disparidades na atenção à saúde dos grupos étnicos. Objetivo: O estudo busca de informações sobre as experiências de cuidado de saúde do cliente com hipertensão arterial, observando se há diferença entre os grupos (brancos e negros), em função da cor/raça ou origem social, quanto ao acesso ao serviço de saúde e o grau de satisfação com o cuidado prestado. Método: Estudo exploratório tipo survey junto aos usuários do SUS. Resultados:  A percepção do sentimento de discriminação apresentou uma forte associação entre as variáveis cor/raça (p=0,01), ou seja, mais negros (15,3%) referem discriminação nos serviços de saúde do que os brancos (2,4%). Para os usuários negros que reconhecem o sentimento de discriminação (p=0,077), a odds calculada sugere uma proteção. Conclusões: Há diferenças no tratamento da hipertensão arterial para os clientes brancos e negros, em detrimento destes últimos, que podem ser atribuídas à variável cor/raça.

Palavras-chave: racismo; negros; hipertensão; pressão arterial

 Introdução

O racismo institucional é definido como o fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Assim, ainda que possa haver a provisão do cuidado ele pode não ser adequado tendo em vista os resultados quanto ao controle do problema de saúde. Por esta razão, o grupo que mais fica em desvantagem e risco de vida é aquele constituído pelas pessoas que fazem parte dos grupos não-hegemônicos.

Para neutralizar o racismo institucional nas instituições de saúde é preciso identificar as barreiras à atenção à saúde que têm origem em fatores culturais e históricos. Dentre elas, a discriminação por cor ou pertencimento étnico ou racial causadora de diferenciais ou disparidades na atenção à saúde dos grupos étnicos.

Discutimos neste artigo as informações obtidas junto aos usuários do Sistema Único de Saúde sobre as práticas institucionais realizadas para o tratamento da hipertensão arterial (percepção do estado de saúde e de risco, acesso ao cuidado, comunicação profissional-cliente e grau de satisfação). Buscamos também as experiências de discriminação, a partir de uma perspectiva étnica, observando diferenciais ou disparidades entre usuários brancos e negros que pudessem revelar o racismo institucional

Metodologia

O método escolhido para abordagem do problema foi observacional, não-analítico, transversal, visando verificar a prevalência, ou seja, a proporção de casos existentes de  percepção de discriminação no grupo de entrevistados atendidos pelo SUS. Para tanto foi desenvolvido um questionário elaborado pela autora e validado por meio da literatura[1] [2] [3] [4] [5], de um painel de especialistas e de dois estudos-piloto.

O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa (CEP), do Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), do Centro de Ciências Médicas (CCM), da Universidade Federal Fluminense (UFF), em parecer  CEP CCM/HUAP no. 92/03, em 16 de julho de 2003.

A população acessível foi constituída pelas as pessoas com hipertensão arterial, usuárias do SUS –RJ, e que tivessem consulta agendada com o clínico ou cardiologista,  em março e abril de 2004. As pessoas incluídas no estudo têm idade superior a 18 anos e capacidade de responder, coerentemente, às questões apresentadas. As entrevistas foram realizadas por graduandos devidamente treinados pela pesquisadora tanto para a entrevista quanto para a técnica de verificação da pressão arterial com um esfigmomanômetro semi-automático. Ao final de cada entrevista, o cliente teve a pressão arterial verificada pela entrevistadora com o aparelho semi-automático. O valor obtido com a verificação era registrado em um impresso e dado para o cliente.

Para calcular o tamanho da amostra, consideramos o censo do IBGE de 2000 e  as proporções estimadas por raça que foram publicadas no site www.observatorioafrobrasileiro.org. Consideramos também os resultados publicados pelo MS sobre a campanha do HiperDia para obter uma proporção de 40% de pessoas com hipertensão arterial. Assim, o tamanho da amostra com precisão de 0,05 para o Município do Rio de Janeiro foi de 59 negros (pretos e pardos), 85 brancos e 4 amarelos. Neste estudo, analisamos apenas os dados referentes a negros e brancos, ou seja, 144 clientes. Com a autorização da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Rio de Janeiro (RJ), assim como da direção de cada Centro ou Posto de Saúde (uma na zona sul da cidade, outra na zona oeste e a terceira na região central), a seleção da amostra foi incidental conforme a conveniência para a pesquisadora e entrevistadoras, de acordo com os períodos de atendimento, no período de 15 a 31 de março de 2004 até completar cada estrato amostral. Caso concordassem com a entrevista, os clientes realizavam, com as entrevistadoras, uma leitura partilhada do termo de consentimento e o assinavam.

A construção do banco e o tratamento estatístico dos dados foram feitos utilizando os programas Excel 95/7 e SPSS 10.0. Para o tratamento dos dados, além da análise descritiva realizada para as variáveis citadas acima, para as variáveis qualitativas foi utilizado o nível de significância de 10%, utilizando os métodos Qui-quadrado para variáveis categóricas e o teste T-student para as variáveis contínuas. Os dados foram submetidos à regressão logística multinomial.

Apresentação dos Resultados

Discutimos a seguir os achados processos, atitudes ou comportamentos indicativos de discriminação derivada de estereótipos, preconceito inconsciente, ignorância ou falta de atenção e que têm o potencial de colocar as pessoas e grupos em situações de desvantagem por causa de sua cor, cultura ou origem étnica.

A amostra estudada é constituída em sua imensa maioria de mulheres, com idade média de 58,3 anos e desvio padrão de 11,89 anos. Ainda que o estudo tenha limitações que não permitam a generalização, vale observar que se  o conceito de acesso aos serviços de saúde está relacionado à percepção das necessidades de saúde e à conversão destas necessidades em demanda e destas em uso, a população adulta jovem (negra e branca; homem e mulher) em risco de hipertensão arterial encontra-se vulnerável à doença e suas complicações. Há que se intensificar as ações da atenção básica no sentido da busca ativa do potencial cliente.

Dados demográficos

A grande maioria da amostra possui uma baixa escolaridade (brancos (89,5%) e de negros (89,4), com uma diferença de 3,1 pontos percentuais). A análise da regressão logística multinomial evidenciou que a baixa escolaridade representa um risco de 1,925 para os clientes negros(as). Por conseguinte, o sistema de saúde precisa criar e/ou adequar a educação em saúde, observando os princípios da educação de adultos em acordo com as teorias de aprendizagem e desenvolvimento do pensamento humano. Os dados encontrados sugerem que a baixa resolutividade no controle da hipertensão pode estar associada à escassez de ações promotoras do empoderamento do cliente, de incentivação da autonomia e do autocuidado, que conduzam à adesão ao tratamento[6].

Merece destaque o fato da amostra ser composta por inativos (72,9% são brancos e 66,6% negros). Infelizmente, este não é um viés do nosso estudo. Este é ainda um viés do Sistema Único de Saúde. Reiteramos que a população adulta jovem (negra e branca; homem e mulher) trabalhadora, em risco de hipertensão arterial, encontra-se vulnerável à doença e suas complicações. Há que se intensificar e diversificar (quanto a horário e local) as ações da atenção básica.

Os resultados encontrados reiteram o que já é sabido: os brancos possuem uma maior remuneração mensal. Os clientes negros ganham menos e utilizam maior tempo de locomoção para o trabalho. Contribui ainda para o aumento relativo da renda o fato, estatisticamente significativo, inclusive, de que os clientes que se autoclassificam da cor branca possuem um menor número de dependentes. Estes achados são importantes, pois o trabalho, tanto quanto o desemprego, é uma determinante social de saúde. A análise da regressão logística multinomial revelou que para os negros que trabalham (p=0,057) a odds calculada sugere uma proteção. Ainda que seja melhor estar empregado do que desempregado, as doenças cardiovasculares, tal como a hipertensão arterial, parecem ter uma íntima relação com as condições do trabalho. Neste sentido, os dados encontrados sugerem uma vulnerabilidade do trabalhador negro quanto à hipertensão arterial e suas conseqüências, mesmo em acompanhamento pelo Sistema Único de Saúde, em um contexto discriminador por cor/raça.

Um resultado que, no nosso entender, merece um estudo posterior de aprofundamento sobre a sua influência na adesão ao tratamento é a percepção sobre as despesas com a doença. Esta variável mostrou-se estatisticamente significativa, ou seja, os clientes que se auto-classificaram de cor branca apresentaram menor probabilidade de percepção de aumento das despesas. Verificamos que há para a grande maioria um gasto mensal com medicamentos de valor igual ou inferior a 9 reais. Embora, os entrevistados que se auto –classificam de cor branca tenham um maior gasto com medicamentos a 10% de significância, vemos que 83,1%, negros encontram-se nesta faixa de gastos, sendo ainda o grupo de menor renda.

Como as pessoas negras referem um aumento nos seus gastos com o diagnóstico de hipertensão, podemos supor que elas não se beneficiam com a distribuição gratuita de medicamentos ou que mesmo com o recebimento do benefício outras despesas não são consideradas pelo Sistema Único de Saúde como, por exemplo, gasto com o deslocamento ou a necessidade de consultas de emergência em consultórios particulares.

Se o custo do tratamento pode comprometer a adesão, a presença de efeitos colaterais, também. Um maior número de negros (23,7%) referiu ter sofrido algum tipo de efeito colateral com o medicamento da hipertensão.

Pela análise da regressão logística multinomial, as variáveis queixas com medicamentos e gastos com medicamentos são estatisticamente significativas (p= 0,066 e p= 0,086, respectivamente) apenas para os usuários negros, evidenciando um maior risco de comprometimento da meta terapêutica.

Curiosamente, ainda que o perfil socioeconômico da população negra a aproxime da linha de pobreza, ele não é suficiente para aproximá-la dos benefícios sociais dirigidos aos pobres. Dos clientes entrevistados que recebem auxilio financeiro, 41,2 % são brancos e 30,5 %, negros. Apesar de uma diferença de 10,7 pontos percentuais, não se encontrou diferença estatística significativa por raça/cor (p=0,423).

Um dado interessante, ainda que de baixa freqüência, é a posse de planos privados de saúde na amostra estudada. Foi encontrada uma diferença de 2,8 pontos percentuais entre brancos (4,9%) e negros (2,1%) no que tange ao plano de saúde e uma diferença de 2,1 pontos percentuais entre brancos (2,8%) e negros (0,7%) quanto ao plano odontológico. Estes resultados mostram que embora o SUS seja gratuito e universal, os usuários do SUS, mesmo de baixa renda, comprometem uma parte de seu orçamento no pagamento de planos privados. Pagam impostos, pagam planos de saúde e utilizam ambos os serviços. Sós isto nos sugere que nem um, nem o outro, oferece resolutividade.

A maioria possui casa própria, com um a três cômodos. Mas, a variável falta de esgoto foi estatisticamente significativa (p=0,032), o que nos permite afirmar que os clientes que auto-classificaram de cor branca apresentaram menor porcentagem na falta de esgotos da sua casa/bairro (5,9%) do que os clientes negros (16,9%). Cabe ressaltar que o acesso à água tratada, à luz e, principalmente, à  coleta de lixo, é maior para os clientes brancos.

Diante dos resultados encontrados sobre escolaridade, trabalho, renda e moradia, não surpreende que apenas 8,5% dos clientes negros entrevistados percebam a saúde como muito boa (1,7%) ou boa (6,8%). Uma diferença de 13,9 pontos percentuais a favor dos brancos em relação aos clientes negros. Observamos também que 17% dos clientes negros entrevistados percebem a saúde como ruim (15,3%) ou muito ruim (1,7%). Uma diferença de 5,2 pontos percentuais em detrimento aos clientes negros. Uma vez que a percepção sobre o estado de saúde é uma variável considerada nos estudos sobre demanda de cuidado de saúde, com base nos achados podemos concluir que os clientes negros entrevistados, mesmo em atendimento pelo sistema de saúde, apresentam uma demanda por ações de saúde e bem-estar que provavelmente estão além da consulta médica e da distribuição de medicamento de uso contínuo, mas tão ou mais importantes quanto estas.

    Percepção do estado de saúde e percepção de risco

        Os dados encontrados revelam ainda que a auto-avaliação regular ou negativa de saúde co-existe com um tempo médio de tratamento na(s) unidade(s) de 3,7 anos. Parece realmente que o tempo de tratamento não exerce um efeito muito positivo sobre a saúde das pessoas, pois os resultados mostraram que existe diferença significativa entre a cor/raça e o tempo de tratamento, isto é, os negros da amostra estudada possuem um maior tempo no tratamento.

        Em relação ao diagnóstico médico referido, observamos que as variáveis doença cardíaca (p=0,036), problema renal (p=0,040) e ansiedade ou depressão (p=0,039) apresentaram–se estatisticamente significantes. Mais brancos referem diagnóstico ou problema de saúde. Porém, na análise da regressão logística multinomial, vimos que a ansiedade ou depressão revelou-se estatisticamente significativa e com maior risco (de 1,522 a 4,215) para os clientes negros em relação aos clientes brancos em todos os níveis da hipertensão arterial

        A promoção da saúde e a prevenção de complicações ainda não fazem parte do receituário das unidades de saúde. Dentre os entrevistados, 94,1% dos brancos e 84,7% dos negros não fazem parte de nenhum programa de combate ao sedentarismo. Dos poucos clientes que realizam alguma atividade relacionada a uma terapia não-farmacológica, apenas 4,2% as realizam em unidades de saúde. Não oferecer cuidados de eficácia reconhecida, baixo custo e elevado benefício, também é uma forma de discriminação.

        Quanto aos comportamentos de saúde/doença, a análise da regressão logística multinomial revelou que a covariável tabagismo possui p-valor igual a 0,046 e um risco de 11,10 para os clientes negros na faixa da hipertensão grave/estágio 3. No nível de hipertensão arterial sistólica isolada, o tabagismo (p= 0,013) oferece um risco de 1,820 para os clientes negros em relação aos clientes brancos. Mostrou ainda que as pessoas negras que não têm acesso ao lazer possuem 3,53 mais chances de hipertensão arterial leve com p= 0,046  e IC (1,02;12,20). Outro comportamento não-saudável estatisticamente significante para a amostra estudada foi o consumo de bebida alcoólica. A pesquisa revelou que as pessoas negras que consomem bebidas alcoólicas possuem 3,25 mais chances de hipertensão arterial grave/estágio 3 com p= 0,04; e 1,978 mais chances de hipertensão sistólica isolada com p= 0,006 em relação aos clientes brancos.

        Verificamos que o uso de terapias alternativas foi estatisticamente significante (p=0,035), revelando que os negros a utilizam mais do que os clientes brancos. O uso de ervas medicinais foi o tratamento alternativo mais referido para hipertensão arterial. Cabe ressaltar, no entanto, que os negros (50,8%), mais do que os brancos (27,1%), não informam ao médico sobre o uso de terapia alternativa. No nosso entendimento, isto pode ser devido ao receio de enfrentar o preconceito ainda existente nas instituições de saúde quanto às terapias de matrizes africanas e indígenas.

    Acesso ao cuidado de saúde

        Tanto para os clientes brancos (95,3%) quanto para os clientes negros (93,2%) entrevistados as demandas de saúde não conseguem ser atendidas integralmente em um único lugar. O Serviço de Emergência é o segundo mais referido como fonte regular de atenção em saúde pela amostra estudada (38,9%) mais por usuários negros (40,7%) do que por brancos (37,6%). A análise da regressão logística multinomial revelou também que há maior razão de chance da pessoa negra buscar o 25 vezes mais consultório particular e 15 vezes mais o setor de emergência do que a pessoa branca. Estes achados nos sugerem que a pessoa negra está encontrando muito mais barreiras ao acesso ao cuidado de atenção primária em saúde.

        No que se refere à consulta, mais clientes brancos (77,6%) do que negros (64,4%) avaliaram o tempo de espera longo; todavia, mais clientes negros (71,2%) do que brancos (69,4%) consideraram demorado o intervalo do agendamento da consulta. Estes achados mostram que os clientes brancos queixam-se das condições de imediatas do atendimento. Mas, quando a maioria se queixa da periodicidade do agendamento revela que a educação em saúde é precária, pois os clientes não são capazes de relacionar o aprazamento de sua consulta com a sua condição de saúde. Isto, obviamente, se a unidade de saúde segue o protocolo de agendamento.

        A maioria precisa utilizar algum meio de transporte entre a casa/trabalho e a unidade de saúde, não avaliando esse tempo como longo. Embora a amostra estudada tenha uma idade média elevada, só uma parcela dos clientes brancos (27,1%) e dos clientes negros (26,3%) possui passe livre. Quanto ao custo do transporte, verificamos que os brancos têm uma média de gastos de 2,54 reais, desvio padrão de 5,49 com erro médio de 0,69; enquanto que os negros apresentaram uma média um pouco superior, 2,7 reais, desvio padrão de 7,3 com erro médio de 1,16. No mosaico da não adesão ao tratamento, o custo do transporte para os clientes negros é mais um ladrilho.

        Verificamos que mais clientes brancos (67,1 %) do que negros (59,3%) são atendidos pelo mesmo médico para o tratamento da hipertensão arterial. Por ser esta é uma condição importante para promover o estabelecimento de vínculo entre o profissional e o cliente, vemos pelos achados que uma parcela significativa de clientes negros está vulnerável à falta de qualidade no atendimento. Cabe observar, que os negros, no período de 12 meses, foram os que referiram ter sido atendidos por mais de 5 médicos 6,7% do total de negros) do que os brancos (2,3% do tal de clientes brancos entrevistados).

        Quanto a atenção pelos profissionais da unidade de saúde, mais clientes brancos referem tratamento cordial do que os clientes negros. Todavia, os clientes negros reagem mais às atitudes percebidas como descorteses falando para a direção do serviço ou responsável (p=0,058). A análise da regressão logística multinomial reiterou a evidência de que quando a pessoa negra percebe que foi tratada de forma descortês pelo serviço de saúde e procura a direção de serviço (p=0,05) ou toma outra atitude (0,08), essa pessoa adquire uma certa proteção quanto ao aumento da pressão arterial, comparado com as pessoas brancas. Ao contrário, os clientes negros que são tratados com descortesia e aceitam como fato de vida (p=0,086) possuem um risco de 3,093 vezes mais do que os de apresentarem problemas quanto à meta terapêutica 5 7. Estes achados nos levam a concluir sobre a importância de desenvolver nos profissionais de saúde as habilidades sobre comunicação terapêutica e assertividade, enquanto também devem ser promovidas para o cliente as atividades de empoderamento, autocuidado e estratégias de enfrentamento do estresse.

        A percepção do sentimento de discriminação apresentou uma forte associação entre as variáveis cor/raça (p=0,01), ou seja, mais negros (15,3%) referem discriminação nos serviços de saúde do que os brancos (2,4%). Cabe ressaltar que a percepção de discriminação – medida subjetiva, portanto, dependente de consciências críticas –, e não de aferições objetivas de sua extensão, pode estar subestimada5.

        Pela análise da regressão logística multinomial, no que se refere à percepção da discriminação e vivências de discriminação, a variável idade permaneceu significante para os níveis hipertensão leve (p=0,069) e sistólica isolada (0,033) da hipertensão arterial com riscos de 1,331 e 1,994, respectivamente para os negros. Este achado pode indicar que além da cor/raça, enquanto uma fator de discriminação e de percepção da discriminação, a idade pode se constituir em mais um estereótipo a ser superado 7. Além da idade, a própria variável cor/raça (p=0,045) apareceu como um fator de risco para os indivíduos que possuem hipertensão arterial leve com odds= 1,976, isto é os indivíduos de raça negra possuem um risco de 1,976 de apresentarem problemas quanto à meta terapêutica do que os brancos. Porém, para os usuários negros que reconhecem o sentimento de discriminação (p=0,077) a odds calculada sugere uma proteção.

        Ainda que nem sempre o indivíduo possa identificar ou perceber a discriminação, podemos delinear o contexto do Sistema de Saúde a partir do relato de vivências discriminatórias, tais como, tais como: ser atendido(a) sem ser olhado(a) para 37,5% dos entrevistados (43,5% dos brancos e 28,8% dos negros); passar dor ou desconforto para 27,1% dos clientes (20% dos brancos e 37,3% dos negros); não ser ouvido(a) para 25,7% dos entrevistados (27,1% dos brancos e 23,7% dos negros); sofrer desconfiança quanto à segurança por 9,7% dos clientes (9,4% dos brancos e 10,2% dos negros); e ouvir conversa depreciativa a seu respeito por 6,3% do entrevistados(5,9% dos brancos e 6,8% dos negros). A variável passar dor ou desconforto é estatisticamente significante ao nível de 10%,  (p=0,071), ou seja, as pessoas negras vivenciam mais esta situação. Pela análise da regressão logística multinomial, a vivência referente à desconfiarem de insegurança (p= 0,067) foi significante para os clientes negros em relação aos clientes brancos. Os clientes negros que foram atendidos sem serem olhados (p=0,066) apresentaram um risco de 7,560 quando comparados com os brancos. Para os usuários negros que não foram ouvidos (p=0,084) o risco foi de 4,246. Estes achados acentuam o peso das atitudes discriminatórias na fragilização do vínculo com os profissionais de saúde e do alcance da meta terapêutica quanto à hipertensão

    Comunicação profissional de saúde/cliente no tratamento da hipertensão arterial

        Nosso estudo buscou a percepção do(a) cliente sobre as práticas institucionais. Mas, não são poucas as vezes que nos deparamos com algumas contradições importantes. Por exemplo, a maioria avaliou positivamente a comunicação profissional-cliente. Contudo, maioria (65,3%) não opina nada no tratamento (39,6% dos brancos e 25,7% dos negros) e tem dúvidas que nunca perguntou (52,1%, sendo 34% dos brancos e 18,1% dos negros). Uma parcela significativa (45,1%) considera  a hipertensão arterial como uma doença de difícil tratamento (47,1% dos brancos e 42,4% dos negros). A análise da regressão logística multinomial evidenciou que os usuários negros que opinaram no tratamento tiveram um risco inferior a 1, sugestivo de proteção, quanto ao comprometimento da meta terapêutica.

        Os negros referiram uma melhor impressão do exame físico (p=0,066); contudo, os usuários que se auto classificam de cor branca afirmaram entender mais o que o médico orienta (p = 0,034). A análise da regressão logística multinomial mostrou que para os negros que referiram compreender o que o médico disse, os dados sugerem uma proteção. Os usuários negros que referiram ansiedade ou depressão apresentaram um risco de 2,975 quando comparados aos indivíduos brancos e as usuárias que referiram pressão alta na gravidez apresentaram um risco de 5,249 vezes mais do que as usuárias da cor branca de comprometimento da comunicação com o profissional e conseqüente prejuízo no alcance da meta terapêutica. Inferimos com base no resultado que além da cor/raça a variável gênero pode ter um forte influência na comunicação com o profissional de saúde.

        Grau de satisfação do cliente e qualidade do cuidado em saúde.

        Quanto aos cuidados nunca recebidos para o tratamento da hipertensão, observamos que 44,7% dos brancos e 51,9% dos negros nunca receberam um ou mais dos cuidados citados ainda que estejam em tratamento regular em uma unidade básica de saúde. Uma diferença de 7,2 pontos percentuais dos clientes negros em relação aos brancos.

        Os dados mostraram que os clientes em geral estão satisfeitos com tratamento da hipertensão na unidade de saúde, pois 58,1% dos entrevistados avaliaram como bom (52,7% dos brancos e 65,5% dos negros) e muito bom (12,2% dos brancos e 23,6% dos negros). Porém, esta satisfação com o tratamento recebido na unidade não corresponde em controle da hipertensão arterial, pois apenas 29,3% dos entrevistados encontram-se com os valores da pressão arterial dentro da meta terapêutica (ótima, normal e normal limítrofe). Dentre estes clientes que se encontram na faixa terapêutica de controle da hipertensão, 30,5% são de cor branca e 27,2% são negros. Uma diferença de 3,4 pontos percentuais.

        Apenas 29,3% dos clientes encontram-se com os valores da pressão arterial dentro da meta terapêutica (ótima, norma e normal limítrofe). Dentre estes clientes que se encontram na faixa terapêutica de controle da hipertensão, 30,5% são de cor branca e 27,2% são negros. Uma diferença de 3,4 pontos percentuais

Conclusão

Em suma, os resultados encontrados e análise feita sobre as interações dos clientes com o sistema de saúde, assim como sobre as práticas institucionais realizadas, a partir da perspectiva da clientela, com recorte por cor/raça, nos permitem concluir que há diferenças importantes no tratamento da hipertensão arterial para os clientes brancos e negros, em detrimento destes últimos.

Um aspecto que fortalece a compreensão de que a melhor estratégia para neutralizar o racismo é denunciar a sua existência e a sua forma de operacionalização é a proteção encontrada (odds menor que 1)  pelos usuários negros que reconhecem o sentimento de discriminação.

Assim, em que pese a evidente falta de qualidade na atenção ao cliente com hipertensão arterial, em um contexto de racismo institucional, o grupo mais prejudicado é justamente aquele que é objeto da ideologia discriminatória e, pelas mais diversas razões, não se apercebe do fato (“internalized oppression”[7]).

Além disso, não devemos ver apenas aqueles que estão sendo atendidos pelo Sistema Único de Saúde, devemos entender que o racismo institucional na área da saúde está operante justamente quando os potenciais clientes do serviço de saúde, neste caso adultos jovens, são mantidos fora do sistema de atenção à saúde, não sendo alcançados principalmente pela atenção básica. O racismo institucional, portanto, atinge a população negra por ações de tratamento descortês e de qualidade ruim para os usuários dos serviços médicos e por omissão para os usuários do SUS.

Os resultados desta pesquisa têm implicações para gestores, profissionais de saúde quanto à promoção da equidade em saúde e, neste sentido, apresentamos a seguir algumas recomendações, tomando por base o que foi encontrado.

  1. Capacitação de Servidores Públicos Federais em Processo de Qualificação e Requalificação, observando o desenvolvimento da competência cultural

  2. Sistema Nacional de Informações em Saúde de modo a organizar, integrar e disseminar informações sobre saúde da população negra para planejamento, avaliação e formulação de políticas e controle social para o SUS, os profissionais e a população

  3. Produção de Vídeos e de Programas de TV, Publicações de Livros e Periódicos Técnico-Científicos em Saúde, com a finalidade de divulgar e difundir conhecimento científico e tecnológico em saúde gerado pelas pesquisas sobre saúde da população negra, através da promoção de eventos, publicação de livros e revistas e de veiculação de programas de vídeos e TV

  4. Apoio a Pesquisas no Campo da Educação, Trabalho e Desenvolvimento dos Profissionais de Saúde, visando a produção de conhecimento relevante para o desenvolvimento de atenção integral e eqüitativa à saúde, para o fortalecimento das práticas de gestão e de controle social do SUS, em especial, com a devida representatividade da população negra.

  5. Fomento à Pesquisa em Vigilância, Prevenção e Controle de Doenças e Agravos à Saúde, visando novos conhecimentos e novas práticas que neutralizem a discriminação e o racismo institucional e dêem eficiente resposta aos desafios impostos na prática dos serviços, como a mudança do perfil epidemiológico da população, por exemplo.

  6. Promoção de Hábitos de Vida e de Alimentação Saudáveis para a Prevenção das Obesidades e das Doenças Crônicas Não-Transmissíveis para prevenir a obesidade e as doenças crônicas não transmissíveis (hipertensão arterial, diabetes, doenças cardiovasculares, dislipidemias, etc) por meio de ações que promovam um estilo de vida saudável, prioritariamente pela adoção de hábitos alimentares saudáveis, observando as características da cultura afrobrasileira.

  7. Publicidade de Utilidade Pública para informar, orientar, avisar, prevenir ou alertar a população ou segmento da população para adotar comportamentos que lhe tragam benefícios sociais reais, visando melhorar a sua qualidade de vida. Mas, também para orientá-la sobre seus direitos e deveres como usuária do SUS e o seu papel no controle social do SUS, no monitoramento da qualidade do cuidado em saúde e na neutralização do racismo institucional.

  8. Atenção à Saúde do Trabalhador. Neste e em outros estudos ficou evidente que tanto o trabalhador formal quanto o informal (cuja maioria é negra) não são alcançados pelas ações de saúde das unidades básicas. Assim, é necessário disseminar e estruturar as ações em Saúde do Trabalhador na rede do SUS, em todos os níveis e tipos de atenção: atenção básica (incluindo o PSF), média e alta complexidade, ações de vigilância em saúde, articulação com centros colaboradores e centros de pesquisa e ensino

  9. Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde para organizar uma agenda nacional de prioridades em pesquisa científica, tecnológica e de inovação em saúde, incluindo a saúde da população negra, visando o aumento da capacidade de indução do sistema de fomento científico e tecnológico

  10. Apoio à Mudança na Graduação e Pós-Graduação na Área da Saúde para incentivar mudanças nos cursos das áreas de saúde, aproximando o ensino das práticas e necessidades de saúde da população negra e do SUS

  11. Apoio à Formação Permanente de Agentes Negros (as)  para o Controle Social para promover o conhecimento sobre o SUS, sua organização, acesso, responsabilidades de gestão e direitos dos usuários

  12. Apoio aos Observatórios de Recursos Humanos em Saúde visando o fortalecimento do sistema de informações do trabalho em saúde para subsidiar as ações de gestão do trabalho, de combate ao racismo institucional e de educação na saúde.

Referências

 

[1] Cruz, I.C.F. da Review of Nursing Research: theoretical and   methodological topics related to Race/Colour/Ethnicity. Online Brazilian Journal of Nursing (OBJN-ISSN 1676-4285) 2003; 2(1) [Online]. Available at: www.uff.br/nepae/objn201icruz.htm 

[2] Collins, K.S. et al Diverse Communities, common concerns: assessing health care quality for minority Americans – Finding from the Commonwealth Fund 2001 Health Care Quality Survey. The Commonwealth Fund, 2002 [Acesso em 08/07/03] Disponível em www.cmwf.org

[3] LaVeist, T. A et al Attitudes about racism, medical mistrust, and satisfaction with care among African American and White cardiac Patients. Medical Care Research and Review 2000; 57(suppl 1):146-61 [Acesso em 08/07/03]. Disponível em www.periodicos.capes.gov.br 

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[7] Peters, R.M Racism and Hypertension among African Americans. Western Journal of Nursing Research 2004; 26(6): 612-631.

Notas:
Este artigo é parte do relatório:

Cruz ICF da  Diferenciais raciais no acesso e qualidade do cuidado e assistência prestados aos portadores de hipertensão arterial. In: Lopes, F (coord) Saúde da população Negra no Brasil: Contribuições para a promoção da equidade [relatório final – Convênio UNESCO Projeto 914BRA3002]. Brasília; FUNASA/MS, 2004.
Pesquisa do Componente Saúde do Programa de Combate ao Racismo Institucional no Brasil, do Departamento de Desenvolvimento Internacional do Governo do Reino Unido (DFID/UK), subprojeto: "Situação de Saúde da População Negra Brasileira e Recomendações para Políticas, Ações e Programas".

Agradeço a colaboração de Ilce Silva (INCA-RJ) na elaboração do banco de dados Magali Teresópolis (UFBA) na análise estatística dos dados.